Boa parte das “polêmicas” que nascem nas redes sociais parece dar razão à fala ranzinza do escritor Umberto Eco, falecido em 2016, de que “a internet deu voz a uma legião de imbecis”. Uma discussão recente, levantada pelo humorista Fabio Porchat, a respeito do local de armazenamento de remédios (cozinha ou banheiro?), produziu inúmeros comentários, a maioria com declarações pessoais de onde cada pessoa costuma guardar os medicamentos.
A despeito da resposta para a pergunta ser simples, objetiva e estar nas bulas dos remédios, uma equipe de profissionais achou que a repercussão nas redes sociais deveria ser tema para uma matéria no portal G1. O texto traz algumas informações de utilidade pública, tratando inclusive do descarte correto dos medicamentos, e poderia ser mais um desses assuntos que passam despercebidos, mas alguém achou pertinente introduzir uma desinformação alarmista – o “perigo” das ondas do micro-ondas.
Radiação eletromagnética há em toda parte. Caso você queira deixar o seu remédio longe do forno de micro-ondas por causa da radiação que existe lá dentro, saiba que os celulares e redes wifi operam em uma frequência muito próxima das ondas usadas para esquentar a comida – sim, aquela rede wifi 2,4 GHz opera na mesma frequência das ondas do forno na cozinha (2,45 GHz) –, a diferença está na potência emitida, muito mais alta para o interior do forno. Com o eletrodoméstico funcionando corretamente, porém, espera-se que não exista vazamento de ondas para o exterior da cavidade onde se aquecem os alimentos.
A radiação eletromagnética pode ser classificada de acordo com a sua frequência (a quantidade de oscilações da onda em um intervalo de tempo). Em ordem crescente de frequência, temos as ondas de rádio AM e FM, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama. A região do espectro correspondente à luz visível é uma estreitíssima faixa de frequência entre o infravermelho e o ultravioleta: a imensa maioria das frequências de radiação é invisível aos nossos olhos.
Dependendo da frequência, as ondas eletromagnéticas podem também ser divididas em dois grupos: radiação ionizante e não ionizante. A partir do ultravioleta, a onda possui uma energia que permite que ela "arranque" elétrons de átomos e moléculas, transformando-os em íons – daí o nome, “ionizante”.
Essa alteração pode causar danos no DNA, resultando no aparecimento de um câncer. Radiação não ionizante, embora não cause alteração nos genes, também pode provocar algum dano dependendo, por exemplo, da sua potência e do tempo de exposição da pele – é só lembrar que algumas cirurgias utilizam lasers nos procedimentos. De maneira semelhante, as micro-ondas podem causar o aquecimento do corpo e dos medicamentos, mas somente se forem expostos diretamente a essa radiação.
O aquecimento dos alimentos no forno se dá através da interação da radiação eletromagnética com as moléculas de água. A radiação, emitida por um gerador de micro-ondas chamado magnetron, é espalhada no interior da cavidade do forno e faz com que as moléculas de água girem. Esta movimentação produz o aumento da temperatura, fenômeno chamado de aquecimento dielétrico. Note que o aquecimento dielétrico é um fenômeno diferente da ressonância – em muitos sites educacionais a explicação do aquecimento está incorreta. A frequência de funcionamento do forno, 2,45 GHz, está bem abaixo da frequência de ressonância da água, 1 THz na região do infravermelho.
Uma outra curiosidade sobre os fornos é: se enxergamos a luz do forno pelo vidro frontal, então quer dizer que as micro-ondas também passam? A frequência das micro-ondas, 2,45 GHz, dá um comprimento de onda – a distância entre dois picos ou dois vales – de 12,2 cm, muito maior do que os furos da grade metálica colocada no vidro do micro-ondas (aproximadamente 1 mm). Nessas condições, é como se a onda gerada pelo forno “não enxergasse” os furos, ou seja, para as micro-ondas é como se a grelha frontal fosse uma parede contínua. Já para a luz da lâmpada no interior do forno, o comprimento de onda fica em torno de 0,0005 mm, e é por isso que ela passa pela grelha sem grandes problemas. Explicações mais detalhadas sobre o funcionamento do forno de micro-ondas podem ser encontradas no Centro de Referência para o Ensino de Física (CREF).
Voltando para os remédios, considerando fornos de micro-ondas em perfeito funcionamento, não existe nenhum risco à saúde ou problema de armazenamento de medicamentos em razão da radiação eletromagnética do aparelho – pelo menos, enquanto os remédios estiverem do lado de fora do forno. Não tem cabimento, portanto, a recomendação da Agência Senado referente a medicamentos homeopáticos (que, aliás, são apenas água ou açúcar), de que tais produtos “devem ficar longe de qualquer aparelho eletrodoméstico ou outros que emitam radiação”. Para quem leva isso a sério, é conveniente utilizar também um chapéu de alumínio para se proteger do sinal de wifi e contra tentativas de controle mental por satélites.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência