O que representa a busca por "excelência" em ciência?

Questão de Fato
24 jun 2021
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Excelência, dizem os dicionários, é a qualidade do que é excelente ou muito superior, ótimo, muito bom. Quem, então, em sã consciência, poderia ser contra um restaurante, por exemplo, ou uma fábrica de automóveis ou de equipamentos eletrônicos, ou uma instituição de pesquisa, com essa característica? Não é à toa, portanto, que universidades sem conta, ao redor do mundo, têm como missão a busca por ela. Mas, aos poucos, esse conceito ou, pelo menos, a retórica em torno dele – a forma de mensurá-lo e avaliá-lo – começa a ser contestada.

É o que o fazem, por exemplo, os autores do artigo “‘Excelência somos nós’: a pesquisa na universidade e a fetichização da excelência”, publicado na revista científica Nature, no qual expõem a saturação da retórica desse conceito nas universidades e agências de fomento. De acordo com eles, o vocábulo é usado para se referir a resultados de pesquisa, assim como a pesquisadores, a teoria e educação, a indivíduos e organizações, da história da arte à zoologia. E então questionam: “excelência” realmente significa alguma coisa? Essa narrativa faz algum bem? 

Segundo o físico Peter Alexander Bleinroth Schulz, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Limeira, a retórica da excelência espalhou-se rapidamente no mundo acadêmico nos últimos anos e virou uma questão hegemônica, mas muitas vezes é um discurso vazio, em que a qualidade é anunciada, mas não definida.

“Ao mesmo tempo, a febre dos rankings de universidades tomou conta dos comunicados de imprensa e assim, vagamente, sem maiores discussões necessárias, ela passou a ser associada a apenas uma das missões de uma universidade: a pesquisa, para as quais há métricas fáceis e estabelecidas (número de publicações e citações), ainda que falhas”, explica.

Com isso, diz ele, a busca dessa (ainda indefinida) excelência traduz-se em galgar postos nos rankings (para as universidades), junto com publicar mais artigos e ser mais citado (para o pesquisador “excelente”).

“Ela é então um terreno de métricas, cujos significados não são discutidos”, afirma. “Por exemplo, como os critérios de um determinado ranking se alinham, ou não, à missão de uma determinada universidade? O uso da sua retórica é colocar o carro na frente dos bois. Reconhecê-la, mesmo no recorte da visão de pesquisa apenas a partir de seus produtos, os artigos científicos por excelência (sem trocadilho), não é simples e pode ser falacioso”.

O filósofo e mestre em Educação Cezar Luiz De Mari, da Universidade Federal de Viçosa, ressalta outro ponto. De acordo com ele, o conceito “excelência” vem tomando espaços nos últimos anos como “chave” para demarcar o que seriam conhecimentos e pesquisas de interesse das políticas hegemônicas dos países centrais.

“Diz respeito às instituições de ensino superior, induzidas por órgãos internacionais, de fomento e think tanks, tendo como horizonte uma ciência ajustada aos processos produtivos dos países do eixo norte”, explica ele, que é um dos autores de um artigo que discute o assunto. “A excelência exprime também a ciência tomada como produtora de valor, na teia do capitalismo atual. Em outras palavras, refere-se à ciência dinamizada centralmente pelo fator econômico, respondendo por produtos e serviços tecnológicos comercializáveis”.

O biólogo Paulo Câmara, da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Missouri Botanical Garden (MBG), nos Estados Unidos, por sua vez, chama a atenção para mais um aspecto da questão, o financiamento da pesquisa.

“Acho que não há dúvidas de que recursos para isso hoje em dia são cada vez mais escassos e que, portanto, deveriam ser encaminhados para instituições e pesquisadores de maior ‘excelência’”, defende. “Também creio que seja consenso que tais pesquisadores e instituições possuem mais chance de entregar produtos de relevância para a ciência e para a sociedade, por já serem experimentados e reconhecidos como os melhores”.

Por isso, acrescenta, as universidades devem sim ser centros de excelência no Brasil e no mundo.

“Me parece que ninguém duvida da importância desse conceito na pesquisa e nas universidades, porém as formas de avaliá-lo não são claras e, de certa forma, impõe um ritmo frenético de publicação a fim de cumprir as ‘metas’ que dele se espera”, explica. “Como dizia um colega ‘andamos tão ocupados em publicar, que não temos tempo para fazer ciência’. Certamente essa frase nos faz questionar se a quantidade de artigos reflete necessariamente pesquisa de qualidade? Einstein revolucionou a ciência com apenas quatro”.

Para o biólogo Bruno Lourenço Diaz, diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dizer o que é excelência é muito difícil, pois não há consenso em como defini-la.

“O termo, como é empregado atualmente, está relacionado à qualidade comparativamente maior de alguém em relação a seus pares”, explica. “Portanto, como definimos qualidade e que métricas são utilizadas acabam tendo um grande impacto no ranqueamento de universidades, centros de pesquisa ou pesquisadores”.

