Por que biodiversidade é importante?

Questionador questionado
12 ago 2019
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Antiga ilustração de urso polar

Seja bem-vindo ao admirável mundo novo do Antropoceno, um novo período geológico mais comumente conhecido como “a era dos humanos”, onde os impactos causados por uma única espécie foram capazes de determinar o destino de milhares.

Embora reconhecido formalmente apenas em 2016, por meio de artigo publicado na revista “Science”pela Comissão Estratigráfica da União Internacional de Ciências Geológicas. Para o pesquisador Collin Waters, professor honorário da Universidade de Leicester, o Antropoceno já se iniciou há pelo menos 70 anos, e deixa sua marca na história como um dos períodos de maior ameaça a biodiversidade da Terra.

Milhares de espécies dos mais diversos ecossistemas estão desaparecendo em ritmo alarmante. Um dos mais completos estudos sobre o assunto, publicado em 2014 pelo pesquisador Rodolfo Dirzo da Universidade Stanford, em colaboração com o professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp)Mauro Galetti aponta que, enquanto 322 espécies de vertebrados terrestres (mamíferos, aves, peixes, répteis e anfíbios) já foram extintas no Antropoceno, as espécies restantes sofrem de um acentuado declínio de 25% na abundância de suas populações. Espécies de invertebrados (como insetos, artrópodes e moluscos) apresentam um declínio ainda mais elevado, de 45%.

Segundo a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos(sigla em inglês, IPBES), órgão subordinado à Organização das Nações Unidas, a ameaça à biodiversidade é, agora, significativamente maior.

Publicado em 2019, o relatório “Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos” já é considerado o estudo mais abrangente sobre o estado global da biodiversidade. Pesquisadores do IPBES, liderados por Andy Purvis, do Museu de História Natural de Londres, avaliaram mais de 15.000 artigos científicos através de uma colaboração internacional com 145 autores de 50 países, além de contar com a contribuição de 310 autores especialistas.

Após três anos de estudo, as análises realizadas pelo IPBES concluíram que nada menos do que um milhão de espécies de animais e plantas estão ameaçadas de extinção, e muitas delas desaparecerão dentro de apenas algumas décadas. 

Interação perdida

Mas ocenário pode ser ainda mais grave.Isto porque as análises dos danos à biodiversidade são, ainda hoje, amplamente focalizadas na perda de espécies. No entanto, pouca ou nenhuma atenção é dada à perda de um componente-chave para a manutenção da resiliência dos ecossistemas e que desaparece silenciosamente, muito antes da perda de animais e plantas. Estudo publicado em 2015 na revista “Functional Ecology”, pelo cientista Alfonso Valiente-Banuet e colaboradores, alerta para o fato de que o mundo está a um passo de perder muito mais do que espécies: estamos prestes a perder milhões de interações ecológicas.

Mas o que são interações ecológicas? Compare as milhares de espécies em um ecossistema às minúsculas peças de um smartphone. Imagine, agora, que todas as peças encontram-se perfeitamente encaixadas em locais específicos, desempenhando funções singulares, mas, em geral, interdependentes. As peças estão conectadas entre si, direta ou indiretamente, assim como as milhares de espécies em um ecossistema. Se apenas uma peça for retirada, o smartphone perde a habilidade de funcionar com perfeição.

Os serviços anteriormente disponibilizados por ele deixam de existir. O mesmo ocorre em um ecossistema quando espécies são extintas: funções e recursos que antes estavam disponíveis desaparecem, afetando a sobrevivência de centenas de outras espécies e a estabilidade de todo o sistema. 

Inúmeras publicações científicas já abordaram o tema, investigando como a perda de uma única espécie pode acionar um efeito de extinções em cascata. Ainda em 2007, Nuñez-Iturri e Howe comprovaram as graves consequências da perda destas interações em florestas, como quando o declínio de grandes vertebrados, responsáveis pela dispersão de sementes, resulta numa redução de até 60% na abundância de espécies de árvores em uma floresta.

Um artigo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences” em 2018, por pesquisadores da Universidade de Exeter, demonstrou como a perda de espécies-chaves, responsáveis por milhares de interações, pode rapidamente levar ao colapso de um ecossistema. Segundo Dirk Sanders, autor do estudo, “interações entre espécies são essenciais para um ecossistema e, como as espécies de um bioma estão conectadas através de uma rede de interações, danos causados a uma única espécie podem afetar todas as demais.”

