Desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vetou sua importação, em 26 de abril, nunca se falou tanto no Brasil sobre a vacina Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia. Grande parte das manifestações, incluindo as de pessoas comuns, meios de comunicação e até governadores, foi a favor do imunizante. Embora, talvez, por outras razões, o mesmo vem ocorrendo há mais tempo na África. Segundo artigo publicado na prestigiosa revista Nature, em 27 de abril, há uma campanha de desinformação naquele continente, promovida pela Rússia, em favor da Sputnik e contra as concorrentes desenvolvidas por outros países.
Assinado por Peter Hotez, especialista em vacinas, do Baylor College of Medicine e do Texas Children’s Hospital, em Houston, nos Estados Unidos, o artigo revela que um programa de rastreamento de rumores (RTP, na sigla em inglês), da empresa de análise Novetta, em McLean, Virgínia (EUA), que monitora as mídias sociais e tradicionais em 54 países africanos, descobriu que a Rússia visa especificamente o continente para desacreditar os imunizantes ocidentais em favor da Sputnik V.
Para o médico e doutor em Saúde Pública Kenneth Rochel de Camargo, professor titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e editor associado do American Journal of Public Health, a informação do artigo parece procedente. “A Nature costuma ser confiável”, diz. “O autor do texto também é um pesquisador respeitado. O uso de desinformação como arma política não é novo. No passado, a antiga Alemanha Oriental propagou desinformação sobre o HIV, por exemplo”.
Camargo é autor do artigo Lá vamos nós outra vez: a reemergência do ativismo antivacina na Internet, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No texto, discute o ressurgimento do fenômeno nos últimos anos, com base na literatura e na sua própria experiência, e apresenta um esboço das possíveis respostas a esse ativismo, cada vez mais preocupante.
Também para Gregório de Almeida Fonseca, doutorando em Comunicação Social na UFMG e pesquisador do grupo R-EST – estudos redes sociotécnicas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no qual estuda o movimento antivacina nas plataformas digitais desde 2018, a informação do artigo da Nature procede. “O próprio site da Novetta direciona para duas publicações diferentes, comentando os resultados”, explica. “Uma no site do Council on Foreign Relations (CFR) e outra da VICE World News”.
De acordo com o químico Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp), membro da Força-Tarefa da universidade no combate à COVID-19, a Novetta desenvolveu uma ferramenta avançada de aprendizado de máquina para ajudar na identificação de desinformação prejudicial sobre o vírus. “Eu sei que eles usam uma estratégia conhecida como Rapid Narrative Analysis (RNA), que adota modelos de aprendizado de máquina (Machine Learning) e IA (Inteligência Artificial) para diagnosticar rapidamente a gravidade da disseminação de fake news e desinformação, para tentar dar uma resposta mais rápida para que se tenha tempo de adotar uma ação mais eficaz”, explica.
Assim, segundo Dias, em poucas horas, a estratégia RNA coletou e diagnosticou mais de 700.000 tweets para avaliar a virulência de fake news. “Eles foram capazes de identificar notícias falsas perigosas, como as de que a COVID-19 é uma arma biológica, o 5G é o responsável pela doença e a que defende medicamentos sem comprovação de eficácia contra a COVID-19”, conta.
O CFR, por sua vez, é uma organização independente e apartidária, dedicada a informar o público sobre as opções de política externa que os Estados Unidos e o mundo encaram.
O artigo Western Anti-Vaxxers Are Undermining COVID Vaccine Rollouts in African Countries, publicado pela revista eletrônica VICE World News em janeiro, diz que, surpreendentemente, na África, as percepções sobre a Sputnik V em 2020 eram amplamente positivas, apesar de a vacina, até então, não ter sido submetida aos rigorosos testes clínicos pelos quais outras passaram. Os primeiros ensaios do imunizante russo foram feitos com apenas 76 pacientes, em dois hospitais.
