Fábricas de artigos falsos expõem fragilidade da publicação acadêmica

Questão de Fato
23 nov 2021
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Quando um pesquisador realiza um teste em laboratório ou faz uma observação da natureza, ele informa os colegas de seus resultados por meio de um artigo científico. Trata-se de um relato meticuloso do passo a passo de um experimento e seu resultado, com gráficos, imagens e o equivalente a umas 20 páginas de texto tamanho 12 no Word.

Periódicos dedicados a fazer circular resultados científicos são quase tão antigos quanto a imprensa, e revistas centenárias, como “Nature” e “Lancet”, seguem sendo publicadas. Mas o formato padrão do que hoje se reconhece como “artigo científico” popularizou-se a partir do final da 2ª Guerra Mundial – quando o investimento público em pesquisa explodiu em avanços na ciência –, e levou à expansão e transformação  da indústria editorial voltada a dar conta desse tipo de conteúdo. Editoras especializadas publicam dezenas ou centenas de periódicos (ou journals, em inglês) para compilar descobertas em áreas tão específicas quanto a história do Caribe ou a química dos adesivos.

A questão é que o prestígio do periódico que aceita publicar o trabalho de um cientista converteu-se, ao longo do tempo, num atalho heurístico para estimar a qualidade do estudo publicado. Menos de 5% dos artigos enviados a revistas renomadas como a “Cell” ou a “Nature” passam pelo crivo dos editores. Emplacar um paper nesses cachorros grandes é um passo central para agências de fomento e universidades passarem a prestar atenção na carreira do pesquisador e concederem bolsas e financiamento para suas pesquisas.

 

Incentivo chinês

O que nos leva à China – onde, ao longo das últimas décadas, médicos e estudantes de medicina foram obrigados a emplacar resultados de pesquisa em publicações minimamente relevantes para conseguir prêmios em dinheiro, promoções ou títulos importantes.

Essa e outras políticas de incentivo à pesquisa – interrompidas em fevereiro de 2020 por servirem de combustível para práticas desonestas e gerarem ciência de má-qualidade – eram parte de uma pressão do Partido Comunista para inflar artificialmente os números da produção científica na China e equipará-la à dos EUA, meta alcançada em 2018.

O problema, no caso específico dos profissionais da saúde, é que muitos deles não têm interesse na carreira acadêmica – e já atuam como clínicos ou cirurgiões em tempo integral, sem horários vagos para dedicar à bancada do laboratório. Além disso, os que trabalham em hospitais de províncias mais humildes não têm o equipamento nem a verba necessários para conduzir estudos de calibre.

 

 

Fábricas de conteúdo

Para atender essa clientela sob pressão do governo, surgiram os paper mills (em inglês, “moinhos de papel”): indivíduos ou pequenas empresas clandestinas especializadas em falsificar artigos inteirinhos, da hipótese à conclusão. São fábricas de experimentos fictícios, imaginados apenas para cumprir a cota.

A microbiologista holandesa Elizabeth Bik e seus colegas anônimos Smut Clyde, Morty e Tiger BB8 – todos pseudônimos com referências pop – ganharam alguma fama no meio acadêmico durante a pandemia, quando passaram a investigar e denunciar voluntariamente essa prática. (Bik até presta consultorias pagas, mas passa a maior parte do tempo sendo detetive pro bono.)

Eles atualizam constantemente uma planilha de Excel que, na data de conclusão deste texto, já continha 628 artigos fraudulentos oriundos de paper mills. O arquivo indica quais já foram retirados do ar e quais permanecem publicados. O quarteto costuma publicar suas descobertas em textos debochados no site For Better Science.

Um paper mill específico descoberto entre janeiro e fevereiro de 2020 foi apelidado de “Moinho do Girino”, porque um certo tipo de gráfico que aparece em todas as publicações forjadas contêm silhuetas que lembram os filhotes de anfíbios. Ele nem de longe é o único do ramo, embora seja o mais prolífico já descoberto, com mais de 500 artigos publicados.

Recomendações de clientes satisfeitos se espalham em conversas de corredor; não há perfis em redes sociais ou um site oficial. Outros dois moinhos (cuja existência Bik e seus colegas deduzem das repetições de certos gráficos e imagens) já acumulam respectivamente 112 e 87 artigos. É possível delimitar a geografia do fenômeno até certo ponto, porque o grosso dos usuários do serviço trabalha em alguns poucos hospitais chineses. Consulte a lista aqui.

O mercado editorial também tem alvos típicos. Um único periódico, o Jounal of Cellular Biochemistry da editora Wiley, continha 129 artigos falsificados sob encomenda em seus arquivos. Nenhum deles foi pego originalmente pelos editores ou pela revisão por pares. O escândalo os motivou a publicar uma edição especial, inteiramente dedicada à retratação desses papers

Embora haja um pico de interesse da comunidade científica pelo assunto neste momento, abastecido pelas denúncias do For Better Science, ele não é novidade. “Se você ligar os pontos, há evidências de indivíduos e empresas fazendo esse tipo de coisa há pelo menos dez anos”, diz Ivan Oransky do Retraction Watch – um observatório online dedicado a listar artigos científicos retirados do ar por problemas éticos ou metodológicos.

Em 2013, a revista "The Economist" já noticiava uma cena de filme: policiais disfarçados fazem uma batida no escritório de um paper mill em Beijing enquanto os falsificadores tentam fugir e arremessam uma fortuna em dinheiro vivo por uma janela. O saco arrebenta e um volume de notas de yuan com valor total equivalente a US$ 50 mil chove sobre os transeuntes. Em 2009, a Universidade de Wuhan já estimava que essa indústria clandestina movimenta US$ 150 milhões por ano – sinal de que só conhecemos a ponta do iceberg.

Dá certo porque é um serviço sofisticado. “Os artigos de paper mill que já vi não são de altíssima qualidade, mas são decentes o suficiente para enganar um revisor destreinado”, explicou Elizabeth Bik à RQC. (Ela se refere à revisão por pares, um procedimento adotado por todos os periódicos em que outros pesquisadores da mesma área leem o artigo antes da publicação, geralmente sem receber remuneração.)

“A maioria deles versa sobre o papel de moléculas chamadas RNAs não codificantes no câncer ou outras doenças. As introduções são curtas, mas listam alguns outros trabalhos na mesma área. Os métodos parecem ser razoáveis, e os artigos contêm fotos de células e tecidos, bem como gráficos convincentes. O inglês é bom, os experimentos fazem sentido. É difícil saber que eles são falsos se você olhar apenas um deles”.

 

Girinos 

Otto Kalliokoski e James Heather chamam atenção para a escolha dos temas pelo Moinho do Girino: existem muitos pesquisadores especialistas nesses RNAs, e mais gente ainda se dedicando a estudar todo tipo de tumor. O cruzamento entre os dois assuntos, porém, ainda é relativamente inexplorado na biomedicina. Se os responsáveis pela revisão por pares não têm familiaridade com o combo de temas, fica mais difícil perceber o golpe.

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Essa escolha certeira leva a crer que os ghost writers sejam doutorandos ou pesquisadores de pós-doutorado atrás de uma grana extra, familiarizados com a rotina na bancada do laboratório e armados de truquezinhos de Photoshop que já empregam para engambelar seus orientadores. São falantes nativos de inglês, ou pelo menos têm muita familiaridade com a língua e o jargão acadêmico. Os endereços de email usados para enviar o material são suspeitos, mas isso não parece gerar desconfiança nos editores.

Outra sacada por trás do esquema é que os artigos repetem a mesma estrutura conceitual, mas jamais a mesma redação: os falsificadores usam sinônimos e mudam a construção das frases, para evitar programas automatizados de detecção de plágio.

Bik explica: “Você só começaria a suspeitar de algo depois de perceber que há centenas de artigos escritos no mesmo estilo, baseados em um mesmo modelo padronizado, mas com ligeiras mudanças nos números e gráficos. Normalmente, quem faz a revisão por pares vê só um paper de cada vez, mas os editores de periódicos que recebem dúzias desses artigos deveriam ter desconfiado”.

O olho afiado de Bik a tornou uma celebridade de nicho no Twitter, com perfil verificado e 114 mil seguidores. Ela posta constantemente imagens suspeitas que pesca nas fraudes (como, por exemplo, fotos genéricas de tecidos humanos no microscópio que se repetem em três ou quatros papers diferentes, sem relação alguma entre si).

 

Revisão em crise

Pelos motivos listados acima, textos e fontes consultados pela RQC acreditam que os pares revisores não fazem parte do esquema, nem recebem propina. Tentativas hipotéticas de compensação financeira já teriam gerado pelo menos algumas denúncias nessa altura do campeonato, caso fossem frequentes. A revisão por pares, em geral, é um processo honesto.

Seus defeitos são outros: da maneira como está organizada hoje, é superficial demais para detectar sistematicamente fraudes, plágios, infrações éticas ou erros na manipulação de estatísticas. “Os revisores não fazem metade do que os periódicos querem que a gente acredite”, diz Oransky. “Nós temos 31 mil retratações no nosso banco de dados, cada uma delas é um caso em que não houve todo o escrutínio possível”.

Se é que há alguém envolvido do lado do mercado editorial, provavelmente são os editores – talvez de forma passiva, fazendo vista grossa porque os artigos falsos preenchem as páginas de publicações sem muita projeção, e as citações cruzadas entre eles ajudam a dar um gás na posição do periódico em rankings de impacto científico.

Um aspecto importante da atuação dos paper mills é que eles enviam os trabalhos falsos para títulos que estão no meio-termo da cadeia alimentar científica. As revistas mais badaladas, como “Science” ou “Nature” têm um corpo de editores mais seletivo e apto a identificar as fraudes. Por outro lado, os journals abertamente picaretas e predatórios, que publicam qualquer coisa por dinheiro, não são bem ranqueados o suficiente para serem reconhecidos por universidades ou agências de fomento (e, portanto, não atendem à necessidade dos médicos e pesquisadores que pagam pelo serviço de falsificação).

Vale aprofundar a explicação com um pouco de academiquês: o Scimago Journal & Country Rank (SJR) avalia e ranqueia mais de 34 mil títulos de 5 mil editoras diferentes. Desse enorme total, os 25% que publicam artigos com mais citações (dentre outras métricas de relevância) são colocados no chamado “primeiro quartil”, ou simplesmente Q1. Os piores ficam com a etiqueta Q4. Os paper mills miram em certos periódicos Q2 ou Q3, e os falsificadores são íntimos o suficiente da indústria para saber quais são os mais permeáveis.

 

Indústria pujante

Os paper mills são parte de uma coleção mais ampla de empresas do ramo acadêmico que trabalha às margens da legalidade e que às vezes mantém sites oficiais. Muitas se vendem como consultorias para cientistas de países asiáticos, cujos pesquisadores precisam de uma mãozinha com o inglês para se adequar aos padrões da linguagem acadêmica. Na prática, oferecem serviços paralelos, como a possibilidade de inserir sua assinatura em artigos de que você não participou, por taxas nada módicas.

Por exemplo: a Science Publisher Company opera desde 2012 na Letônia, uma pequena ex-república soviética às margens do Mar Báltico. Na home do site oficial, a empresa parece oferecer serviços de tradução, revisão e edição para pesquisadores sem fluência em inglês – e se orgulha de já ter mediado a publicação de mais de 12 mil artigos científicos em periódicos especializados.

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Navegando um pouquinho, o cardápio de serviços se revela mais amplo. Por exemplo: pagando US$ 775 – o equivalente a R$ 4,2 mil no câmbio atual – qualquer cliente pode inserir o próprio nome na lista de autores do artigo científico “Uso de resíduos de fábricas de polpa de tomate como fonte de alimento em rações para frangos de corte”, e levar crédito por um estudo de que não participou.

Quem não for agrônomo ou engenheiro de alimentos não terá dificuldade em encontrar uma opção mais adequada à própria carreira, já que há centenas de estudos disponíveis, em áreas que vão da química à pedagogia. Na hora da venda, os títulos e abstracts (resumos) são modificados para que seja difícil notar a correspondência entre a versão final publicada e o anúncio ilegal no site letão.

Em entrevista ao Retraction Watch, Nandita Quaderi, editora-chefe do banco de dados científicos Web of Science, especula que os artigos de sites desse tipo relatem pesquisas reais – ao contrário das fraudes produzidas por paper mills. Seus autores topam dividir o crédito com pagantes para ganhar uma grana extra.

O esquema é possível por causa de uma brecha que permite adicionar assinaturas a um artigo depois que ele já foi aprovado para publicação. Novamente, as maiores vítimas são periódicos Q2 ou Q3, em que a prática de incluir colaboradores após a aprovação nem sempre levanta a devida suspeita.

 

Cultura competitiva

A existência de assinaturas e pesquisas falsas é consequência de uma cultura denominada publish or perish – “publicar ou perecer”. Em vez de produzir ciência honesta com um ritmo humanizado, pesquisadores de todo o mundo se veem obrigados a cuspir artigos rápido (para cumprir a cota de exigida por universidades e agências de fomento) e a maquiar as conclusões para torná-los mais atraentes para os editores. Resultados contraintuitivos e chamativos acabam vendendo melhor.

Um dos médicos chineses denunciados escreveu ao For Better Science: “Eu queria ter algum tempo para fazer pesquisa científica, mas é impossível. Durante o dia, faço cirurgias; depois do trabalho, preciso cuidar das crianças. Tenho um tempinho para mim apenas após às 22h, não é suficiente para o laboratório, porque a ciência demanda muito tempo. Vocês nos expõem, mas há milhares de outras pessoas fazendo o mesmo. Enquanto as regras do jogo permanecerem as mesmas, a falsificação de dados vai continuar”.

Por ora, há muitas medidas que todos os atores envolvidos podem adotar. Os periódicos precisam reconhecer cada vez mais as falhas no processo de edição e revisão por pares, investigar os próprios arquivos e acelerar as retratações quando investigadores externos encontram material suspeito (além de creditá-los, é claro: Bik explica que ela, seus colegas anônimos e outras pessoas que dedicam tempo a investigar os paper mills, como Jana Christopher e Jennifer Byrn, frequentemente não são citados nos pedidos de desculpas.)

Em longo prazo, agências de fomento, universidades e governos podem diminuir a importância que atribuem ao volume de publicações e citações na hora de avaliar seus cientistas. Boas ideias não podem ser fabricadas em escala industrial; um Newton não teria chance na ciência frenética do século 21.

 

Bruno Vaiano é jornalista

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