Em 1939, Semyon Kirlian descobriu, acidentalmente, que se um objeto é colocado sobre uma placa fotográfica sujeita a uma grande diferença de potencial (alta voltagem é o termo popular tensão é outro termo científico que designa a mesma coisa) e baixa corrente elétrica, ele deixa uma imagem impressa na placa. Esse fenômeno eletrográfico já era conhecido antes de Kirlian, mas usado apenas como técnica experimental.
O equipamento que produz a imagem em forma de um halo luminoso, tanto de objetos orgânicos como inorgânicos, foi denominado máquina Kirlian. Segundo Kirlian e sua esposa, as imagens que eles obtinham mostravam a aura das pessoas fotografadas, refletindo seu estado físico e emocional, e podiam ser usadas para diagnosticar doenças.
Para entender o que há por trás dessas fotos, vamos primeiro esclarecer os conceitos de corrente e diferença de potencial. Corrente elétrica é o nome dado a um fluxo contínuo de cargas elétricas negativas que se movem em um condutor elétrico.
Nos casos práticos, em geral, esse condutor é um fio de cobre, como se pode ver ao se descascar um fio que liga a tomada a um eletrodoméstico comum. Portanto, o funcionamento de aparelhos elétricos e eletrônicos depende da existência de corrente elétrica que, por sua vez, é gerada por uma diferença de potencial aplicada entre as extremidades do condutor. Por fim, essa tensão é estabelecida a partir de um campo elétrico.
A fórmula a seguir talvez ajude a entender melhor o assunto, mas para quem não se sente confortável com equações, ela não é imprescindível.
Vamos lá! a relação entre tensão e corrente é dada por U=Ri, onde U representa a tensão, R a resistência que o material oferece à passagem da corrente e “i" representa a corrente em si.
A unidade no Sistema Internacional (SI) para corrente é o Ampére (A). para tensão é o Volt (V), de que todo mundo já ouviu falar, e para resistência é o Ohm. Da fórmula acima pode-se ver que, para um mesmo material (mesmo R), quanto maior a tensão aplicada, maior a corrente gerada. Por outro lado, uma mesma tensão gera uma corrente maior em condutores com menor resistência e vice-versa.
Tensões muito altas, como as existentes em redes de transmissão elétrica, da ordem de 345.000 V, geram correntes elétricas letais. Dentro das residências brasileiras, essa tensão é baixada para algo ao redor de 110 V ou 220 V, dependendo da cidade. Essas diferenças de potencial ainda podem gerar correntes que causam sérios prejuízos à saúde e, por isso, tomadas devem obedecer a uma série de normas de segurança, para evitar o cobtatoi direto da corrente disponível nelas com o corpo humano (ou de outros animais que vivam pela casa)..
Exatamente para evitar choques caseiros (as crianças pequenas são as principais vítimas), o Brasil aprovou, em 2000, uma lei que obrigou a troca das antigas tomadas, com os contatos expostos e sem aterramento obrigatório, por tomadas de três pinos que seguem o padrão internacional de proteção ao usuário. Ao contrário do que muitos pensam, nossa tomada não é uma “jabuticaba”. Ela segue o padrão suíço.
Vamos manter em mente que a relação entre a tensão e a corrente elétrica depende da resistência, uma característica do condutor por onde passa a corrente. No caso do corpo humano, se as correntes que o atravessarem forem baixíssimas, elas causam choques que não são fatais. Exemplos comuns são as cercas elétricas e os tasers (armas de choque) que operam a tensões comparáveis às dos cabos de transmissão elétrica, mas geram correntes muito baixas, que o corpo humano normalmente é capaz de suportar.
Outro conceito necessário para entender as fotos geradas na máquina Kirlian é o de ionização. Dizemos que átomos e moléculas estão ionizados quando suas cargas elétricas negativas são total ou parcialmente separadas das positivas. Um modo de ionizar um material, ou o próprio ar, é pela passagem de corrente elétrica [1].
Portanto, como a máquina Kirlian sujeita o material a ser fotografado a uma alta tensão, porém com baixa corrente elétrica, o que a torna segura. E é a ionização do ar ao redor do objeto que deixa a impressão na chapa fotográfica. Na verdade, a foto é o resultado de um processo de ionização dos gases ao redor dos objetos.
A foto não pode ser gerada em ambientes muito secos, nos quais não há umidade suficiente para ionizar os átomos. Tampouco pode ser gerada no vácuo. Além da umidade, o resultado fotográfico depende de vários fatores externos, como a pressão com a qual a pressão exercida sobre a superfície na qual a imagem será produzida, a condutividade elétrica da pessoa (ou do objeto), suor, óleos e outros contaminantes que podem alterar a ionização dos gases no entorno do material fotografado.
Mesmo conhecendo-se as características básicas das fotos Kirlian, num determinado momento (as fontes sobre datas não são precisas), que pode ter sido ainda durante a existência da União Soviética (o primeiro artigo de Kirlian data de 1961) ou apenas em 1999, na atual Rússia, máquinas Kirlian passaram a ser usadas em hospitais como coadjuvantes em tratamentos médicos e para ajudar a avaliação do estado psicoemocional dos pacientes.
Há alegações de que a análise das fotos pode identificar depressão, angústia, “coração partido" e até câncer! Não é incrível que auras associadas a estados de espírito só se manifestem sob determinas condições atmosféricas? Além disso, objetos inanimados e inorgânicos, como chaves, celulares, copos etc, também têm auras Kirlian!
No Brasil, há vários sites que explicam a fotografia Kirlian, geralmente de modo correto, mas depois tentam conectar a explicação científica e propostas nada científicas e muito pouco ortodoxas ligadas à paranormalidade, a possibilidade ou não da cura de uma certa doença ou ao entendimento de aspectos emocionais.
A pseudociência tem, como uma das suas principais armas, a divulgação de tratamentos supostamente terapêuticos por meio de textos fantasiados de ciência, que prometem resultados improváveis. O estudo da paranormalidade, por sua vez, foi levado a sério nas décadas de 70 e 80 e chegou a receber financiamento do Pentágono e da CIA, mas a partir de 1991 pesquisadores identificaram uma série de falhas metodológicas nos estudos, que acabaram completamente desacreditados nos meios científicos e acadêmicos.
Portanto, caso você tenha interesse de tirar uma fotografia Kirlian de alguma parte do seu corpo, entenda que ela não mostrará nada além dos contornos que você já conhece, e alguma coisa sobre o ar ao redor.
Débora Peres Menezes é Professora Titular do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, atual representante brasileira na Comissão de Física Nuclear (C12) da International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP), membro do Comitê Gestor do INCT – Física Nuclear e Aplicações e Presidente do Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero da Sociedade Brasileira de Física. Foi Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão da UFSC de 2008 a 2012
NOTA
[1] NUSSENZVEIG, Herch Moisés. Curso de Física Básica 3 Eletromagnetismo, São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda.