É fácil ficar boquiaberto quando nos lembramos dos governantes, de diferentes países, que simplesmente minimizaram os efeitos da pandemia de COVID-19. Parte dessa surpresa vem do fato de que a doença evoluiu rapidamente nos locais de origem, acendendo sinais de alerta suficientemente claros para que os países que foram atingidos depois pudessem ter se prevenido de modo mais eficiente.
Por outro lado, não é igualmente fácil, ao menos para muitas pessoas, sentir espanto quando assistimos a diferentes governantes ignorarem os sinais de alerta, cada vez mais claros, de que o clima da Terra vem sofrendo mudanças devido ao aquecimento global. Embora os cientistas já venham chamando atenção para o problema há décadas, literalmente, os efeitos mais severos só ocorrem numa escala de tempo também de décadas, ou séculos, gerando a falsa sensação de que não é um problema urgente.
No entanto, o que parece passar despercebido é que os efeitos climáticos advindos do aquecimento do planeta não estarão somente no futuro distante. Eles já estão acontecendo, pois o presente já está décadas à frente do início do fenômeno. É importante nos lembrarmos disso, pois há quem questione quando ocorrerá o ponto de não-retorno, ou seja, até quando poderemos continuar relaxados antes de tomarmos providências sérias e significativas, em nível mundial, para remediar o processo.
Fato é que não há um único ponto de não-retorno, mas vários. Por exemplo, de acordo com dados do 15º Relatório Especial do IPCC (sobre o qual falaremos mais adiante), publicado em 2019, a temperatura média mundial já está cerca de 1º C mais alta que o valor correspondente à era pré-industrial (que os especialistas em clima costumam delimitar entre os anos 1850 e 1900, embora nessa época a Revolução Industrial já estivesse a pleno vapor). Em outras palavras, o ponto de não-retorno para evitar que essa variação acontecesse jaz no passado. Não é por acaso que já estamos percebendo as consequências disso ao redor do planeta: diminuição da cobertura de gelo, aumento de intensidade/frequência de fenômenos climáticos extremos, aumento do nível médio do mar, entre outros.
De acordo com o mesmo relatório, as projeções climáticas mais otimistas mostram que a temperatura média global deve subir mais 0,5º C até o fim do século, fazendo com que os esforços atuais se concentrem em tentar planejar (e executar) estratégias para limitar o aquecimento global a esse total de até 1,5º C, quando em comparação com os níveis pré-industriais. Porém, dentro dos esforços necessários para isso, está a difícil missão de fazer com que todas as emissões antropogênicas (causadas por atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis) de dióxido de carbono (CO2) cessem ao longo das próximas décadas, além da implementação de tecnologias de sequestro desse gás, capazes de diminuir sua concentração atmosférica de forma relevante. Torna-se evidente, portanto, que enquanto continuarmos a mover o mundo da mesma forma como estamos fazendo, diferentes pontos de não-retorno, associados a consequências climáticas cada vez mais graves, serão ultrapassados.
É curioso notar que, como o que acontece com quase todas as afirmações científicas, o aquecimento global tem seus partidários negacionistas. A Revista Questão de Ciência já abordou tanto a problemática do fenômeno (como aqui e aqui, por exemplo) quanto a do seu negacionismo (como aqui e aqui).
Mesmo assim, recentemente recebemos um e-mail apresentando diversos textos de autoria de Ernani Sartori, que se apresenta como “grande cientista” e professor de transferência de calor, incluindo o livro intitulado “Muitas Absurdas Insanidades da Ciência do Aquecimento Global e o Novo Ciclo da Água”, que buscam pôr em xeque a ciência por trás das afirmações que são feitas sobre as mudanças climáticas. Neste artigo, vamos explorar alguns pontos abordados por Sartori. Destacamos essa produção não por causa do autor em si, mas por seu valor didático: nela, repetem-se equívocos muito comuns nas discussões sobre o assunto.
A “turminha”
É assim que o autor se refere aos cientistas de diferentes áreas, como físicos, meteorologistas e climatologistas, que trabalham com modelos climáticos, na árdua tarefa de tentar desvendar os segredos de um sistema tão grande e complexo como a nossa atmosfera e, por consequência de seus resultados, defendem que as ações humanas são determinantes causadoras do aumento gradativo da temperatura média do nosso planeta.
A principal turminha corresponde a não menos que o IPCC: o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas. Desse painel fazem parte cientistas de vários países, inclusive do Brasil, como Paulo Artaxo (doutor em física atmosférica e professor da USP), que emitem relatórios periódicos (Assessment Reports e Special Reports) a partir dos resultados do trabalho de três grupos distintos: um sobre os fundamentos científicos por trás do funcionamento do clima; outro sobre os impactos das mudanças climáticas em diferentes locais do planeta; e o terceiro busca soluções para mitigação do processo. Esse grande time trabalha em busca dos melhores dados científicos disponíveis, produzindo as melhores evidências que temos no momento para tomar decisões acerca do clima. Não é à toa que são reconhecidos internacionalmente e já foram laureados com Prêmio Nobel da Paz, em 2007.
A seguir, alguns dos argumentos apresentados na tentativa de desbancar a tal “turminha”, na formulação de Sartori:
Locais livres do aquecimento global
Somente o exame criterioso das condições de cada lugar pode garantir se o mesmo está sob influência de atividades humanas ou não [...]. Esse método foi aplicado em Campinas e Bauru, do Estado de São Paulo e, enquanto foi encontrada uma influência industrial e urbana local em Campinas, Bauru ali pertinho não mostrou nenhuma mudança climática no mesmo período considerado para ambos os lugares (livro, p. 15).
Quando se fala em “aquecimento global”, isso é obviamente diferente de “aquecimento local”. Não poderia ser mais óbvio. Esse argumento também costuma aparecer, de modo semelhante, assim: “a cidade X apresentou o inverno mais rigoroso dos últimos Y anos, desde quando isso é evidência do aquecimento global?”.
O aquecimento global é caracterizado pelo aumento da temperatura média mundial, que ocorreu ao longo do tempo, desde a era pré-industrial. Assim, quando se diz que a temperatura média global está aumentando, isso não implica que a temperatura média de todos os locais da Terra também esteja subindo gradativamente. Em tempos de pandemia atual, é possível trazer um exemplo bem didático: quando a média de casos da doença, no país, aumenta, isso não implica que todas as cidades da nação também tiveram subida na quantidade de infectados.
Aliás, é justamente por isso que existem dois termos distintos, com significados diferentes, relacionados ao fenômeno: enquanto chamamos de aquecimento global o aumento da temperatura média do planeta, isso não vai gerar o mesmo efeito climático em todos os locais do globo. Portanto, como consequência desse aquecimento, temos mudanças climáticas que se manifestam de modo distinto para diferentes regiões: umas podem estar com temperatura média anual em declínio, outras em ascensão; umas podem estar sofrendo com excesso de chuvas e tempestades severas, outras com a ocorrência de períodos de seca mais duradouros; e assim por diante.
A previsão do tempo
Como [a ciência do aquecimento global] pode fazer previsões para daqui 100-200 anos? (livro, p. 71).
Sobre as previsões, outro comentário do mesmo autor, publicado na internet (veja aqui), sustenta que os modelos climáticos usados pelo IPCC são “fajutos e ajustados para darem apenas os resultados desejados”. Ou seja, parece sustentar que os cientistas estão deliberadamente manipulando os dados dos modelos, até que as previsões levem a resultados previamente desejados.
No que se refere a criticar a confiabilidade dos modelos climáticos, ainda é possível encontrar afirmações do tipo: como podem as previsões para o final do século estarem corretas se as previsões do tempo para daqui dois ou três dias já são difíceis de acertar?
Primeiramente, é preciso entender a diferença entre tempo e clima: enquanto o primeiro está relacionado às características meteorológicas instantâneas e momentâneas, como temperatura, umidade e precipitação, que podem mudar rapidamente, o segundo se refere à média dos tempos em um longo período de análise. Dito de modo bem simples, não é a ocorrência de um dia chuvoso em uma cidade do sertão nordestino que vai fazer com que o clima da região deixe de ser caracterizado por escassez de chuva.
Ao mesmo tempo em que é bem difícil acertar, de antemão, o resultado da distância de um lançamento de dardo, feito em uma única tentativa, em uma competição olímpica, não é muito difícil, a partir do conhecimento de diversos lançamentos anteriores do atleta, estimar uma distância média esperada para um conjunto completo de lançamentos. É exatamente isso que os modelos climáticos que geram previsões para o fim do século fazem: mesmo não sendo possível predizer se vai chover no Rio de Janeiro, no carnaval, em 2080, o comportamento climático global, ou regional, oriundo do padrão médio meteorológico, é passível de cálculo.
É claro que esses modelos utilizados não são simples, mas o IPCC não esconde isso de ninguém. Quando se avaliam os gráficos que eles apresentam, é perfeitamente clara a margem de erro das previsões, que é uma espécie de cômputo das incertezas presentes, o que gera um intervalo de valores possíveis para o resultado final da temperatura média global, calculado a partir da evolução das condições da atmosfera ao longo das décadas.
Resta ainda uma dúvida: como confiar nessas previsões para um futuro tão distante? Em outras palavras, como sabemos que os modelos são bons o suficiente para a tarefa a que se propõem? Uma das maneiras interessantes e engenhosas de validar os modelos é por meio da sua aplicação a condições atmosféricas do passado, para ver se conseguem “pós-dizer” o que já sabemos que aconteceu anos atrás. Assim, são os mecanismos de validação os reais determinantes para o uso dos modelos, e não alguma “conta de chegar” feita por cientistas para enganar o mundo.
O taco de hóquei
Como a “ciência” [do aquecimento global] não funciona, é de se esperar que muita coisa descambe para manipulações, a fim de sustentar o que não pode ser sustentado. E este também deve ser o caso do gráfico “taco de hóquei”, que é o elemento que dá o suporte mais notável para a “teoria” do “aquecimento global causado por CO2” (livro, p. 11).
