Promessa vazia sobre o cérebro

Questão de Fato
1 fev 2022
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Doenças neurodegenerativas estão entre as mais cruéis. O aparecimento e avanço de sintomas como perda de memória, do controle motor, fadiga e fraqueza muscular, comuns em males como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica (ELA), aos poucos vão tirando a independência dos pacientes, que acabam por depender de outras pessoas para realizar mesmo tarefas simples do dia a dia. De causas ainda desconhecidas ou mal compreendidas pela ciência, elas tampouco têm curas comprovadas. Os tratamentos disponíveis hoje focam principalmente no controle dos sintomas e na tentativa de interromper a progressão. Fato que põe sob tensão pacientes, parentes e amigos, tornando-os vulneráveis a promessas de cura ou controle pouco embasadas e de validade altamente questionável.

E é o que estamos vendo nas últimas semanas depois que André Tal, repórter do programa Domingo Espetacular, da rede de TV brasileira Record, revelou estar sofrendo com o mal de Parkinson. Seu relato voltou a dar destaque na mídia nacional a Marc Abreu, médico brasileiro radicado nos EUA que, pelo menos desde 2019, oferece uma terapia sem qualquer comprovação científica que afirma ser capaz de curar não só esta como outras doenças neurodegenerativas. Suas promessas vêm embaladas num discurso recheado de meias-verdades, declarações vagas, termos técnicos descontextualizados ou sem sentido, omissões e ressalvas que não resiste a uma análise crítica.

 

Da ciência ao negócio

 

Formado em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 1985, com inscrição ativa no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) desde 1º de abril de 1986, Marcio Aurelio Martins (Marc) Abreu informa em seu currículo passagens pelas escolas de medicina das prestigiosas universidades americanas de Harvard e Yale. Nesta última, atuando como pesquisador de seu Departamento de Oftalmologia, em 2003 anunciou a descoberta do que chamou de “túnel térmico do cérebro” (“brain temperature tunnel”, ou BTT, na sigla em inglês), estrutura do órgão que transmite sua temperatura interna – mais precisamente da região próxima do hipotálamo, cujos neurônios termossensíveis são importante parte do sistema de termorregulação do corpo - para uma pequena área da pele perto dos olhos e nariz (órbita superomedial), permitindo seu monitoramento indireto, de forma não invasiva e contínua.

Então, Abreu já especulava a respeito de diversas aplicações práticas de seu achado tanto para a saúde humana quanto a animal, tendo inclusive desenvolvido protótipos de sensores e óculos capazes de medir continuamente a temperatura cerebral. As ideias iam desde equipar trabalhadores, bombeiros, militares e atletas com estes sensores para prevenir casos de insolação e hipertermia (quando a temperatura do corpo sobe a níveis perigosos e potencialmente fatais) a monitorar pacientes durante cirurgias ou internados, ajudando a detectar potenciais infecções hospitalares ao menor sinal de febre, além de pequenas variações indicativas de ovulação, aumentando as chances de sucesso de procedimentos de reprodução assistida e inseminação artificial.

Assim, em 2006 o médico brasileiro fundou a empresa Brain Tunnelgenix Technologies Corp (BTT Corp), com sede no estado americano de Connecticut (o mesmo da Universidade de Yale) e em 2010 obteve autorização da Administração para Drogas e Alimentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês) para comercializar um sistema de monitoramento contínuo da temperatura cerebral, que batizou de Abreu BTT 700. Já em 2016, a BTT Corp abre um escritório no estado americano da Flórida tendo como objetivo justamente buscar aplicações e negócios para seu sistema e outros derivados de sua descoberta, passando a oferecer ao mercado uma versão do Abreu BTT 700 voltada para pesquisas do cérebro em 2017.

 

Do negócio à terapia “milagrosa”

Corta para 2019, e de repente o que era apresentado apenas como um sistema de monitoramento da temperatura cerebral – ou seja, algo como um termômetro supersofisticado – agora está no centro de um novo tratamento “milagroso” que promete curar não uma, mas extensa lista de doenças neurodegenerativas que até hoje desafiam médicos e cientistas. Chamada por Abreu de “terapia de indução de proteínas de choque térmico” (“heat shock proteins”, ou HSPs, também na sigla em inglês), tem como base de ação esta “família” de moléculas produzidas naturalmente por praticamente todos organismos que vivem na Terra em resposta a condições de calor extremo, entre outras situações.

Descobertas na década de 1960, as proteínas de choque térmico estão envolvidas em diversos processos biológicos dentro e fora das células. Entre eles, o desdobramento, redobramento e degradação de proteínas defeituosas. Provavelmente foi esta propriedade, já há algum tempo vista como uma promissora linha de investigação no tratamento de doenças neurodegenerativas, que também chamou a atenção de Abreu para elas e o levou a repaginar seu sistema como um estimulador à sua produção pelo corpo, para ajudar a combatê-las, dado que várias delas têm sido associadas à síntese e acúmulo de proteínas defeituosas dentro e fora dos neurônios e no cérebro, levando à morte das células nervosas.

Desta forma, em outubro de 2019, em participação no programa “Leitura Dinâmica”, da Rede TV!, Abreu anunciava o sucesso de sua abordagem, então descrita como uma “cirurgia do futuro”. A curta reportagem apresenta supostos casos de recuperação de pacientes tratados pelo médico brasileiro, todos americanos diagnosticados com doenças neurodegenerativas, sendo dois portadores de ELA, entremeadas com explicações vagas sobre o procedimento. “Estamos conseguindo algo além, que é restaurar funções perdidas. O paciente que não conseguia andar volta a andar, que não conseguia comer, volta a comer. É a esperança, mas já com resultados”, comemorava.

Foi o bastante para deflagrar uma primeira onda de interesse pelo tratamento, com pacientes no Brasil e nos EUA lançando campanhas de doações para arcar com os altos custos da terapia – atualmente orçada US$ 1 mil (cerca de R$ 5,5 mil) adiantados para uma teleconsulta com um “médico assistente” de Abreu, mais US$ 36 mil (cerca de R$ 200 mil), também adiantados, por sessão de “indução”, sendo recomendadas, “no mínimo”, três delas em processos separados com duração de quatro dias cada, sem contar despesas com transporte e estadia na cidade de Aventura, Flórida, onde os procedimentos são realizados.

E também para uma primeira reação da comunidade médica e científica. Em comunicado divulgado à época, a Associação Paulista de Neurologia (Apan) já destacava a falta de evidências de eficácia da terapia e lamentava a exploração da esperança de cura dos pacientes. “É importante enfatizar que não há qualquer evidência na literatura médica ou estudos com metodologia científica que mostrem a eficácia, melhora clínica ou interrupção na progressão do processo degenerativo com o uso da ‘indução de proteínas de choque térmico’. Além disso, não há estudos suficientes que demonstrem segurança para o uso de tal método em seres humanos”, diz trecho do texto.

“Muitas vezes, a esperança pela cura de uma doença degenerativa faz com que os pacientes busquem por tratamentos ainda experimentais ou alternativos. Embora respeitando o direito dos pacientes de fazerem suas próprias escolhas, e para que estas escolhas sejam feitas com base em informações fidedignas, a Associação Paulista de Neurologia (Apan), comprometida com o dever social de informação médica, alerta aos profissionais de saúde, pacientes e seus familiares sobre informações sem a devida comprovação científica, divulgadas recentemente sobre o tratamento de doenças neurodegenerativas com uso da ‘indução de proteínas de choque térmico’”, conclui.

André Tal, no entanto, não deve ter lido esta nota. Em setembro do ano passado, o repórter da Record recebeu Abreu para uma longa entrevista no programa JR Mundo. Apesar do maior tempo de exposição, o médico brasileiro mais uma vez se mostrou confuso e vago ao explicar o procedimento e seu suposto mecanismo de ação. Isso não impediu, porém, que fizesse afirmações e promessas grandiosas de cura para doenças neurodegenerativas e até câncer, chegando a dizer que ainda “este ano (2021) o mundo verá a restauração de Alzheimer, ataxia, Huntington, Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica, destas doenças chamadas intratáveis e não reversíveis”.

Seduzido pelas promessas de Abreu, Tal, que até recentemente sofria em segredo de Parkinson, foi se tratar com ele, fazendo da experiência um extenso e emocionado relato exibido no início de dezembro passado no programa Domingo Espetacular, também da Record. A reportagem deu mais pistas de como funcionaria o procedimento. A terapia de indução parece consistir em levar o paciente a um estado de hipertermia (temperatura corporal elevada) de forma a estimular as células de seu corpo diretamente, e do cérebro indiretamente, a produzirem as tais proteínas de choque térmico. Esta produção endógena de HSPs, por sua vez, teria um efeito sistêmico, atacando os aglomerados nocivos no cérebro, nos casos de Alzheimer e Parkinson, por exemplo, ou promovendo a produção ou dobramento correto de proteínas defeituosas, nos casos de esclerose múltipla e ELA.

