Melzinho, ponto H e “viagra” natural: um guia para os perplexos

Questão de Fato
21 out 2021
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O que Vampeta, Sérgio Mallandro e MC Kevin têm em comum? Os três já usaram ou recomendaram o uso do “melzinho do amor” (ou “melzinho da revoada”) – um sachê com 15 gramas de conteúdo adocicado e composição incerta, vendido por R$ 20 ou R$ 30 em camelôs, adegas, sex shops e sites que fazem o antivírus apitar, angustiado.

A promessa para os usuários, em geral homens, são dois ou três dias contínuos de ereção garantida. Rótulos e vendedores ambulantes insistem que não há nada sintetizado em laboratório na receita: apenas ingredientes como mel, café, gengibre e afrodisíacos folclóricos (falaremos mais deles adiante).

Durante a pandemia, o produto irregular virou aquecimento obrigatório para bailes funk onde máscaras e distanciamento eram, na melhor das hipóteses, opcionais. Em julho, a Anvisa proibiu a fabricação e comercialização de três marcas de melzinho. Na época, o Procon tirou mais de 14 mil anúncios do ar, mas enxugou gelo: o Google ainda dá 610 mil resultados – funkeiros famosos admitem recomendar o melzinho por serem fãs autênticos, sem receber contrapartida, já que ninguém sabe a origem do produto para propor uma parceria.

“Muita gente não conhecia essa parada”, comentou MC Ryan SP em um podcast da produtora de funk Kondzilla. “Já existe há muito tempo. Quando eu comecei a falar nas músicas (...) o pessoal despertou. Os outros até acham que eu sou representante do melzinho. Alô, melzinho, manda o dinheiro na minha conta”.

A embalagem tem o tamanho de um pacotinho de ketchup. Marcas não faltam, das elegantes às cafonas. A caixa do Power Honey tem estética de motel barato: preta e rosa, com uma ilustração de abelhinha. O Organic Honey, por sua vez, parece um saquinho de chá hipster. E o rótulo do Alibaba Power Honey faz jus ao nome: dourado, com uma mesquita.

O mistério é que parece funcionar. Nas palavras de Vampeta, “o guerreiro fica que fica”. Alguns usuários reclamam que o pênis chega a doer. Tantas resenhas laudatórias levaram o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Unicamp a passar dois sachês de Power Honey e um de Alibaba por um procedimento chamado cromatografia – que identifica a composição química de uma amostra. Calhou que, de natural, o mel não tinha nada. Era a mesma molécula (artificial, sintética, criada em laboratório) que existe nos comprimidos de Viagra.

O CIATox encontrou 15,7 miligramas do princípio ativo sildenafila na versão masculina do Power Honey, e 14,1 mg na feminina (sim, feminina: quando estourou a moda, os fabricantes se apressaram em expandir o público-alvo, mas sem mudar a fórmula). São doses inferiores ao conteúdo do comprimido azulzinho mais comum, com 50 mg.

Os sachês continham ainda doses bem mais generosas de tadalafila, o famoso Cialis – concorrente do Viagra fabricado pela farmacêutica Eli Lilly. São 38,5 mg na versão masculina e 51,5 mg na feminina, mais que o dobro dos 20 mg de um comprimido legalizado.

“O material chega com a história de que é um produto natural”, diz o farmacêutico José Luiz da Costa, coordenador do CIATox. “Isso já aconteceu mais de uma vez. Aparece um fitoterápico com propriedades anti-inflamatórias, por exemplo, e quando você vai ver, está cheio de diclofenaco [fármaco anti-inflamatório conhecido pelo nome comercial Voltaren].”

Os dados citados acima vieram de uma análise preliminar publicada em setembro. Desde então, José e sua equipe testaram outros três sachês. Do total de seis, quatro continham um ou dois vasodilatadores. Um artigo com uma análise mais detalhada (que dirá, inclusive, se o líquido viscoso é mesmo mel) está para sair em um periódico especializado.

