Desinformação, ignorância e o combate à COVID-19

Questão de Fato
29 abr 2021
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Não seria exagero dizer que o mundo convive hoje não com uma, mas com duas pandemias. Uma delas é a de COVID-19, que já matou 3,09 milhões de pessoas em todo planeta, 391 mil delas no Brasil. A segunda é a da desinformação, das fake news, que, se não matou ninguém diretamente, por certo é responsável por boa parte das vítimas fatais do novo coronavírus. Assim como a doença, trata-se de fenômeno global, que disseminou crenças sem sentido, desde a “vacina com chip” até tratamentos ineficazes, como o da cloroquina, passando por teorias conspiratórias.

Para entender o fenômeno e suas consequências na luta contra a COVID-19, vários pesquisadores do Brasil passaram a estudar como se produz e se dissemina a desinformação, que leva ao negacionismo científico e a um mundo paralelo, onde as teorias mais absurdas são tidas como fato. Alguns deles já vinham tratando do tema da desinformação antes da pandemia. Outros começaram a partir do seu surgimento.

Entre os primeiros está o físico Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que, em 2019, foi um dos criadores do Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais (EDReS), formado por pesquisadores da sua própria instituição, e outras. “A ideia de estudar desinformação em redes sociais estava latente fazia anos”, conta. “Devido à ascensão da ignorância ao poder em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, isso se tornou uma necessidade”.

Segundo Tessler, na época da criação do grupo, os grandes desafios, especialmente para os cientistas da área da Física, eram o negacionismo climático e o terraplanismo, mas também havia o movimento antivacina e a tradicional homeopatia. “O problema maior era a anticiência ganhando espaço no debate público”, diz. “Aí veio a pandemia, com a forte onda de negacionismo científico associada”.

A exemplo de Tessler, a jornalista e doutora em Comunicação Priscila Muniz de Medeiros, professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), também vinha trabalhando com a temática antes do surgimento da COVID-19, e hoje coordena uma pesquisa sobre a influência da desinformação sobre a pandemia nas atitudes e comportamentos da população. “Eu já estudava o assunto por acreditar que é um dos desafios mais importantes e complexos que temos no campo da Comunicação hoje”, explica. “Quando surgiu a pandemia, muitos pesquisadores buscaram trazer o tema para suas pesquisas, tanto pela sua relevância quanto pelo fato de que era difícil continuar a vida e o trabalho como se nada estivesse acontecendo”.

Diferentemente de Priscila e Tessler, o pesquisador brasileiro na área de Sociologia do conhecimento científico Renan Leonel, pós-doutorando no Health Ethics and Policy Lab da ETH Zurich, da Suíça, começou a se interessar pelo assunto quando fazia estágio no ano passado, na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. Em abril, ele e um colega começaram a estudar o negacionismo como um complicador do combate ao novo coronavírus. “Nosso objetivo era entender como as narrativas compartilhadas de cunho negacionista poderiam dificultar as respostas e ações contra a pandemia”, explica.

O sociólogo Lenin Bicudo Bárbara, por sua vez, vem desenvolvendo pesquisa de pós-doutorado sobre a circulação social da desinformação no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com ele, é preciso diferenciar desinformação e notícias falsas da ignorância. “Temos que questionar um pouco essa ideia de senso comum, que toma a ignorância como algo necessariamente ruim”, explica. “Ela é parte da condição humana, e está aí para ficar. Sempre haverá muito mais coisas que ignoramos, do que coisas que sabemos”.

Segundo Lenin, é preciso ter em mente que um dos principais desafios de uma pandemia é de natureza comunicativa. “Para enfrentar uma epidemia, toda uma população de pessoas que não tem familiaridade com uma doença, que não sabe como agir diante dela – e não tem como saber, porque é uma novidade –, se vê na situação difícil de ter que aprender o que fazer, em um curto período de tempo”, diz. “Nesse momento, ficamos particularmente vulneráveis à desinformação”.

 

Nos jornais

No caso do estudo de Leonel e seu colega, o primeiro passo foi selecionar três países para realizar a pesquisa – Brasil, Estados Unidos e Reino Unido – que, na avaliação deles, produziam mais conteúdo e material jornalístico sobre a pandemia. Depois, os pesquisadores escolheram os três principais jornais de cada um deles: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo; USA Today, Wall Street Journal e The New York Times, dos Estados Unidos; e Daily Mail, Metro e The Sun, do Reino Unido.

Com o uso de ferramentais computacionais, Leonel e seu colega copilaram mais de 36 mil textos publicados nos nove jornais relacionados à COVID-19. O mesmo software fez uma análise de narrativa por meio da identificação de palavras-chave e a a frequência em que elas apareceram num determinado texto, e em que período da pandemia. “Com esse modelo descobrimos que, de acordo com os meses estudados, algumas palavras-chave e narrativas apareceram com mais frequência do que outras”, conta Leonel.

O estudo de Priscila, por sua vez, conta com a participação de quatro alunos de iniciação científica, e está dividido em duas etapas. A primeira teve como objetivo fazer uma cartografia das fake news que circularam no país, classificando-as em categorias, verificando por onde circularam (se em redes sociais, aplicativos de mensagens), quais os formatos utilizados (áudio, vídeo, texto) e se a desinformação em questão tinha ou não potencial danoso para a saúde pública. “Para ter acesso às fake news, analisamos as postagens de oito agências de checagem de notícias”, informa a pesquisadora. “Na segunda etapa, buscaremos, por meio de uma pesquisa ‘survey’ (quantitativa), entender como tais conteúdos afetaram as atitudes e comportamentos da população local e se elas atrapalharam os esforços de contenção do vírus”.

No caso do trabalho do EDReS, a opção foi criar, no início da pandemia, um canal no WhatsApp para receber notícias falsas disseminadas pelas redes sociais, formando um grande banco de dados. “A conta é alimentada por pessoas que se incomodam com o que recebem nos grupos de família”, explica Tessler. “Ela é uma boa fonte de material”.

O grupo também atua em outras diferentes frentes, combinando conhecimentos de várias áreas. “O pessoal das Humanidades busca análises qualitativas e entender os mecanismos sociais”, diz Tessler. “Eu gosto mais de usar ferramentas computacionais para entender a dinâmica e as bases do negacionismo. Estou orientando um estudante que busca usar a teoria de grafos [ramo da matemática que busca mapear as relações entre os objetos de um determinado conjunto] para entender a formação de bolhas de negacionistas no Twitter, a partir da similaridade semântica entre as mensagens. Para isso, ele usa redes neurais para comparar mensagens”.

 

Grandes temas

Embora os trabalhos ainda estejam em andamento, eles já têm resultados para mostrar. Em linhas bem gerais, as desinformações giram em torno de três grandes temas: a minimização da gravidade da COVID-19, as teorias conspiratórias e a negação da eficiência das vacinas. “Há variações dentro de cada grupo”, diz Tessler. “A ideia geral é que existem interesses em ocultar a ’verdade’, seja lá o que isso for. Aí começam a aparecer os suspeitos de sempre: judeus (George Soros), Bill Gates, o ‘comunismo internacional’, o ‘globalismo’, a indústria farmacêutica. Há ainda variantes sobre minimizar a gravidade da doença, de cura (tratamento precoce), do isolamento social (aumenta a chance de se contaminar), do uso de máscara (não permite respirar), da vacina (injeta um chip 5G), e por aí vai”.

No caso do trabalho do grupo de Priscila, uma conclusão inicial foi que mais da metade das fake news analisadas tinha algum potencial de provocar efeitos danosos para a saúde pública, seja por diminuírem a importância da doença, seja por propagarem profilaxias ou tratamentos ineficientes, seja por desestimularem a vacinação.

O estudo também verificou que a maioria significativa das fake news checadas pelas agências estava circulando em redes sociais, como o Facebook, Twitter e Instagram, enquanto as relativas a conteúdos propagados em aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, foram minoritárias. “A provável razão dessa prevalência é a maior facilidade de se rastrear o conteúdo desinfomativo publicado em redes sociais”, supõe Priscila. “Esse também é mais fácil de ser contido. Isso indica que pode haver um universo de desinformação nociva circulando no WhatsApp que sequer está passando pelas agências de checagem”.