 

Métrica e distorção

Como toda forma de análise a que instituições e indivíduos são submetidos acaba gerando um desvio, em que a conquista de métricas passa a a ser um valor e um fim em si, diz ele, distorções começam a aparecer. Uma das consequências práticas disto é a corrida para produção de grande número de artigos científicos, ou o fetiche pela publicação em determinados periódicos. Além disso, uma definição mais tradicional de excelência envolve o reconhecimento dado por pares que são tidos como excelentes, gerando uma lógica circular que tende a conservação do status quo.

“É quase impossível, nesse reconhecimento subjetivo, a adoção de métricas comparativas”, considera Diaz. “Fica limitado ao reconhecimento de si mesmo no outro, autovalidando sua opinião sobre sua excelência”.

De acordo com o também biólogo Demétrio Luís Guadagnin, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a métrica para avaliar a excelência existente hoje privilegia a capacidade de comunicar, em detrimento da de influenciar pessoas e decisões sociais.

“Não está claro o quanto elas estão ou não relacionadas”, diz. “As métricas dominantes privilegiam também uma combinação de número de certos tipos de publicações e de vezes que foram citadas. Além disso, essas métricas, entendidas como mais objetivas, por serem quantitativas, privilegiam a influência dentro do próprio ambiente acadêmico e sobre os pares, e desconsidera a que deveria ter sobre estudantes e a sociedade de um modo mais amplo”.

Guadagnin diz ainda que existem várias críticas a esse sistema. E cita um exemplo:

“Há talvez 30 mil periódicos biomédicos no mundo, em número crescente, e ainda assim apenas de cerca de 15% das intervenções médicas são apoiadas por evidências científicas sólidas. Isto é parcialmente, porque apenas 1% dos artigos em periódicos médicos são cientificamente úteis e válidos e, em parte, porque muitos tratamentos nunca atraíram o interesse de acadêmicos”.

 

Impactos

A discussão sobre o que é a excelência não é a única em torno da questão. Começa-se a debater também os efeitos dessa retórica na produção do conhecimento. Ou seja, se ela faz bem ou não para a pesquisa. Para Diaz, na ciência ela deve ser vista como aspiração, e não como mecanismo de hierarquização.

“Se for interpretada estritamente como alcançar determinadas métricas, isto pode direcionar os esforços para áreas ou abordagens nas quais essas metas são mais facilmente alcançadas”, alerta. “Pesquisas de alto risco ou contrárias aos dogmas estabelecidos serão abandonadas, prejudicando o avanço científico. Seria o equivalente em uma situação de um médico que, ao não aceitar tratar pacientes graves, fosse considerado excelente por ter uma taxa de mortalidade baixíssima”.

Schulz, por sua vez, lembra que alguns autores que se debruçam sobre o tema chegam a dizer que, do jeito que é empregada, a ideia de excelência não faz bem, mas sim, mal à ciência.

“A narrativa enviesa a proposição e avaliação de projetos”, diz. “Tende-se a propor projetos que ‘alcancem’ mais facilmente a ‘excelência’, sobre um tema da moda, por exemplo. Agências de fomento podem se afastar da promoção de linhas de pesquisa importantes, para abraçar aquelas que garantam melhores indicadores. Pesquisadores passam a valorizar periódicos que garantam ‘prestígio’ e não aqueles mais bem endereçados ao público para o qual seu trabalho interessa mais”.

Esse quadro levanta ainda outras duas questões. A busca da “excelência”, seu uso para recompensar e punir instituições e pesquisadores individuais, e sua utilidade como critério de organização da pesquisa ajuda ou atrapalha a própria produção dessa pesquisa? E ela é realmente a métrica mais eficiente para distribuir os recursos disponíveis para cientistas, professores e acadêmicos do mundo todo?

“São questões difíceis”, responde Guadagnin. “Por um lado, se bem avaliada, ela é um modo de otimizar o uso de recursos escassos. Se é usada como premiação ou punição, estamos lidando com uma intenção de poder, uma questão moral, não com uma questão de priorização e eficiência. Não podemos ser ingênuos também sobre este ponto”.

Para muitos pesquisadores não basta, no entanto, criticar a retórica. É preciso apresentar alternativas.

“Eu gosto da definição do Ronaldo Pilli [químico da Unicamp] sobre excelência de fato: é pesquisa bem-feita, robusta, formando solidamente novos pesquisadores”, diz Schulz. “A cultura poderá mudar com a consciência do esgotamento da retórica. Cresce o número das vozes críticas, mas também aumenta o número dos que seguem o canto da sereia”.

Para ele, a troca deveria ser por valores, no lugar de indicadores.

“Em vez de uma narrativa em torno da 'excelência', deveria ser construída uma pela 'soundness' (robustez, fiabilidade, integridade, enfim: pela pesquisa sólida e rigorosa) e 'capacity' (várias acepções: desenvolvimento de capacidade, aptidão, competência)”, defende. “Se vai mudar, e como será a mudança, é debate inescapável se realmente queremos o desenvolvimento da ciência, seja no Brasil ou em outros cantos do mundo”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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