 

Sinais de alerta

A revelação de Tal e seu relato do tratamento com Abreu impulsionaram outra onda de reportagens sobre a terapia oferecida pelo médico brasileiro, e de interesse de pacientes e seus parentes desesperados por uma cura para suas doenças. O que eles ignoram, porém, são os muitos sinais de alerta de que tudo não passa de promessas vazias de resultados sem qualquer comprovação científica.

Para além de seu caráter “milagroso”, um primeiro motivo de suspeita é a ampla gama de doenças atualmente “intratáveis”, como ele mesmo declarou, que Abreu diz ser capaz de curar. Com etiologias (isto é, origens e causas) diversas e, em alguns casos, ainda pouco compreendidas, é muito improvável que um mesmo procedimento seja a solução para todas. Ainda mais praticamente sem qualquer risco de reações adversas, como o médico brasileiro insiste em destacar, fenômeno raro na medicina, mas também muito salientado por praticantes de outros pseudotratamentos “médicos”, como homeopatia, ozonioterapia e terapia neural.

Outro ponto importante é a falta de estudos envolvendo indução da produção de proteínas de choque térmico por meio de um estado de hipertermia para tratamento de doenças neurodegenerativas, conforme proposto por Abreu, na literatura científica, e a absoluta ausência do médico brasileiro como autor de qualquer artigo sobre o tema. Além disso, numa linha de investigação farmacológica que poderíamos ver como paralela ao suposto mecanismo de ação de sua terapia, ensaio clínico de fase 3 com um remédio chamado Arimoclomol, que atuaria estimulando a produção destas proteínas, falhou recentemente em mostrar qualquer benefício em pacientes de ELA.

“Proteínas de choque térmico (HSPs) também são notoriamente difíceis de induzir em neurônios por meio do calor (como nesta terapia), portanto, com base na evidência que existe na literatura, este tratamento provavelmente induziria apenas proteínas de choque térmico nas células de suporte (gliais), que é um estudo que não tem dados significativos para respaldar um efeito positivo em modelos de laboratório”, frisa nota divulgada por uma associação de pacientes, familiares e amigos de vítimas de ELA após a exibição das recentes participações do médico brasileiro em programas da Record, não sem antes notar que “se houvesse dados, ou se isso fosse um caminho realmente promissor, teria sido estudado em um ensaio clínico legítimo. Se soubéssemos que ele era realmente capaz de fazer o que o Dr. Abreu sugere, seria oferecido em clínicas de ELA em todo o mundo”.

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Some-se a isso a série de meias-verdades declaradas ou tacitamente permitidas por Abreu sobre ele e sua terapia, bem como a omissão de informações e dados relativos ao seu suposto uso ainda experimental, e temos completa a anatomia de uma promessa vazia. Na entrevista de setembro passado ao JR Mundo, por exemplo, Abreu em mais de uma ocasião deixa Tal o apresentar como “pesquisador da Universidade de Yale” e afirma estar trabalhando em associação com a instituição, e seguindo suas regras, em ensaios clínicos envolvendo sua terapia. Procurada, porém, a Universidade de Yale nega qualquer vinculação atual do médico brasileiro com a instituição, ou ter qualquer informação sobre seu paradeiro e atuação.

Além disso, buscas no ClinicalTrials.gov, plataforma do governo americano para registro e acompanhamento de ensaios clínicos, não acusam qualquer estudo envolvendo indução de proteínas de choque térmico para tratamento de doenças neurodegenerativas. Nem nada relacionado ao nome de Abreu ou à BTT Corp como investigadores ou patrocinadores de alguma pesquisa, algo que seria exigido se ele de fato estivesse conduzindo experimentos em associação com Yale. Isso sem contar que, na mesma entrevista ao JR Mundo, o médico prometeu divulgar os resultados do suposto ensaio clínico até o fim de 2021 – e não cumpriu, dada sua ausência na literatura científica até agora.

Outra omissão importante é quanto às repetidas informações na mídia de que sua terapia já contaria com “aprovação da FDA”. Mas a autorização da agência americana de controle de medicamentos e alimentos cobre apenas a comercialização do Abreu BTT 700 como um sistema de monitoramento da temperatura do cérebro, isto é, um termômetro supersofisticado, não envolvendo qualquer uso terapêutico, e tampouco da câmara, parecida com um aparelho de ressonância magnética, que o médico brasileiro aparece usando para provocar a hipertermia de seus pacientes.

Por fim, tanto na primeira entrevista com Tal quanto no relato posterior do tratamento do repórter da Record, Abreu primeiro afirma que cura seus pacientes para depois ressalvar que isso nem sempre acontece, transferindo a responsabilidade para o paciente. “Não sou eu que restauro. É o cérebro do paciente que restaura (as funções perdidas)”. É uma linguagem que se afasta da ciência e se aproxima muito do que se vê no comércio da crendice e da fé: sucessos são mérito do sacerdote ou profeta, fracassos são culpa do fiel.

 

Críticas de especialistas

Como resumiu a neuropsicóloga Sharon Sanz Simon, atualmente fazendo pós-doutorado da Universidade de Colúmbia, EUA, onde trabalha com envelhecimento e neurociência, em especial de pacientes de Alzheimer, não é assim que se fazem pesquisas sérias, principalmente neste campo.

“Pode até ser que ele tenha algo interessante na mão, mas acho que tem um problema ético sério aí”, diz. “Ele está claramente trabalhando à margem da comunidade científica na área, fazendo algo que não vemos nem na literatura nem em congressos, que não está em lugar nenhum. Ele também parece estar tirando conclusões precipitadas sobre a eficácia da terapia que uma investigação científica séria não permitiria. A falta de método e transparência na investigação também torna tudo muito suspeito. Se ele quisesse de fato provar que o que faz funciona, deveria fazer um estudo piloto com uma universidade, registrar e publicar para avaliação dos pares. Ele tem que mostrar seus dados, mas não é o que estamos vendo”.

Consultada, a Academia Brasileira de Neurologia (ABN) reiterou nota divulgada pouco após a exibição da reportagem sobre o tratamento de Tal, na qual destacou a falta de evidências da terapia proposta por Abreu e chega a apontar que o médico brasileiro pode estar incorrendo em infração ética. “É essencial que seja cada vez mais evidenciado à população que todo procedimento terapêutico deve obrigatoriamente passar por rigorosa etapa de testes para confirmação de eficácia e segurança antes de ser aplicado clinicamente”, diz o texto.

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“Em não havendo evidências de efetividade à luz da Ciência, a adoção é estranha aos postulados da Medicina. Assim, configura infração ética, inclusive por expor pacientes a riscos e/ou perdas econômicas, dependendo de cada caso. Promessas de melhora ou cura em episódios de doenças tão graves – sem sólida base científica – são um ardil em geral, e especialmente em episódios de saúde tão graves que, não raramente, fragilizam pacientes e seus familiares. Pelo exposto, condenamos a utilização e a infundada criação de expectativas sobre o método de indução de proteínas de choque térmico, pela inveracidade e improcedência”, conclui.

Mesma linha seguida pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN), que também em nota divulgada em dezembro último ressalta que Abreu “é um estudioso em termometria (estudo da temperatura e suas formas pelas quais a mesma pode ser medida) e seus trabalhos são exclusivamente sobre estes assuntos”. “O tratamento proposto pelo médico brasileiro que reside nos Estados Unidos Dr. Marc Abreu, que diz ter conseguido resultados promissores com um método de indução de proteínas do choque térmico que desenvolveu para doenças neurodegenerativas, ainda não possui eficácia comprovada cientificamente”, informa o texto. “A SBN entende que essas novas opções de tratamentos geram grandes expectativas e ansiedade em quem sofre dessas patologias e em seus familiares, mas ressalta que toda nova possibilidade de intervenção terapêutica deve passar por uma rigorosa etapa de testes clínicos com estudos multicêntricos, para que a sua eficácia e segurança seja efetivamente demonstrada”, acrescenta a SBN.

Procurado pela Revista Questão de Ciência, Marc Abreu não respondeu aos questionamentos e pedidos de informações sobre a aplicação e os estudos envolvendo sua terapia de indução de proteínas de choque térmico até o fechamento deste texto.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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