Frankenstein, da guerra ao marcapasso

Questão Nerd
13 jul 2023
Frankenstein e seu monstro

 

A obra "Frankenstein", escrita por Mary Shelley, é considerada um marco na literatura gótica e na ficção científica. Publicado em 1818, o livro explora questões sobre a criação da vida e as consequências de brincar com os limites da ciência. Para entender melhor a obra, é fundamental analisar o contexto histórico em que foi escrita, bem como a influência da ciência da época na autora.

No início do século 19, a ciência passava por um período de grandes avanços e descobertas. O Iluminismo e a Revolução Industrial trouxeram uma mentalidade voltada para a razão e o progresso científico. Nesse cenário, Shelley foi influenciada pelas discussões sobre os limites da ciência e suas implicações éticas e morais.

Um dos principais elementos que influenciaram na escrita de "Frankenstein" foi a pesquisa realizada, entre 1780 e 1790, pelo cientista italiano Luigi Galvani. Galvani foi pioneiro no estudo da eletricidade e sua relação com a ação muscular. Suas experiências com a estimulação elétrica dos músculos de rãs e outros animais levaram a reflexões sobre a possibilidade de dar vida à matéria inanimada por meio da eletricidade.

O trabalho de Luigi Galvani, por sua vez, foi influenciado significativamente por Alessandro Volta. Volta, um renomado físico italiano, dentre outras descobertas, desenvolveu a pilha voltaica, que era capaz de produzir uma corrente elétrica contínua. Isso foi fundamental para as pesquisas de Galvani sobre eletricidade e ação muscular. Utilizando as baterias desenvolvidas por Volta, Galvani viu que, ao aplicar uma corrente elétrica nos músculos de animais mortos, esses músculos contraíam-se, como se os animais estivessem vivos novamente.

O neto de Galvani, Giovanni Aldini, deu continuidade às pesquisas do avô. Em 1803, Aldini utilizou as baterias de Luigi Galvani para realizar experimentos em corpos de prisioneiros executados na prisão de Newgate, em Londres. Aplicava choques elétricos nos corpos, produzindo movimentos e contrações musculares impressionantes. Essas demonstrações públicas despertaram grande curiosidade e temor na sociedade da época.

A ligação entre Alessandro Volta, Luigi Galvani e Giovanni Aldini revela como os avanços científicos e as descobertas no campo da eletricidade foram se desenvolvendo ao longo do tempo, contribuindo para um maior entendimento dos processos biológicos e influenciando indiretamente a criação literária de Mary Shelley. Em "Frankenstein", o protagonista, Victor Frankenstein, utiliza a eletricidade para dar vida a sua criatura. Sempre digno de nota, não é a criatura que se chama Frankenstein. Na história, Victor Frankenstein chama sua obra de “criatura”, “demônio”, “ogre” ou “coisa”, nunca “monstro”.

A influência da ciência da época na obra de Mary Shelley contribuiu para o nascimento da ficção científica, que explora os limites éticos e morais da ciência e questiona as consequências organizacionais e filosóficas de interferir nos processos naturais da vida. No caso de Frankenstein, os avanços científicos permitem derrotar a morte.

Além da ciência, Mary Shelley foi fortemente influenciada em questões sociais por seu pai, William Godwin, que era filósofo e escritor. Godwin era conhecido por suas ideias revolucionárias e por ser o primeiro proponente moderno do anarquismo. Para ele, as desigualdades de classes deturpavam o sistema jurídico e impediam que um grupo de pessoas desfrutasse dos avanços científicos e tivessem acesso aos benefícios da vida em sociedade.

Em "Frankenstein", a Criatura de Victor Frankenstein é rejeitada e marginalizada pela sociedade. Com isso, Mary Shelley critica a forma como a coletividade julga e exclui os que são diferentes e aborda questões atuais, como "quais são as consequências do confinamento sem intercâmbio social?", o que constitui uma pessoa?", "quem é reconhecido como humano?".

O estilo narrativo inovador de Mary Shelley em "Frankenstein" estabeleceu o padrão para as obras de ficção científica que viriam a seguir. Sua abordagem que combina elementos góticos, filosóficos e científicos definiu o gênero literário como conhecemos hoje. A obra inspirou diversos autores e cineastas, tornando-se um ícone da literatura e do cinema.

 

Influência em outras obras

A influência de "Frankenstein" estende-se a várias obras da ficção científica, como “A Ilha do Dr. Moreau”, de H.G. Wells (1896); “Neuromancer”, de William Gibson (1984); “Blade Runner”, dirigido por Ridley Scott com roteiro de Hampton Fancher e David Peoples (1982); e a série "Black Mirror", criada por Charlie Brooker, que atualmente está na Netflix. Vale citar ainda algumas obras talvez não tão conhecidas, incluindo "Sirius", de Olaf Stapledon (1944); "Frankenstein in Baghdad", de Ahmed Saadwi (2014; e "Frankissstein: A love story", de Jeanette Winterson (2019).

"Sirius" é um romance que segue a vida de um cão geneticamente modificado com inteligência humana. Inspirado por "Frankenstein", Stapledon explora as implicações morais de criar uma criatura consciente e as consequências sociais de sua existência. O livro levanta questões sobre a natureza da Humanidade, direito animal e o papel da ciência na manipulação genética.

Em "Frankenstein in Baghdad", Saadwi apresenta uma narrativa ambientada no cenário pós-guerra do Iraque. O livro aborda a criação de um monstro composto por partes de corpos humanos encontrados nas ruas de Bagdá, que busca vingança após os recorrentes bombardeios dos Estados Unidos. Essa obra reflete a influência de "Frankenstein" ao explorar temas de monstruosidade, violência e as consequências da guerra. Ao adaptar a premissa de Shelley para um contexto contemporâneo, Saadwi destaca a atemporalidade dos questionamentos éticos e morais levantados por "Frankenstein". Como justificamos o uso da violência, e contra quem?

"Frankissstein: A love story" é uma obra que entrelaça as histórias de Mary Shelley e Victor Frankenstein com uma narrativa futurística. Winterson utiliza a história de "Frankenstein" como um ponto de partida para explorar questões de identidade de gênero, tecnologia e amor em um mundo cada vez mais dominado pela inteligência artificial. O livro revela como os temas e conceitos introduzidos por Shelley ainda são relevantes e provocativos nos dias de hoje.

 

Inspiração para a ciência

O marcapasso, um dispositivo médico que auxilia no controle do ritmo cardíaco, tem uma história fascinante. O criador desse notável dispositivo, Earl Bakken, encontrou inspiração em “Frankenstein”. Bakken, quando criança, leu e assistiu à história de Mary Shelley sobre a criação de um ser vivo artificial e ficou fascinado pelos conceitos científicos e éticos.

A história do marcapasso está intimamente ligada à fundação da Medtronic, uma empresa líder em tecnologia médica. Em 1949, Earl Bakken e seu cunhado, Palmer Hermundslie, fundaram a Medtronic em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. A empresa começou como uma pequena oficina de reparo de equipamentos médicos, mas logo evoluiu para se tornar atualmente um centro de inovação médica de renome mundial.

O desenvolvimento do marcapasso trouxe consigo desafios semelhantes aos enfrentados pela Criatura de Frankenstein perante a sociedade. Houve preocupações éticas e questionamentos sobre a segurança e eficácia do marcapasso. A Medtronic teve que enfrentar obstáculos consideráveis para superar esses receios e trazer a inovação ao mundo.

Com o passar dos anos, a tecnologia do marcapasso avançou significativamente. Os primeiros modelos eram grandes e limitados em termos de funcionalidade. No entanto, graças aos esforços contínuos de pesquisa e desenvolvimento, o tamanho do dispositivo diminuiu consideravelmente. Além disso, os avanços na eletrônica e na conectividade possibilitaram que os marcapassos ficassem mais sofisticados, capazes de monitorar e ajustar automaticamente o ritmo cardíaco.

O impacto na sociedade tem sido imenso. A estimativa é de que 3 milhões de pessoas utilizam marcapasso atualmente e dependem desse dispositivo para manter um ritmo cardíaco saudável. O marcapasso permitiu que pessoas com doenças cardíacas graves vivessem vidas mais longas e produtivas, proporcionando-lhes uma melhor qualidade de vida. Além disso, a tecnologia do marcapasso abriu caminho para o desenvolvimento de outros dispositivos médicos implantáveis, impulsionando avanços ainda mais significativos na área da medicina.

A partir de “Frankenstein” podemos traçar um “looping” de influências impressionantes e que serão abordadas em textos futuros. Digno de nota é a invenção da internet, que merecia um artigo apenas sobre isso, mas também não poderia ficar de fora aqui.

Um garoto britânico de nove anos, Tim Berners-Lee, ficou impressionado com uma história de ficção científica escrita pelo futurista-profeta Arthur C. Clarke sobre um grupo de telefones que domina o mundo em  “Dial F For Frankenstein”, conto curto que foi publicado pela primeira vez na edição de janeiro de 1964 da revista Playboy!

Na história, os telefones começam a conversar entre si em uma linguagem incomum. Um dia, os telefones passam trotes para assustar donas de casa; no dia seguinte, os sistemas bancários fecham e mísseis militares são lançados sem nenhum comando. Logo, os telefones formam uma rede e criam um caos tão robusto e severo que rapidamente leva ao fim do mundo.

Em “Dial F For Frankenstein”, todos os sistemas bancários e de comunicação são redes que unem a Humanidade e tornam as transações mais simples, mas a consciência sem precedentes adquirida pela rede se volta contra seu criador, assim como a Criatura de Victor Frankenstein o fez.

O conto de Arthur C. Clarke impressionou tanto o jovem Tim que ele começou a construir outros tipos de redes em sua mente. Tim foi para o MIT, e em 1989 concebeu a ideia para nada menos do que a World Wide Web, ou a rede mundial de computadores.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia, diretor de Educação Científica do Instituto Questão de Ciência e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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