Exatamente por este motivo, uma vez destruídos, é impossível recriar sistemas naturais tão enigmáticos quanto florestas primárias.Segundo Christian Messier, autor de uma extensa revisão publicadarevista cientifica “Conservation Letters, florestas são sistemas altamente complexos, cujas propriedades e características emergem de uma enorme variedade de dinâmicas que ocorrem ao longo de milhares de anos e propiciam a auto-organização e o surgimento de intricadas interações entre espécies. 

Ainda antes, o pesquisador Luke Gibson, da Universidade Nacional de Cingapura autor do artigo “Primary forests are irreplaceable for sustaining tropical biodiversity”, publicado na “Nature” em colaboração com cientistas de renome como Thomas Lovejoy, do INPA, e o brasileiro Carlos Peres, da Universidade de East Anglia, já havia demonstrado claramente que florestas primárias são ambientes únicos, insubstituíveis e essenciais para conservação da biodiversidade.

Quem é o perdedor?

Mas, afinal, quem perde mais com a perda de ecossistemas e o declínio da biodiversidade, milhares de espécies de animais, plantas e outros organismos ou própria civilização? Qual a importância da biodiversidade para a economia, para o bem-estar e a qualidade de vida da população brasileira? 

Vale lembrar que a conservação da biodiversidade é fundamental para a segurança climática do planeta. Em 2016, o pesquisador Anand M. Osuri publicou os resultados na revista ”Nature Communications”  demonstrando que a perda de espécies de aves e mamíferos, dispersores de sementes em florestas tropicais, pode afetar diretamente a eficiência dos processos de fixação e formação de estoques de carbono em sistemas florestais.

No mesmo ano, a pesquisadora Carolina Bello, sob orientação do professor Mauro Galetti, da UNESP, em colaboração com um grupo internacional, publicou resultados similares na “Science Advances”. Estudando a Mata Atlântica, os pesquisadores demonstraram que a extinção de animais que se alimentam de frutos, dispersando suas sementes, como antas, cutias e muriquis, pode comprometer drasticamente a capacidade das florestas tropicais de absorver CO2 da atmosfera. 

paisagem em preto e branco

Ambas as pesquisas confirmaram a importância da biodiversidade no processo de redução de emissões de gases do efeito estufa, por meio do armazenamento de carbono em florestas tropicais mas.

E a ciência também já comprovou que sem biodiversidade não haveria florestas e sem florestas, não há água. 

Antônio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), após revisão de mais de 200 artigos científicos sobre a Amazônia e sua relação com as chuvas, concluiu, em Futuro Climático da Amazôniaque o desmatamento influencia a disponibilidade de água nas regiões mais populosas do país. Já em 2015, um grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo, liderados por Leandro Tambosi, publicou estudo sobre a função das florestas na captação de água na revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Pauloreafirmando que os serviços ecossistêmicos disponibilizados por elas são essenciais para a recarga de aquíferos.

Alimentos e remédios

A garantia da produção quanto a qualidade energética dos alimentos depende, essencialmente, de serviços ecossistêmicos como a polinização. 

Rebecca Chaplin-Kramer, da Universidade de Stanford, publicou em 2014 o artigo ”Global malnutrition overlaps with pollinator-dependent micronutrient production”, comprovando que as abelhas nativasalém atuar na produção de culturas agrícolas de alto valor econômico, são responsáveis pela fixação de vitamina A e ferro. Qualquer interferência nesse sistema de polinização pode levar a sérias implicações para a saúde pública de vários países.

biodiversidade também permite a descoberta medicamentos revolucionários. Segundo o pesquisador Alan Harvey, em seu artigo ”Strategies for discovering drugs from previously unexplored natural products” (Estratégias para a descobertas de medicamentos a partir de produtos naturais ainda não explorados, em português) produtos naturais dão à indústria farmacêutica uma fonte insubstituível de moléculas com diversidade estrutural, que pode ser utilizada como base para medicamentos contra uma ampla variedade de doenças.

Na verdade, embora a eficácia de pouco menos de 10% da biodiversidade mundial já tenha sido testada, novas descobertas e ensaios clínicos com amostras de centenas de espécies nativas de florestas tropicais, como a Amazônia e a Mata Atlântica, são realizados quase todos os dias. 

Em um artigo publicado na revista “Journal of Medicinal Plants Research”, o pesquisador Joshua Henkin, daUniversidade de Illinois, após uma expedição pelas florestas do Laos, publicou o resultado de testes iniciais onde ao menos seis espécies de plantas foram capazes de produzir princípios ativos que, após estudos mais aprofundados, poderão gerar compostos com potencial para tornarem-se medicamentos eficazes no combate ao câncer. 

Para ficar num exemplo mais concreto, o Captopril, criado a partir do veneno de uma espécie de cobra, hoje, utilizado por milhares de pessoas para o controle da pressão arterial.

Relatório publicado em 2006 pela WWF - Indonésia, após apontar a enorme variedade de plantas da floresta tropical da Malásia, de significativo interesse para a indústria farmacêutica, sugeriu que a degradação de florestas tropicais coloca em risco a descoberta de novos medicamentos que, mais tarde, poderiam salvar milhares de vidas.

Foi literalmente o que ocorreu quando uma equipe de cientistas daUniversidade de Illinois retornou a Malásia em busca de uma planta da espécie Calophyllum lanigerum var austrocoriaceum, cujas folhas produzem a substância Calanólido A que, para surpresa dos cientistas, impediu a replicação viral do HIV em testes laboratoriais, tornando-se uma forte candidata para estudos visando a produção de um novo medicamento antirretroviral. 

Inicialmente coletadas pelo pesquisador Djaja Soerjato durante uma expedição em 1987, a descrição das amostras apontava para o local exato da coleta, mas a árvore jamais foi encontrada novamente. Segundo os pesquisadores, o exemplar da espécie foi possivelmente derrubado para virar lenha ou carvão.

Neste mesmo instante, centenas de espécies de plantas e animais que poderiam gerar novos medicamentos e beneficiar a sociedade podem estar desaparecendo uma após a outra, para sempre.

Mas, em termos econômicos, quanto o Brasil pode estar perdendo por não investir na proteção de suas florestas e ao deixar de inovar com políticas públicas que beneficiem e impulsionem o mapeamento e a conservação da biodiversidade? 

Segundo dados publicados pelo cientista Peter Principe, pesquisador da Agência de Proteção Ambiental Norte-Americana (sigla em inglês, US EPA) e autor no livro “Conservation of Medicinal Plants”, o valor econômico de medicamentos obtidos de plantas pode ser estimado entre US$ 200 bilhões e US$ 1,8 trilhões anuais, incluindo apenas itens comercializados nas nações participantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

De acordo com outro relatório publicado pela sociedade acadêmica “Ecological Society of America”, entre os 150 medicamentos mais receitados nos Estados Unidos, 118 têm origem em fontes naturais sendo 74% em plantas, 18% em fungos, 5% em bactérias e 3% de espécies de cobras.

Qual seria o potencial do Brasil? Segundo Norman Myers, pesquisador da Universidade de Oxford, em seu artigo para a revista “Nature”, o país é um dos “hotspots” de biodiversidade do mundo. Cientistas como Myers apontam que o país abriga a mais rica flora do planeta com, pelo menos, 50.000 espécies, ou um sexto de todas as plantas da Terra. 

Não seria o momento de o país investir macissamente em pesquisa e desenvolvimento de produtos com base em seu capital natural?

Afinal, se para um dos mais importante economistas do século 20, Joseph Schumpeter, períodos de crise podem se tornar períodos de concepção de novas técnicas e processos; e se o estado atual da economia no mundo nos convida a debater desenvolvimento sustentável, através de inovação voltada ao meio ambiente, e a conservação de recursos, como afirma a pesquisadora francesa Blandine Lapercheda Universidade du Littoral Côte d'Opale (ULCO), em seu livro “Crisis, Innovation and Sustainable Development: The Ecological Opportunity”, a atual crise global da biodiversidade, pode ser o ponto da virada: o momento ideal para países líderes em biodiversidade, como o Brasil, tornarem-se também líderes na economia e no desenvolvimento sustentável.

 Sandro Van Matter é pesquisador em Conservação da Biodiversidade e Sustentabilidade e especialista em Divulgação Científica 

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