Outro artigo, publicado no site do CFR e assinado por dois analistas da Novetta, aponta que a campanha de desinformação começou em 11 de agosto, quando o Ministério da Saúde da Rússia anunciou a Sputnik V como sendo a primeira vacina do mundo aprovada contra COVID-19. A própria aprovação foi, escrevem os autores, enganosa do ponto de vista científico, já que os ensaios clínicos de fase 3 ainda não haviam iniciado. Apesar disso, o Ministério reforçou a afirmação em 4 de setembro, alegando ter fabricado a “melhor vacina do mundo” contra a doença.
Cerca de dois meses depois, no início de novembro – antes do anúncio da Pfizer de seus resultados, feito em 9 de novembro, sugerindo que a sua própria vacina poderia ser mais de 90% eficaz –, a Sputnik V da Rússia era, curiosamente, a vacina com a segunda maior proporção de citações positivas sobre o desenvolvimento de imunizantes.
Segundo o artigo dos analistas da Novetta, o RTP revelou que, desde o dia 11 de agosto, quando a Rússia lançou sua vacina, até o anúncio da Pfizer, a cobertura da Sputnik V pela mídia africana foi amplamente positiva (56%). Depois que a Pfizer, Moderna e Oxford-AstraZeneca divulgaram os resultados de seus testes clínicos, seus imunizantes ultrapassaram o russo em percepção positiva da mídia. No entanto, o imunizante russo continua a ser o mais discutido e tem a segunda percepção negativa mais baixa (11%).
Ainda conforme o artigo, para moldar a discussão global sobre a Sputnik V, a Rússia usou uma tática familiar: publicar notícias de última hora que serão amplamente cobertas pela mídia internacional. O Ministério da Saúde do país, sem levar em conta as restrições esperadas pelos padrões científicos internacionais, afirmou que a eficácia da vacina é avassaladora. O governo russo, então, usou esses dados frágeis para respaldar as proclamações de que governos, em todo o mundo, haviam expressado interesse no imunizante.
Uma das descobertas mais interessantes da RTP, segundo o pessoal da Novetta, foi que antes do anúncio da Pfizer em 11 de novembro, o principal impulsionador da desinformação russa em toda a África foi o presidente Vladimir Putin, responsável por cerca de 5% das citações na mídia tradicional – mais do que qualquer outra pessoa. A segunda autoridade mais citada é o ministro da Saúde, Mikhail Murashko, com 1,4%. Na cobertura de outras vacinas, entretanto, os mais citados foram chefes de ministérios de saúde nacionais ou executivos de empresas produtoras de imunizantes, em vez de chefes de Estado.
Na Europa, a campanha agressiva da Sputnik V em redes sociais, que inclui a disseminação de “fake news” atacando produtos de empresas ocidentais, já chama atenção da mídia e de órgãos reguladores.
No Brasil
No caso do imbróglio entre a Anvisa e os fabricantes da Sputnik V, especialistas ouvidos pela Questão de Ciência dizem que os russos não agiram com transparência e de forma correta. “Não estão sendo transparentes desde o anúncio e liberação da vacina de maneira prematura em agosto de 2020”, critica Fabrício Souza Campos, professor do Curso de Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia da Universidade Federal do Tocantins (UFT). “Somente alguns meses depois que foram publicados os dados parciais do estudo de fase 3 é que a opinião pública e parte dos cientistas se acalmaram. O que permitiu o seu uso em muitos países que não têm agências reguladoras do mesmo nível da Anvisa, da FDA [Food and Drug Administration], dos Estados Unidos, e da EMA [European Medicines Agency], da Europa. “
Segundo a química e doutora em Bioquímica Ana Paula de Mattos Arêas Dau, do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC (UFABC), o principal ponto de discórdia entre o Instituto Gamaleya e a Anvisa se refere à presença de vírus replicantes na Sputnik. “A Agência não testou a vacina nesse quesito, pois nunca recebeu essas amostras para isso. Entretanto, retirou essa informação da própria documentação enviada na submissão do pedido de autorização de importação”, explica. “Em sessão fechada, a Anvisa estabeleceu um diálogo com os representantes do Gamaleya sobre essas questões e eles se mostraram irredutíveis em fazer qualquer modificação na formulação para deixá-la mais segura, pois afirmavam que talvez a agência brasileira tivesse razão, mas realizar qualquer mudança tomaria tempo”.
Dias explica que a Sputnik V usa dois adenovírus, Ad26 e Ad5, que funcionam como vetores virais (meios de transporte do material genético do vírus SARS-CoV-2) em duas doses, nessa sequência. “São adenovírus que causam resfriados comuns em seres humanos e, tal como usados na vacina, deveriam ser incapazes de se replicar no organismo”, diz. “Para evitar a replicação, os cientistas deletam um gene chamado E1 no adenovírus, por meio de técnicas de biologia molecular. Ele é fundamental para a replicação do adenovírus no organismo humano. Sendo deletado, é como se fosse inativado e não causaria mal nenhum às pessoas”.
O problema é que, segundo a Anvisa, no processo de cultivo em células humanas modificadas, o adenovírus pode incorporar de novo o E1, e se tornar replicante. “A Gerência de Medicamentos da Agência apontou diversas falhas de segurança associadas ao desenvolvimento do imunizante”, conta Dias. “Na mais grave, afirmou que em todos os lotes analisados foi identificada a presença de adenovírus replicante na vacina, ou seja, com capacidade de reprodução no corpo humano”.
Além disso, a Anvisa diz que não recebeu relatório técnico que comprove que a Sputnik V atende a padrões de qualidade e não conseguiu localizar o documento com autoridades de países onde ela é aplicada. “Ele deve ser emitido por uma autoridade sanitária internacional capaz de comprovar que a vacina atende a padrões de qualidade”, explica Dias. “O Fundo Russo cita que mais de 60 países já aprovaram o imunizante. Apesar disso, a Anvisa buscou embaixadas do Brasil para obter detalhes do uso nessas nações, sendo que a maioria conta com poucas doses aplicadas, que inviabilizavam análises sobre a segurança. A agência apurou que em 23 dos países com contrato, a vacinação não começou e que apenas 28% já utilizam o produto russo”.
Apesar de todos esses problemas, os russos disseram que a Anvisa vetou a importação da Sputnik por questões políticas, mais especificamente por pressão dos Estados Unidos. “Eu lamento e creio que o Gamaleya deveria verificar esta questão e não acusar a Anvisa de inventar fake news”, diz Dias. “A posição do Instituto não é conciliatória. Não se pode acusar autoridades regulatórias de inventar mentiras. Todos têm que ter responsabilidades neste processo, discutir as questões com ética, transparência, e tentar chegar a uma solução boa para todos”.
Diante desse quadro, Campos diz que a Anvisa agiu de maneira adequada. “Não se pode liberar uma vacina que não atenda os padrões mínimos de qualidade (ela não pode ter adenovírus humano replicante)”, explica. “Além disso, o fabricante tem que fornecer todas as informações necessárias para que a Sputnik V seja liberada. O que não foi feito até o momento. Essa postura da Anvisa incomodou de verdade os fabricantes russos. Agora, esperamos que eles tomem todas as medidas que certificam que o imunizante deles é realmente seguro”.
Voltando à África, o artigo dos especialistas da Novetta para o CFR, publicado em dezembro de 2020, dizia que a popularidade da Sputnik V na mídia africana era preocupante, principalmente porque ela não havia passado pelos mesmos testes clínicos rigorosos aos quais foram submetidas suas concorrentes (os dados da fase 3 de testes da Sputnik V foram publicados apenas em fevereiro deste ano; a Anvisa, em sua decisão sobre a vacina, considerou o trabalho enviesado e pouco confiável). Para os autores, o sucesso da desinformação e da estratégia de relações públicas da Rússia se deve à habilidade e à disposição do Kremlin de disseminar e enfatizar sua mensagem sobre a eficácia da vacina.
Para combater a desinformação russa nesse campo, os autores recomendam que os profissionais farmacêuticos e os políticos dediquem mais atenção a destacar a importância de testes clínicos rigorosos e explicar como, nos de fase 3, as vacinas devem atender a padrões aceitáveis. Ao enfatizar a ciência em vez de endossar pessoalmente uma “vencedora”, o debate sobre o imunizante pode ser reformulado de maneira que combata com mais eficácia a desinformação russa.
Evanildo da Silveira é jornalista