
Ela veio como um ladrão na noite. E, um por um, derrubou os participantes da festa nos salões ensanguentados, cada um morrendo na postura desesperada em que caíra. E a vida do relógio de ébano extinguiu-se com a do último dos foliões. E as chamas dos tripés expiraram. E a Escuridão, a Decadência e a Morte Vermelha exerciam domínio ilimitado sobre tudo. – A Máscara da Morte Rubra, conto publicado em 1842 por Edgar Allan Poe.
Edgar Allan Poe, em sua narrativa gótica “A Máscara da Morte Rubra”, descreve uma peste voraz que se alastra implacavelmente, ceifando vidas em um intervalo de tempo assustadoramente curto. Consciente do perigo, o príncipe Próspero decide reunir nobres e amigos em um castelo isolado, com muros altos e portões selados, onde acredita poderá manter todos ilesos. Entretanto, o desfecho do conto mostra de forma dramática que nenhuma muralha basta contra um inimigo invisível; a doença penetra os salões de festa e não poupa os privilegiados que se julgavam acima do infortúnio. Ainda que ficcional, esse conto de Poe traz à tona reflexões atuais sobre políticas públicas, determinantes sociais de saúde e o fracasso de soluções simplistas e individualistas.
O que a narrativa de Poe tem em comum com os desafios sanitários do presente, em essência, é a interdependência social: por mais que alguém tente se blindar individualmente, as crises que atingem a comunidade acabam irrompendo portas e derrubando muros. Assim como na ficção, uma parte da sociedade pode tentar fingir que está “imune” às mazelas que se espalham do “lado de fora”, mas isso tende a se mostrar uma ilusão perigosa.
Nos últimos anos, a experiência global com a pandemia de COVID-19 evidenciou esse ponto: o vírus não distingue fronteiras de classe, renda ou nacionalidade. Ao mesmo tempo, ficou claro como as condições de vida e trabalho de cada grupo social são determinantes para entender quem está sob maior risco. Essa é a base do conceito de determinantes sociais de saúde, que nos mostra que fatores como acesso a saneamento, habitação, renda, educação, suporte familiar etc. podem reduzir (ou ampliar) a vulnerabilidade em meio a uma crise sanitária. É nesse cenário que a fortaleza de Próspero ilustra as consequências de se ignorar as desigualdades sociais e de não se conduzir ações coletivas amparadas pela ciência.
A ilusão do privilégio isolado
Em “A Máscara da Morte Rubra”, a ação do príncipe Próspero se resume a fugir junto de pessoas do seu convívio social, trancafiando-se em um castelo abastecido com todo tipo de suprimentos e entretenimento. Além de fugir da doença que aflige a população, escolhe ignorá-la. Para dentro do castelo, só entram aqueles considerados “dignos”: pessoas aparentemente saudáveis, de alta nobreza ou de convívio próximo. Segue-se, então, um período de festas ininterruptas, como se o problema estivesse resolvido apenas pela negação da realidade do lado de fora.
Essa aposta simboliza um antigo erro que se repete em decisões políticas contemporâneas. Com frequência, governos e elites econômicas focam em soluções restritas a pequenos grupos, acreditando que, ao proteger apenas a si mesmos, estarão seguros. No conto de Poe, esse distanciamento entre quem está “lá fora” e quem se esconde nos salões luxuosos cria uma tensão crescente. Quanto maior o contraste entre a tragédia externa e os bailes palacianos, maior a sensação de que algo vai ruir. O próprio narrador sugere que a atmosfera de festa é um disfarce frágil diante de um mal inevitável. Ou, nas palavras frequentemente atribuídas a Ayn Rand: é possível ignorar a realidade, mas não é possível ignorar as consequências de se ignorar a realidade.
Se a maioria está exposta, se as condições de vida da população em geral são precárias, a doença encontra brechas para se alastrar e atingir inclusive aqueles que se consideravam “bem protegidos”. É epidemiologia: sem medidas abrangentes e sustentadas, a cadeia de transmissão (e de consequências indiretas da transmissão – como sobrecarga de ocupação de leitos hospitalares) se mantém. E mesmo num espaço aparentemente isolado, como o castelo de Próspero, qualquer falha pode levar ao colapso da fantasia de invulnerabilidade.
No início do surto de ebola na África Ocidental, por exemplo, alguns grupos abastados acreditaram que, mantendo-se longe das áreas mais afetadas, nada aconteceria. Contudo, a circulação de viajantes, comerciantes e até equipes de apoio acabava levando o vírus para novos locais. No fim, sem uma ação coordenada, a doença se espalhou com mais facilidade. Da mesma forma, as tentativas de “blindagem” durante a COVID-19 mostraram limites óbvios: não há política de isolamento individual que funcione se grandes massas de pessoas continuarem circulando sem condições mínimas de segurança e sem acesso a recursos de prevenção.
Políticas públicas
A Organização Mundial da Saúde (OMS) chama atenção para o fato de que “as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem” afetam decisivamente a saúde. Saneamento básico deficiente, falta de acesso à água potável, habitação precária, alimentação inadequada, instabilidade econômica e dificuldades de acesso aos serviços de saúde desenham um cenário que favorece a incidência e prevalência de doenças.
Quando esses determinantes são desiguais, mesmo que um grupo seleto possa contar com hospitais sofisticados, planos de saúde caros e condições de trabalho privilegiadas, o risco coletivo permanece. Isso ficou claro durante a COVID-19. Pessoas em vulnerabilidade social foram mais afetadas. E quando a doença se fortalece em um grupo, tende a impactar direta ou indiretamente todos os outros. Em um mundo globalizado, o mesmo raciocínio se aplica às desigualdades entre países.
Sem políticas que melhorem as condições de vida da maioria - isto é, políticas que atuem sobre os determinantes sociais de saúde de maneira sistêmica -, ninguém está verdadeiramente seguro. Ignorar estes determinantes equivale a nutrir a “Morte Rubra”. Edgar Allan Poe não usou linguagem epidemiológica mas, ainda assim, a força simbólica do conto antecipa uma realidade de saúde coletiva que só se firmou no discurso acadêmico e político muitas décadas depois.
Nesse contexto, o mais importante é entender como evitar que esse cenário se repita na vida real. A resposta passa, necessariamente, pela adoção de políticas públicas baseadas em evidências, focadas em impacto sistêmico. Em outras palavras, é preciso analisar dados, ouvir especialistas, planejar estratégias que contemplem toda a população (e não somente grupos isolados) e monitorar resultados.
Poe, através de sua ficção, nos alerta sobre o que não fazer:
Não fechar os olhos ao sofrimento “além dos muros”.
Não resumir a gestão de uma crise à proteção individual ou de grupos específicos.
Não disfarçar ou minimizar a gravidade de crises em saúde.
Governos que subestimam recomendações científicas, postergando medidas de proteção coletiva; países que podem até comprar vacinas, mas não criam estratégias para levá-las rapidamente a populações marginalizadas; gestores que investem milhões tecnologia, mas não asseguram saneamento básico para periferias: esses repetem o modelo de Próspero, uma aparente fortaleza, mas vulnerável a ameaças que se nutrem das lacunas sociais.
Quando falamos em políticas públicas baseadas em evidências para enfrentar epidemias (e outros desafios de saúde), estamos falando de inúmeros desafios, tais como:
1. Análise de dados epidemiológicos: entender quem são os mais afetados, onde estão os focos de transmissão e por que tais locais e grupos são mais vulneráveis.
2. Intervenções universais, mas com foco nos mais frágeis: fornecer acesso a vacinas, testagem, apoio financeiro, educação em saúde e infraestrutura, priorizando os grupos de maior risco.
3. Transparência e comunicação clara: manter a sociedade informada, evitando a atmosfera de negação que marcou o conto de Poe e que também vemos quando líderes políticos minimizam riscos.
4. Colaboração intersetorial: saúde não pode ser pensada isoladamente; ela envolve educação, transporte, habitação, trabalho, alimentação e outras políticas.
5. Monitoramento constante e flexibilidade: ajustar as estratégias conforme as evidências apontem mudanças no cenário ou novos desafios.
Nenhuma dessas políticas funcionarão se não estiverem ancoradas em um princípio de justiça social. A ausência dessa perspectiva condenou o príncipe Próspero e seus convidados. Em saúde, ou aprendemos a pensar coletivamente, ou a crise, de algum modo, irá se impor sobre todos.
O legado de Poe
“A Máscara da Morte Rubra” encerra-se com o retrato de um baile interrompido por uma entidade fantasmagórica que representa a própria peste – a verdade inescapável sobre a morte e a fragilidade humana. O conto de Poe permanece como um símbolo de como a arrogância, o descaso pelos determinantes sociais e a negação da realidade inevitavelmente agravam crises e, em última instância, se voltam contra aqueles que acreditam poder se preservar sozinhos. Infelizmente, ainda observamos a replicação do “modelo Próspero” de gestão em saúde: políticas desarticuladas, “escudos” voltados para grupos privilegiados, falta de investimento em prevenção e atenção primária.
Mas experiências positivas mostram que, quando há vontade política e embasamento científico, é possível frear surtos, reduzir iniquidades e proteger vidas. Investimentos e boa gestão de sistemas de saúde, a adoção de estratégias de vacinação em larga escala, programas de transferência de renda, saneamento, urbanização com participação comunitária – tudo isso se traduz em “fortalezas” mais sólidas do que a do príncipe Próspero.
Em última análise, “A Máscara da Morte Rubra” é um lembre sinistro para deixarmos de lado a lógica do “castelo fechado” e passarmos a construir pontes, estruturas que sinalizam o quanto nossa sobrevivência coletiva depende de enxergar a interdependência e a dignidade humana comum.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto).