Os jogadores de futebol do estado de São Paulo têm o mesmo risco de contrair COVID-19 que dos profissionais da área de saúde que atuam no combate à doença. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) constatou que a incidência de infecção pelo coronavírus entre os atletas que disputam os campeonatos da Federação Paulista de Futebol (FPF) foi de 11,7% na temporada de 2020, índice semelhante ao de médicos, enfermeiros e funcionários de clínicas e hospitais de todo o mundo que trabalham na linha de frente da luta contra a pandemia.
Segundo a médica Ana Lucia de Sá Pinto, coordenadora do Laboratório de Avaliação e Atividade Física em Reumatologia, do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP), que participou do estudo, a ideia de realizar o levantamento surgiu quando começaram as primeiras publicações relatando que atletas profissionais e amadores competitivos estavam apresentando sintomas de falta de ar, fadiga e arritmias cardíacas complexas após terem sido diagnosticados com COVID-19. “Como essa é uma doença muito nova, tínhamos várias perguntas”, conta. “Entre elas, quanto tempo depois do diagnóstico esses sintomas poderiam aparecer?”
Os pesquisadores também queriam saber quanto tempo os sintomas podem durar; se estão associados à gravidade da doença; o comprometimento cardiológico é mais comum em qual faixa etária dos atletas profissionais; se haveria diferença entre os sexos ou modalidades esportivas e entre as idades. “A FPF nos repassou uma planilha com todos os exames RT-PCR para COVID-19 dos jogadores e staff de apoio (comissão técnica, dirigentes, profissionais de saúde e outros profissionais envolvidos nos jogos e atividades dos clubes) de vários times e de várias divisões, feitos durante a temporada 2020, pelo laboratório contratado para isso”, diz
“Os jogadores e membros do staff foram classificados como assintomáticos, leves, moderados e graves, de acordo com um questionário que foi elaborado por nossa equipe”, explica Ana Lucia. “Depois, fizemos uma análise estatística para a determinação do número e porcentagem de exames positivos entre os atletas e staff, assim como o tipo de manifestação clínica”.
Os pesquisadores analisaram 29.507 testes aplicados em 4.269 atletas e 2.231 integrantes do staff de apoio. Todos foram testados várias vezes, ao logo da disputa de oito torneios, dos quais seis masculinos (Taça Paulista, Sub-23, Sub-20 e as três divisões do Campeonato Paulista) e dois femininos (Campeonato Paulista e Sub-17). No total, 501 jogadores e 161 (7,2%) membros do staff foram infectados pelo novo coronavírus.
Segundo o coordenador da pesquisa, Bruno Gualano, da FM-USP, a taxa de infecção por COVID-19 dos atletas de São Paulo é bastante elevada, principalmente se comparada à de seus colegas de profissão de outros países. “Analisamos dados da literatura científica referentes a outras ligas de futebol”, conta. “Na Bundesliga, da Alemanha, por exemplo, foram oito casos entre 1.702 jogadores, o que representa 0,6%”.
Na Dinamarca houve quatro contaminados entre 748 atletas, ou seja, 0,5%. “Também comparamos com o Catar, onde há um risco moderado de transmissão comunitária”, informa. “Mesmo lá, o número foi menor do que o nosso. Houve 24 positivos entre 549 avaliados, o que dá 4%. Comparados aos outros casos de que se tem registro, portanto, nossos jogadores se infectaram entre três e 24 vezes mais”.
Essa alta incidência de COVID-19 entre os jogadores de São Paulo não se dá, no entanto, devido a alguma falha do protocolo estabelecido pela FPF. Ele é similar aos de outras ligas. A diferença está no descontrole da contaminação comunitária que se tem no Brasil. “Isso reflete também no esporte, pois os atletas e os integrantes estão mais expostos ao novo coronavírus, como toda a população”, diz Gualano.
Ou seja, segundo Gualano, ao contrário do que se imaginava, as evidências apontam que transmissão cruzada – de um atleta para outro durante um jogo ou treino – não é tão comum. “Isso provavelmente se deve ao ambiente aberto e aos contatos muitos rápidos entre os jogadores”, explica. “A infecção ocorre principalmente por causa da vida social agitada de muitos deles – não dá para generalizar – e da pouca observância das intervenções não farmacológicas, como o uso de máscara, o distanciamento social e a higienização. Tudo culmina numa taxa de infecção maior”.
Gualano cita outro resultado relevando do estudo, que foi o fato de, embora a incidência da COVID-19 tenha sido maior entre os atletas, a doença ter sido mais grave nos integrantes do staff. “De modo geral, encontramos poucos casos moderados e graves no grupo estudado, o que limita as conclusões, mas com base nos casos observados há uma probabilidade estatística maior de que eles ocorram com membros do staff”, explica. “Isso ocorre porque esse pessoal geralmente é mais velho e pode apresentar fatores de risco para COVID-19 mais grave do que os atletas”.
A boa notícia, de acordo com Gualano, é que os jogadores raramente têm a forma grave da doença. A má é que podem ser vetores de transmissão comunitária, porque o Brasil não adotou uma política de rastreio de contatos. Nesse quadro, ele diz que o estudo deixou duas lições. “A principal é que, se o esporte for aberto num cenário de pandemia não mitigada, a tendência é haver um número expressivo de infecções”, alerta. “Foi isso que aconteceu no ano passado”.
A segunda lição, segundo Gualano, é para o futuro. “Nese cenário de 2021, que é muito pior que o de 2020, com a emergência de novas variantes do novo coronavírus, caos no sistema de saúde público e privado, número de infecções, hospitalizações e óbitos absolutamente alarmante, qualquer abertura tem que ser muito restrita”, defende. “Costumo dizer o seguinte: olhando os números e o cenário atual, ou fecha ou abre-se na forma de bolha, isolando por completo o ambiente esportivo, o esporte em si e todos os seus envolvidos, da comunidade. Se não for possível amenizar a pandemia na comunidade, e não parece que isso acontecerá no futuro próximo, essa é a única saída”.
Gualano diz que isso foi feito com sucesso nos Estados Unidos, com a criação da bolha na NBA, na qual não houve um caso sequer de infecção. “Para isso, foi adotado um protocolo muito rigoroso para que não houvesse furo da bolha”, explica. “Houve medidas de segurança muito rígidas e testes a todo momento, principalmente na entrada da bolha. Os indivíduos tinham que conviver nela, que, no caso, era em resorts da Disney”.
No caso do Brasil, o pesquisador diz que é necessário considerar o tamanho do país. “Se houver interesse em se retomar o futebol, talvez sejam necessárias bolhas regionalizadas, que congreguem equipes de uma mesma região, de modo a realmente evitar deslocamentos e tornar seguro o espaço habitado por integrantes de equipes próximas”, diz Gualano. “É uma alternativa a ser pensada pelos gestores dos clubes e autoridades”.
A pesquisa coordenada por ele foi realizada no âmbito da coalizão Esporte-COVID-19, composta por pesquisadores de oito instituições – HC-FM-USP), Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital do Coração (HCor), Complexo Hospitalar de Niterói, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e Núcleo de Alto Rendimento Esportivo – com apoio da FPF. O artigo resultante do trabalho está na fase da análise por pares, para ser publicado.