Suplementos de melatonina não curam insônia

Questão de Fato
9 dez 2021
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Em 14 de outubro, a Diretoria Colegiada da Anvisa autorizou, por unanimidade, a fabricação e venda no Brasil de suplementos alimentares com melatonina, substância conhecida popular e incorretamente como “hormônio do sono”. A agência determinou uma dose diária máxima de 0,21 mg, e o produto não deve ser consumido por menores de idade, gestantes ou lactantes.

A melatonina costuma ser propagandeada como um tratamento leve e sem efeito colaterais para insônia, problema que, quando requer tratamento medicamentoso, normalmente é enfrentado com drogas como o zolpidem, que vicia e pode gerar efeitos colaterais graves, como alucinações. Alega-se ainda que a versão sintética da molécula ajuda a “acertar” o relógio biológico em pessoas com jet lag, cujo organismo está se adaptando a um fuso horário diferente após uma viagem de avião.

Até então, comprimidos ou cápsulas com melatonina só podiam ser encontrados no Brasil se importados ou produzidos sob encomenda em farmácias de manipulação. Embora a liberação já tenha mais de um mês, o assunto veio à tona na última semana, quando os frascos começaram a chegar às farmácias.

De acordo com o jornal O Globo, havia uma grande demanda reprimida. Uma única fabricante, a Macrophytus, enviou 85 mil potes a mais de 4 mil drogarias e 116 distribuidoras. A embalagem da Macrophytus contém 30 comprimidos mastigáveis, cada um com as 0,21 mg regulamentares.

Apesar da aprovação do produto em si, a Anvisa ressalva que “não foram aprovadas alegações de benefícios associadas ao consumo de suplementos alimentares à base de melatonina”. É ainda questionável rotular o produto como suplemento alimentar, já que a melatonina, embora apareça em alguns alimentos, não é um nutriente e não precisa ser ingerida regularmente em uma dieta saudável. A agência não respondeu ao pedido de esclarecimento da RQC.

Além disso, a Academia Americana de Medicina do Sono, o Centro Nacional para Medicina Integrativa e Complementar do NIH, o American College of Physicians e outros órgãos de referência dos EUA não recomendam melatonina em suas orientações de conduta oficiais – e enfatizam que não há evidências fortes o suficiente a sustentar a eficácia da substância contra a insônia crônica. A primeira orientação para pacientes com dificuldade para dormir é a terapia cognitivo-comportamental, realizada com um psicólogo.

Para entender por que a melatonina não é exatamente um suplemento e por que sua eficiência é questionada até pela própria Anvisa, precisamos primeiro entender o que esse hormônio realmente faz no organismo.

 

A mensageira da noite

A melatonina é um hormônio produzido principalmente na glândula pineal, localizada no centro da cabeça, logo abaixo do cérebro. Outros tecidos e órgãos, como as retinas, também a fabricam em menores quantidades. Embora seja um clichê chamá-la de “hormônio do sono”, essa é uma definição incorreta: a melatonina não faz ninguém dormir. Ela é uma molécula-relógio, que circula no sangue informando as células de que é noite.

A glândula pineal tem coloração vermelho-acinzentada, o tamanho aproximado de um caroço de azeitona e, do ponto de vista celular, é formada por neurônios modificados. Ela existe em quase todos os vertebrados e é intimamente associada ao cérebro. Por sua localização privilegiada no meio do crânio, René Descartes especulou que fosse a morada da alma.

Calhou que a alma não estava lá, mas a dita-cuja tem uma história evolutiva interessante. Em certos répteis e anfíbios, a glândula pineal conta com uma saída para o mundo exterior, localizada no meio da testa e chamada de olho parietal ou terceiro olho. Trata-se de um trechinho de tecido sensível à luz, similar ao das retinas, que ordena a produção de melatonina por estímulo direto, quando anoitece. Em seres humanos, a glândula não tem mais acesso ao ambiente externo, e depende dos olhos para saber as condições de luminosidade.

O alinhamento dos processos que ocorrem no interior do corpo com a alternância entre o dia e a noite (os chamados ciclos circadianos) é essencial para a vida na Terra. Todos os animais – ou melhor, todos os seres vivos, incluindo plantas, fungos e bactérias – produzem melatonina para sinalizar que está escuro. Mesmo os que têm hábitos noturnos e atingem o ápice de sua atividade de madrugada. 

Isso significa que a molécula não é capaz de induzir sono por conta própria. Ela apenas avisa que anoiteceu; cada espécie utiliza esse sinal para guiar seu próprio conjunto de hábitos noturnos – que podem envolver caça, acasalamento etc. 

 

Revisando as evidências

Regina Markus, especialista em cronofarmacologia do Instituto de Biociências da USP, reforça a explicação acima. Em suas palavras, a melatonina “abre os portões do sono” quando se conecta a certos receptores no cérebro. Entrar ou não fica a critério de cada um. Afinal, é possível adormecer em plena luz do dia, e manter-se acordado uma madrugada inteira. Há uma diferença entre avisar o corpo que é hora de dormir e efetivamente induzir o sono.

A maior parte das pessoas que sofrem de insônia não tem um problema com a melatonina em si: o hormônio está lá, mas elas não dormem por outras questões de ordem ambiental, psicológica ou fisiológica. Estresse, depressão e ansiedade, má alimentação, consumo de cafeína em horários inadequados, problemas de saúde crônicos, rotinas desregradas etc. têm, todos, seu quinhão de responsabilidade.

Outra questão é a enorme variabilidade individual: cada pessoa produz melatonina em maior ou menor quantidade; e a diferença de concentração do hormônio entre o dia e a noite é crucial para que o relógio biológico funcione bem (segundo a Anvisa, em média o pico de melatonina ocorre entre 3 e 4 da manhã, e a concentração noturna é de 10 a 20 vezes superior à diurna). Cada caso é um caso; um paciente com variações modestas no gráfico de melatonina pode, hipoteticamente, reagir melhor à suplementação.

Todas essas incertezas tornam um pouco nebulosa a literatura disponível sobre o uso terapêutico de melatonina.

Por exemplo: há uma boa quantidade de testes clínicos controlados randomizados e duplo-cegos (RCT), que são o padrão-ouro da testagem de fármacos, mostrando que uma dose extra de melatonina é capaz de reduzir o tempo decorrido entre o momento em que uma pessoa saudável vai se deitar e o momento em que ele começa a dormir – a chamada latência do sono. Esta meta-análise de 2010, por exemplo, encontrou cinco estudos confiáveis neste tópico, que identificam uma queda média de 23 minutos no tempo de adormecimento dos voluntários testados.

Também há algumas evidências de que a melatonina traga vantagem contra o jet lag: uma meta-análise de 2002, que revisou dez testes com grupo placebo e outras garantias de qualidade metodológicas, verificou que ela ajuda viajantes a dormir, e que doses mais altas, de 5 mg, funcionam melhor que doses mais baixas, de 0,5 mg.

Não há, porém, qualquer evidência de que a suplementação ajude com insônia. O Centro de Práticas Baseadas em Evidências da Universidade de Alberta, no Canadá, realizou uma meta-análise de 16 RCTs sobre eficácia e segurança da melatonina (selecionados a partir de uma lista de mais de 900 estudos, em sua maior parte excluídos da amostra por problemas metodológicos ou outras limitações).

Eles concluíram que “não há evidências para sugerir que a melatonina seja eficiente no tratamento da maior parte dos problemas de sono quando usada em curto prazo (4 semanas ou menos) (...) Há alguma evidência para sugerir que a melatonina é eficaz em tratar a síndrome do atraso das fases do sono [um problema em que o relógio biológico é naturalmente atrasado e o paciente se sente mais confortável dormindo e acordando em horários inaceitáveis socialmente]”. Em suma: a melatonina sintética só parece ser eficaz no caso em que o corpo de um paciente não está sendo capaz de distinguir a noite do dia.

Essa mesma meta-análise não encontrou qualquer sinal de que a melatonina seja eficaz em doses inferiores a 1 mg diário, quase cinco vezes mais altas que o máximo recomendado pela Anvisa (0,21 mg).

Curiosamente, uma outra meta-análise realizada pelo mesmo grupo de pesquisadores de Alberta, um ano depois, em 2006, não só contradiz as conclusões anteriores como aponta que “não há evidências de que a melatonina seja eficaz contra distúrbios do sono que acompanham restrição do sono, como jet lag e mudanças de turno de trabalho”. Ou seja: a maior parte das questões em torno da eficácia da melatonina permanece em aberto. Estudos com mais voluntários e metodologia mais refinada são necessários para determinar ao certo que eficácia pode ter – se é que tem alguma – contra diferentes problemas na seara do sono.

A própria Anvisa analisou esses e outros estudos e meta-análises antes de aprovar os suplementos de melatonina, e chegou a conclusões parecidas. Além disso, a agência admite que os artigos científicos enviados pelas fabricantes de suplementos no processo de aprovação não tinham qualidade o suficiente para servir de evidência (a agência fez sua própria busca na literatura e acabou usando outros materiais).

Em resumo: a melatonina talvez seja eficaz contra distúrbios como jet lag ou síndrome do atraso das fases do sono; com certeza é ineficaz contra a maior parte dos tipos de insônia; e aparentemente é inofensiva do ponto de vista da segurança, ao menos em pessoas saudáveis. Qualquer afirmação além disso exigiria mais estudos. O que existe são dois problemas de desinformação: as promessas descabidas e a caracterização como suplemento alimentar, como se o hormônio fosse uma vitamina.

“Considerar isso um suplemento alimentar é tirar da população o direito de saber o que é um hormônio”, diz Regina Markus. Ela explica que a melatonina é uma molécula bastante inofensiva do ponto de vista toxicológico, e que em doses baixas provavelmente não haveria problema algum em vendê-la sem receita nas farmácias. Porém, é imprescindível esclarecer que se trata de um remédio com aplicação limitada a casos específicos, e não de uma vitamina ou qualquer outro nutriente que falte na alimentação. Tampouco de uma panaceia, capaz de lançar qualquer um nos braços de Morfeu.

Nota: alguns trechos do texto original falavam em "gramas" (g) em vez de "miligramas" (mg). Fizemos a correção em 20 de dezembro de 2021. 

Bruno Vaiano é jornalista

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