Asteroide sobre Sodoma?

Questão de Fato
22 set 2021
Autor
Imagem

 

sodoma

O periódico online de acesso gratuito Scientific Reports é parte do Grupo Springer-Nature e inclui o nome da prestigiada revista Nature nos links que dissemina, mas é muito menos – para ser gentil – escrupuloso do que a genitora centenária na hora de decidir o que merece ser publicado. Nesta última segunda-feira, o filhote descolado da Nature soltou artigo em que pesquisadores financiados por um par de grupos fundamentalistas cristãos afirmam ter encontrado evidências de que uma antiga cidade do Oriente Médio, ao nordeste do Mar Morto, foi destruída pela explosão de um asteroide na atmosfera – e que essa cidade corresponde à Sodoma bíblica.

Sim, Sodoma, aquela que fazia dupla com Gomorra e sobre a qual, segundo o capítulo 19 do Gênesis, “o Senhor, o próprio Senhor, fez chover do céu fogo e enxofre (...) Assim ele destruiu aquelas cidades e toda a planície, com todos os habitantes das cidades e a vegetação” (Gn 19:24-25).

O artigo em Scientific Reports é, até certo ponto, circunspecto. As ruínas onde os supostos indícios de destruição vinda do espaço foram encontrados são chamadas pelo nome que têm na região, Tall el-Hammam, na maior parte do tempo: o material completo tem 64 páginas, e a palavra “Sodoma” só vai aparecer pela primeira vez na página 5, e de um jeito meio esquisito. Quando a conexão bíblica é introduzida, o texto começa tentando soar neutro, e vai revelando suas verdadeiras cores aos poucos, linha após linha. A menção inicial a Sodoma diz:

“Existe um debate em curso sobre se Tall el-Hammam poderia ser a cidade bíblica de Sodoma (Silva2 e referências encontradas ali), mas esta é uma questão fora do escopo desta investigação”.

Até aí, tudo bem, embora a referência “Silva2” seja para uma tese de doutorado defendida na Faculdade de Arqueologia e História Bíblica da Trinity Southwest University, instituição de ensino que define sua missão dessa forma:

 “Fornecer educação de alta qualidade para adultos, instruindo-os, por meio de uma série de disciplinas baseadas na Bíblia, a sustentar a autoridade divina da Bíblia como a única representação da realidade inspirada por Deus para a Humanidade, e preparando-os para aplicar essas verdades eternas a todas as etapas da vida”.

Coincidentemente (ou não) o autor da tese, Philip J. Silva, é também o último autor do artigo em Scientific Reports. A praxe científica recomenda listar como último nome, na relação de autores do trabalho publicado, o responsável por coordenar o estudo.

Mas enfim, depois de dar a entender que iria afastar-se da questão bíblica – focalizando apenas a evidência concreta de destruição por asteroide – o artigo faz uma meia-volta:

“No entanto, consideramos se tradições orais sobre a destruição deste centro urbano por um objeto cósmico poderia ser a fonte da versão escrita de Sodoma em Gênesis. Também consideramos se os detalhes relatados em Gênesis correspondem razoavelmente aos detalhes conhecidos de um evento cósmico de impacto”.

Além da Trinity Southwest University, o estudo é patrocinado pelo Reino da Jordânia e por outra instituição comprometida com o fundamentalismo bíblico, Veritas International University. O website da Veritas não só oferece vagas para voluntários interessados em participar da “Escavação de Sodoma” (com um link que remete ao “Projeto de Escavação Tall el-Hamman”) como traz uma declaração de princípios onde afirma que a Bíblia nunca erra.

 

Mas, e o asteroide?

Abstraindo por um instante a agenda religiosa dos patrocinadores e a formação fundamentalista do coordenador do trabalho, a possibilidade de uma cidade da Idade do Bronze, junto ao Mar Morto, ter sido destruída por um asteroide é, claro, interessante em si – mesmo que ninguém jamais tivesse dito a palavra mágica “Sodoma”. Os dados apresentados no artigo são robustos quanto a isso?

O trabalho em Scientific Reports não diz que a cidade foi destruída por um impacto direto – nesse caso, esperaríamos evidências muito mais claras e diretas, como, por exemplo, uma enorme cratera no local – mas sim pelo airburst, a onda de choque e calor gerada quando um objeto do Sistema Solar com alguns metros de diâmetro se desintegra na atmosfera terrestre.

O airburst mais dramático já registrado foi a explosão ocorrida sobre Tunguska, na Sibéria, em 1908, onde estima-se que um objeto espacial com diâmetro de 40 a 60 metros desintegrou-se a cerca de 8 km de altitude, liberando energia que, segundo estimativas recentes, seria comparável à de 800 bombas atômicas do tipo usado em Hiroshima.

Neste século – para ser exato, 15 de fevereiro de 2013 –, um objeto com metade do tamanho do de Tunguska explodiu sobre a região russa de Chelyabinsk, com energia de 30 vezes a usada contra Hiroshima. A onda de choque danificou edifícios em pelo menos seis cidades, e mais de mil pessoas procuraram atendimento médico, a maioria com ferimentos causados pelos vidros das janelas e vitrines que estouraram.

O artigo sobre Sodoma/Tall el-Hammam busca uma comparação direta com o evento de Tunguska, e cita mais de uma dezena de linhas de evidência, que vão de cerâmicas modificadas por calor intenso a depósitos de fuligem, metais derretidos e esqueletos retorcidos. A comunidade internacional de especialistas em arqueologia e impactos cósmicos, no entanto, não parece muito convencida.

As críticas técnicas são várias, mas a maioria delas gira em torno de uma mesma questão: contexto. Se você vai a um sítio arqueológico na expectativa de encontrar sinais de que o lugar foi destruído por uma catástrofe mandada por Deus, sua tendência será ler a paisagem e os vestígios nessa chave, e encaixar tudo o que aparecer na narrativa pré-concebida. No caso específico do artigo em Scientific Reports, mais de um arqueólogo já chamou atenção para várias interpretações forçadas: por exemplo, para o fato de que os autores lançaram mão de um sistema de calibragem para testes de carbono-14 que só faz sentido usar se o pesquisador já sabe de antemão que todos os vestígios testados são da mesma época.

Em outras palavras, “prova-se” que os destroços foram criados juntos num mesmo evento catastrófico primeiro “supondo-se” que os destroços foram criados juntos, num mesmo evento catastrófico. A escolha do tipo de teste garante o resultado.

 

Bombas atômicas

O campo da chamada arqueologia bíblica – o uso de técnicas e estudos arqueológicos para testar relatos bíblicos, ou o princípio de levar esses relatos em consideração ao fazer arqueologia nos lugares onde as histórias da Bíblia se passam – não é, necessariamente, pseudocientífico. Mas seu poder de atração sobre pesquisadores que gostariam de desenterrar uma ou duas muralhas para escorar a fé que dizem ter não deve ser subestimado.

Não bastasse isso, a área também é cercada por interesses comerciais, que vão desde produtores de documentários blockbuster (“O Ossuário de Jesus”, alguém se lembra dessa?) ao tráfico de relíquias religiosas e à promoção de destinos turísticos – Helena (248-330), mãe do primeiro imperador romano cristão, Constantino, provavelmente a primeira  “arqueóloga bíblica”, viajou à Terra Santa e fez uma descoberta maravilhosa atrás da outra, incluindo a “verdadeira cruz” e o Santo Sepulcro.

Também aí estão aqueles que gostariam que a Bíblia fosse literalmente verdade, exceto pelas partes sobrenaturais. Nesse grupo encontramos os que acreditam que Sodoma e Gomorra foram destruídas por um terremoto, um vulcão, afundaram no Mar Morto... ou foram destruídas por armas nucleares usadas por alienígenas ou por alguma supercivilização do passado.

Neste último grupo encontram-se Erich von Däniken, David Hatcher Childress e até mesmo um teólogo presbiteriano, Barry Downing, cujo livro “The Bible and Flying Saucers” teve uma reedição comemorativa há pouco tempo. Esta última linha de especulação ainda não encontrou seu caminho até as páginas da Scientific Reports, mas talvez seja só uma questão de tempo.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899