Drogas para disfunção erétil são especialmente perigosas para homens mais velhos com problemas cardíacos crônicos. Mas a mistura de sildenafila e tadalafila com álcool é capaz de baixar a pressão arterial além de limites seguros em qualquer pessoa, principalmente quando as duas drogas aparecem em doses superiores às indicadas na bula – e misturadas com um circo de outras substâncias que a equipe do CIATox ainda não mapeou.

No caso do sachê supostamente feminino, o risco vem sem recompensa, já que a ação dos vasodilatadores não tem nada de afrodisíaca: é meramente fisiológica. “Esses medicamentos para disfunção não mexem em nada com a libido”, diz José. “Só atuam na ereção, e a ereção tem que ser provocada. Eles não vão causar nada sem estímulo”. 

 

Ereções botânicas

O melzinho, embora não exatamente uma dádiva da natureza, é só o item mais recente em uma longa lista de produtos alardeados como viagras naturais”. Dentre os mais populares estão a ioimbina, a raiz de ginseng coreana, a maca peruana, o feno grego, e uma erva daninha de nome científico Tribulus terrestris. Como é praxe, os artigos científicos que dão resultados positivos para esses produtos costumam ter erros de metodologia ou aparecer em periódicos de reputação questionável.

Antes de falar dos veredictos desses produtos, vale explicar em linhas gerais como os cientistas batem o martelo (ou não). Teste clínicos sérios têm duas características: são randomizados e duplo-cegos. Essas palavrinhas-chave significam que: 1. os voluntários recrutados (no caso, com disfunção erétil) são divididos aleatoriamente em dois grupos. 2. Um dos grupos toma o produto que está sendo testado; o outro, um placebo. Nem os cientistas nem os voluntários sabem quem recebeu o quê.

Mesmo esses procedimentos não vão render conclusões valiosas se o número de voluntários for muito pequeno (o ideal é passar da casa das centenas). Outro critério importante é o da reprodutibilidade: quando uma droga se mostra superior ao placebo em um teste, espera-se que ela mantenha um desempenho parecido em testes futuros, realizados em condições similares.

Por isso existem, por exemplo, artigos de revisão sistemática. De tempos em tempos, pesquisadores mais experientes tomam a iniciativa de ler todos os estudos que foram publicados, dentro de uma certa janela de tempo, sobre um produto. Eles avaliam o método empregado e o número de voluntários em cada um para selecionar os trabalhos mais confiáveis, e então observam se os resultados são regulares o suficiente para chegar a uma conclusão – seja a favor, seja contra, seja a de que mais estudos são necessários.

Em 2011, Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, compilou revisões na área dos viagras naturais. Com colaboração de dois colegas, encontrou 139 artigos de revisão sistemática sobre terapias alternativas ou complementares para disfunção erétil e falta de desejo sexual. Descobriu que, dessas 139, apenas 4 preenchiam critérios de qualidade mínimos. Uma sobre ioimbina, uma sobre ginseng, uma sobre acupuntura e uma sobre a maca peruana.

A revisão sobre acupuntura teve conclusões claras: “A maior parte dos estudos tem falhas metodológicas, como (...) relato precário dos resultados, amostras pequenas e publicação sem processo adequado de revisão por pares”. Nos quatro estudos confiáveis encontrados em meio a essa salada, as evidências foram “insuficientes para concluir que a acupuntura é uma intervenção eficiente para disfunção erétil”.

 

cupido

O veredicto da maca não foi muito melhor. Sobre esse tubérculo, que serve de alimento nos Andes desde a época dos incas, apenas quatro estudos passáveis foram encontrados – dois com resultado melhor que placebo, dois com resultado negativo. Nos quatro, porém, o número de participantes era insuficiente e havia falhas metodológicas, de modo que os revisores recomendam a realização de trabalhos mais rigorosos no futuro.

No caso do ginseng vermelho, a revisão avaliou sete artigos sobre a raiz coreana, dos quais seis apresentaram alguma conclusão positiva contra a disfunção erétil. Nenhum deles, porém, incluiu mais do que cem participantes, e cinco dos sete receberam notas 1 ou 2 na escala Jadad (um método para avaliar a metodologia de testes clínicos que atribui pontuações de 1 a 5).

A ioimbina é um caso um pouco diferente. Trata-se de uma molécula orgânica alcaloide – a mesma classe de morfina, cocaína, quinina etc. – extraída da casca e das folhas de uma árvore africana chamada pau-de-cabinda (nome científico Pausinystalia macroceras).

Embora seja considerada um afrodisíaco nas tradições de diversos grupos étnicos africanos – e sirva de matéria-prima para suplementos em pó vendidos em lojas de produtos naturais –, ela também aparece em farmácias comuns na forma de cloridrato de ioimbina (no Brasil, é fabricada pela Apsen e comercializada sob o nome Yomax).

É importante diferenciar suplementos dos comprimidos, que contêm a ioimbina pura e em doses fixas. No passado, médicos recomendavam a versão em forma de comprimido, por falta de opção, para o tratamento de disfunção erétil. Ernst explicou à RQC que “a ioimbina parece ser moderadamente eficaz, mas apresenta riscos significativos. Por isso, não é mais pesquisada ativamente”.

Hoje, as diretrizes oficiais da Associação Americana de Urologia e da Sociedade Brasileira de Urologia vetam a prescrição da ioimbina, considerando que não há um corpo de evidências amplo o suficiente para permitir generalizações.

 

O ponto H

O Brasil é campeão mundial em cirurgias plásticas na vulva: fomos de 21 mil procedimentos anuais em 2017 para 30 mil em 2019 (o ano mais recente com dados disponíveis na Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética). A maior parte dessas operações tem finalidade meramente estética: ajustar o tamanho dos lábios ou do prepúcio do clitóris para deixá-los mais próximos de um certo padrão de beleza.

Nessa toada, a invenção da vez é injetar ácido hialurônico para criar uma ligeira protuberância na parede interna da vagina, que atrite com o pênis no momento da penetração.

Como não há nada de incomum na excitabilidade desse trecho do canal vaginal, o único objetivo desse procedimento é aumentar o prazer masculino – mas nem esse efeito é bem documentado cientificamente, não passando de achismo. Mesmo assim, alguns ginecologistas o oferecem no Instagram com a alcunha de “ponto H”. O nome confere um verniz de seriedade pelo paralelo com a infame expressão “ponto G”, e transmite a falsa impressão de que há qualquer fundo biológico por trás da ideia. Como se o ponto H fosse uma área pré-existente, que o preenchedor apenas ajuda a aumentar.

De acordo com Lucia Lara, presidente da Comissão Nacional Especializada em Sexologia da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), “injetar ácido hialurônico na parede vaginal com a finalidade de potencializar o prazer sexual do homem é antiético porque não tem comprovação científica, imprudente, porque não há dados de segurança sobre efeitos colaterais de longo prazo, e enganoso, porque promove expectativas com base em achismo”.

O ácido hialurônico é uma substância gelatinosa fabricada naturalmente por nossas células. Um humano de 70 kg tem em média 15 g dele, a maior parte na pele e nas cartilagens. Em clínicas estéticas, ele já é usado abundantemente como um preenchedor para erguer as maçãs do rosto e aumentar os lábios, dentre outros procedimentos de um pacotão conhecido como "harmonização facial”.

A Febrasgo “não recomenda que qualquer procedimento seja realizado na região vulvar ou vaginal com o propósito de aumentar ou estimular o prazer feminino. Não há dados na literatura médica que comprovem ou justifiquem a existência de pontos (G, H ou outros). Da mesma forma, não há dados que justifiquem a introdução de ácido hialurônico na mucosa vaginal para 'criação' destes pontos”.

 

Bruno Vaiano é jornalista

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