Quanto ao conteúdo das informações falsas detectadas pelas agências de checagem, a pesquisadora revela que entre março e outubro do ano passado, período abrangido pelo estudo, houve uma prevalência de fake news que buscaram contestar os números ou a gravidade da doença. “Elas foram seguidas pelas que propagavam tratamentos ineficazes, aquelas sobre isolamento social, política nacional, prevenção e contágio da doença, desinformação sobre vacinas, geopolítica (especialmente relacionadas à China), tentativas de golpes financeiros e aquelas envolvendo celebridades”, conta Priscila.

Os resultados do estudo de Leonel não foram muito diferentes. “No início, por exemplo, os negacionistas questionavam a eficiência do distanciamento social para conter o novo coronavírus”, aponta. “Na metade do ano passado, estavam focados no dualismo entre desenvolvimento econômico e a necessidade de lockdown, que era fundamental devido à gravidade da pandemia. Colocavam a economia de um lado e a saúde pública de outro, com muita desinformação circulando, principalmente no Brasil e no Reino Unido, como se uma coisa tivesse dissociada da outra”.

Depois, começaram a circular informações falsas sobre a gravidade da infecção causada pelo novo coronavírus. A necessidade da utilização de máscaras também foi objeto de fake news. “Nos Estados Unidos, por exemplo, o seu uso foi contestado pela sociedade, por ser considerado um hábito chinês”, diz Leonel. “Mais recentemente, nessa segunda onda, os negacionistas reagiram contra as vacinas, duvidando da sua eficácia. Circulam muitas informações falsas, dizendo que não funcionam ou serviriam para colocar um chip nas pessoas”.

Quanto às causas dessa “pandemia” de ignorância e desinformação, os pesquisadores dizem que não é fácil apontá-las. Eles não se furtam, no entanto, de levantar algumas hipóteses. Para Priscila, por exemplo, as mudanças sociais e tecnológicas ocorridas nos últimos anos criaram as condições para o surgimento do fenômeno. “Duas questões que podemos destacar e que estão ligadas por certa relação de causalidade são a liberação do polo de emissão das informações, provocadas pelo advento das mídias pós-massivas, e a hiperpolarização política, que é uma tendência global”, diz.

 

Polarização  

Tentando explicar de forma rápida, ela diz que as mídias digitais amplificaram um antagonismo político generalizado na sociedade, e a razão disso é fácil de entender. Antes, ainda que existissem cidadãos ativistas e militantes, a grande maioria da população simplesmente acompanhava os fatos políticos com a mediação dos veículos de comunicação. “Éramos espectadores passivos que, a cada quatro anos, escolhiam seus candidatos, com base em suas crenças pessoais e influenciados, em maior ou menor grau, pelos discursos hegemônicos e pouco diversificados oriundos da mídia de massa”, diz. “Havia menos implicação pessoal e emocional no processo”.

Com as mídias digitais, isso mudou. Os cidadãos passaram a se engajar mais com o discurso político, tornando-se produtores e divulgadores dele. “Passamos a ter mais militantes ativos e um debate político muito mais caracterizado por um viés emocional”, explica. “Implicados na defesa de um partido ou de um político, os usuários das mídias sociais acabaram por se colocar num lugar análogo ao do torcedor de um clube de futebol. A paixão é o que o liga a seu time, não a racionalidade”.

Esse fenômeno, chamado por muitos de hiperpolarização, é global. De acordo com Priscila, polarização política não é nada novo. “Nos Estados Unidos ou no Brasil, sempre vimos as eleições presidenciais sendo decididas pelos mesmos dois partidos”, diz. “O que mudou foi justamente o forte viés emocional dessa polarização. Analisando as notícias falsas sobre COVID-19, o caráter político da grande maioria delas é evidente, o que as coloca no contexto da hiperpolarização que mencionei acima”.

Para Tessler, a “pandemia” de desinformação tem como causa uma conjunção de fatores. “Uma mistura de hiperindividualismo (eu sei mais do que toda a Humanidade e tenho as respostas), fanatismo religioso e senso de proteção num grupo (se todos que me cercam garantem a eficácia de tratamento precoce, eu devo estar certo, e trato quem não concorda como inimigo)”, explica. “Mas tem também algo muito complicado. Muitos desse pessoal negacionista se sentem excluídos pela ciência e pela cultura. Percebem a ciência como algo inatingível e seus padrões culturais e estéticos destoam da cultura estabelecida, da universidade. Então buscam se defender negando tudo e colocando seus saberes e preconceitos como os ‘corretos’”.

Tessler diz que o ex-presidente Lula fazia um pouco isso, ao negar a importância da educação universitária. “Mas ele estava cercado de gente culta”, lembra. “[O atual presidente Jair] Bolsonaro está cercado de gente tão tosca quanto ele e catalisa o movimento negacionista. Quando um presidente fomenta o negacionismo científico, ele carrega uma horda de seguidores. Note que não se trata de não entender a ciência, mas de não acreditar na sua validade de entender a natureza. Essas pessoas não se dão conta de que só vivem como vivem graças aos avanços científicos dos últimos séculos”.

 

Decisão e emoção

Para Lenin, o negacionismo científico já estava aí bem antes da pandemia. “Não faltam casos que mostram isso”, diz. “O reconhecimento da homeopatia como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina é um bom exemplo de como, na prática, o conhecimento científico é muitas vezes deixado de lado, mesmo em profissões que esperaríamos serem orientadas pela ciência”.

Para entender por que isso ocorre, é necessário deixar de lado a ideia de que as pessoas formam a maior parte de suas opiniões com base em uma análise atenta dos fatos relevantes. “Na prática, só fazemos isso raramente”, diz Lenin. “Eu, por exemplo, não tenho embaraço em dizer que sei que a Terra tem 4,5 bilhões de anos. Só que eu nunca investiguei a fundo o assunto. Na prática, falo isso baseado em outra pessoa que investigou o assunto, e em cuja expertise confio e que me convenceu que é verdade. Como a maior parte das pessoas, só tenho conhecimento de segunda mão sobre o assunto”.

Lenin lembra ainda que vivemos cercados por um mundo de coisas que não conhecemos bem, e por isso a maior parte das nossas conclusões depende da atribuição voluntária de confiança na palavra do outro – por vezes realizada de maneira automática, por hábito. “É um atalho para o conhecimento, mas necessário em uma sociedade complexa como a nossa, que produz, coletivamente, muito mais conhecimento do que cada um de nós é capaz de absorver como indivíduo”, explica. “Mas esse atalho tem um preço. Na prática, implica que usamos a validação social de uma ideia para decidir sobre sua validade objetiva. Com isso, discussões sobre fatos podem dar lugar a estratégias de persuasão e disputas de narrativa”.

É o que está ocorrendo no Brasil, segundo Lenin, onde se posicionar sobre o uso da cloroquina, por exemplo, em certo momento passou a ser visto quase como uma questão partidária – “uma vez que um grupo político aposta suas fichas nessa solução, opor-se à cloroquina passa a significar se opor a esse grupo político”. “A lógica interna da competição política, do pertencimento a um grupo, simplesmente atropelou a consideração direta da evidência”, diz.

O sociólogo da USP conclui observando que a negação da ciência encontra terreno fértil sempre que seguir as recomendações científicas implica mudar radicalmente o estilo de vida. “O negacionismo do aquecimento global é o caso mais claro disso, já que levar a sério o que a comunidade científica sabe a respeito do assunto exige mudanças profundas de estilo de vida”, exemplifica.

“Vemos algo parecido em outros casos de negacionismo científico. Eu encontrei, em minha pesquisa sobre a homeopatia, mais de um indivíduo que me disse algo como: eu sou uma ‘pessoa homeopática’. Para alguém que se identifica a tal ponto com a homeopatia, a crítica à doutrina é inevitavelmente percebida como uma crítica pessoal, uma crítica que atinge o estilo de vida de todo um grupo de pessoas, de toda uma comunidade”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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