O depoimento da médica Nise Yamaguchi na CPI da Pandemia, concedido na última terça-feira (1), chamou atenção (entre muitos outros pontos) pelo pedido do senador Otto Alencar (PSD-BA) para que ela explicasse a diferença entre um protozoário e um vírus. A resposta causou alguma polêmica nas redes sociais: embora correta, dentro dos limites dos conceitos usados (vírus podem ter material genético composto por DNA ou RNA, protozoários são unicelulares), foi considerada por muitos insuficiente, ainda mais vindo de alguém que defende com ardor o uso de um medicamento contra protozoários (a hidroxicloroquina) para tratar uma doença viral como a COVID-19.
Para oferecer uma resposta mais completa, a Sociedade Brasileira de Protozoologia produziu a seguinte nota técnica sobre o assunto (uma versão para download pode ser encontrada neste link):
Nota técnica da Sociedade Brasileira de Protozoologia (SBPz) acerca do recente debate sobre as definições de Protozoário e Vírus.
"Protozoário" é um termo utilizado para definir organismos unicelulares providos de núcleo. Um organismo unicelular é aquele que consegue, utilizando uma única célula, realizar todas as funções fisiológicas típicas dos seres vivos, entre elas: alimentação, metabolismo, reprodução e movimento. Esse grupo de organismos mantém seu material genético individualizado dentro de uma organela denominada núcleo.
O termo “protozoário” é utilizado, historicamente, em áreas médicas ou ligadas à saúde do ser humano. Incluídos na categoria estão, tradicionalmente, seres capazes de locomover-se; portanto, lembrando as habilidades dos animais. Esta suposta similaridade aos animais aparece na etimologia do nome: “protos” - primeiro, “zoon” - animal. São exemplos de “protozoários” inúmeros organismos capazes de provocar doenças, como as espécies do gênero Plasmodium, causadoras da malária, e espécies do gênero Trypanosoma, causadoras do mal de Chagas. Mas a diversidade natural destes organismos é enorme, e inclui inúmeros membros de vida livre (isto é, que não requerem um organismo hospedeiro e não atuam como parasitas), como as amebas e os ciliados, apenas para citar alguns.
Historicamente os protozoários foram tratados separadamente daqueles organismos também unicelulares e dotados de núcleo, porém capazes de realizar fotossíntese. Estes eram tratados como “algas unicelulares”. No entanto, de um ponto de vista evolutivo moderno, ambas categorias (protozoários e algas unicelulares) não podem ser consideradas grupos verdadeiros. Representam coleções artificiais de organismos, sem parentesco evolutivo. Porém, apesar de inválido evolutiva e taxonomicamente, o termo “protozoário” ainda encontra bastante uso e utilidade em muitas áreas da ciência e da medicina, pois consegue definir um grupo restrito de organismos.
Os vírus, por outro lado, não são organismos celulares, e muito menos nucleados. Não têm a membrana típica das células, nem suas estruturas moleculares internas. Os vírus, ao contrário dos protozoários, são incapazes de executar as funções típicas dos seres vivos – fora de seus hospedeiros, não mantêm nenhuma atividade fisiológica. Pelo contrário, dependem da célula do organismo hospedeiro para que tais funções sejam executadas – são, portanto, endoparasitas (isto é, parasitas internos) obrigatórios. Há grande discussão dentro de círculos científicos sobre se os vírus podem ser efetivamente considerados parte da vida, com diversos argumentos de cada lado e, ainda, sem uma conclusão final.
Não há parentesco evolutivo próximo entre os organismos tradicionalmente referidos como protozoários e os vírus. São entidades absolutamente distintas sob qualquer ponto de vista biológico.
Reforçamos que o conhecimento científico acerca das entidades naturais, sejam elas biológicas ou não, é essencial para o combate de doenças e outros males. O estudo científico e acadêmico dos chamados “protozoários” é uma das mais bem estabelecidas e tradicionais áreas científicas do país, com enorme histórico de impacto internacional. A área foi iniciada por nomes fundamentais da academia no Brasil, como Carlos Chagas, Hertha Meyer, Oswaldo Cruz e Samuel Pessoa; e está, portanto, profundamente atrelada ao próprio desenvolvimento da ciência no país (Elias M. et al. 2016). O avanço nacional, inclusive contemporâneo, nesta área de estudos é testamento da qualidade e importância mundial da ciência brasileira.
Subscrevem os membros da Diretoria SBPz
Dra. Lucile Floeter-Winter (Presidente SBPz), Professora Titular do Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo
Dr. Luís Carlos Crocco Afonso (Presidente-eleito SBPz), Professor Associado do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas, Universidade Federal de Ouro Preto
Dra. Maria Carolina Quartim Barbosa Elias-Sabbaga (Vice-Presidente SBPz), Diretora-Chefe, Laboratório Especial de Ciclo Celular, Instituto Butantan
Dr. Daniel J. G. Lahr (Tesoureiro, SBPz), Professor Associado do Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo
Dra. Renata Rosito Tonelli (Secretária, SBPz), Professora Associada, Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas, Universidade Federal de São Paulo