Já vimos que os melhores modelos climáticos não são oriundos de conluio científico para escolher o que se deseja apresentar como sendo o futuro do clima na Terra. Então o que dizer sobre os dados da concentração de dióxido de carbono na atmosfera ao longo do tempo, que, como o próprio autor negacionista reconhece, dão o suporte mais notável para o aquecimento global baseado nesse gás?
Para quem não é familiarizado com a área, o tal “gráfico do taco de hóquei” é o que talvez seja a figura mais famosa acerca das discussões sobre o tema: ele mostra a evolução temporal da concentração atmosférica de CO2 ao longo de milhares de anos. A partir dele, é inequívoco perceber, na parte mais à direita, uma subida abrupta e intensa na concentração do gás. Ela ocorre justamente a partir de 1880: começamos a queimar combustíveis fósseis em larga escala, chegando à incrível capacidade de conseguir alterar a concentração de CO2 (que é um subproduto dessa combustão) em nível global.
É importante destacar que a escala horizontal do gráfico apresenta o “zero” no extremo direito, correspondendo ao tempo presente. Os valores à esquerda representam, portanto, o passado: a concentração atmosférica do gás ao longo de centenas de milhares de anos. A unidade apresentada para a concentração do gás, no eixo vertical, é ppm, que significa “partes por milhão”. Vemos que, ao longo de muitos milênios, ela atingiu valores máximos em torno de 280 ppm (formando um platô longo e relativamente baixo, o que seria “o cabo do taco de hóquei”). Atualmente, a concentração média global desse gás atingiu um valor nunca antes visto: acima de 400 ppm (a subida íngreme na direita do gráfico forma “a lâmina do taco”, para completar o apelido).
Vale lembrar que o aumento da temperatura média global, como dissemos no início deste artigo, ocorre justamente a partir do mesmo período em que a concentração de dióxido de carbono aumenta, após o período da Revolução Industrial. Para piorar a situação, a tendência atual da quantidade desse gás na atmosfera não é de estabilização, mas um crescimento persistente. É por isso que o prognóstico para o futuro, no momento, não é animador. Políticas públicas efetivas, em nível mundial, precisam entrar em cena rapidamente.
Mas, afinal, o que a concentração desse gás na atmosfera tem a ver com a temperatura global? A resposta passa por entender o que se chama de efeito estufa. Funciona, basicamente, assim: o Sol envia calor para a Terra, por meio das ondas eletromagnéticas que ele emite continuamente em todas as direções. A superfície terrestre absorve parte dessa energia e esquenta, refletindo outra parte de volta para o espaço. A própria Terra, da mesma forma que qualquer outro objeto que tenha uma temperatura acima do chamado “zero absoluto” (cerca de -273º C), também emite energia, por meio de ondas eletromagnéticas, para o espaço ao seu redor. Porém, todo esse fluxo de calor constante entre a superfície e o espaço precisa atravessar a camada de gases no entorno da Terra: a nossa atmosfera. Uma parte dessa energia acaba sendo absorvida pelo ar, graças à presença dos chamados gases de efeito estufa. Dentre eles, o CO2 é um dos principais, juntamente com vapor de água (H2O), metano (CH4), e outros.
Como consequência da composição da nossa atmosfera, a amplitude térmica média do nosso planeta, isto é, a diferença de temperatura entre o dia e a noite, não é muito grande. Esses gases funcionam como uma espécie de cobertor da Terra, o que é benéfico à nossa vida por aqui. Apenas para você perceber a importância do processo, Mercúrio é o planeta mais próximo do Sol, mas como não tem atmosfera, não desfruta desse efeito. Por consequência, enquanto a sua superfície exposta ao Sol (durante o “dia”) chega a atingir 430º C, a porção oposta, escondida da luz solar (durante a “noite”), cai à marca de -180º C. Embora Vênus não seja o planeta mais próximo do Sol, é o mais quente do nosso Sistema Solar: sua atmosfera, rica em CO2, gera um efeito estufa tão intenso que faz com que sua temperatura possa chegar a escaldantes 470º C. Apenas para sua curiosidade e imaginação, o chumbo derrete a cerca de 330º C.
Resumo da ópera: o efeito estufa é positivo para nossa vida aqui na Terra. Porém, à medida que alteramos a composição atmosférica em nível global, a partir das emissões de CO2 antropogênicas, pós-industriais, estamos contribuindo para intensificação desse efeito, o que acaba gerando o aumento da temperatura média global: o que chamamos aquecimento global.
Existem duas alegações incorretas, bastante comuns, em relação ao que é apresentado no gráfico da concentração atmosférica de dióxido de carbono, o que vale a pena explorarmos brevemente: as medidas são feitas apenas em um local da Terra, no Havaí (um arquipélago no Oceano Pacífico que pertence aos Estados Unidos); as medidas de CO2 não são confiáveis, pois sabemos que a concentração desse gás na atmosfera pode sofrer variações de local para local, e até de um dia para o outro.
Sobre a primeira, realmente existe uma localidade havaiana onde está uma das fontes geradoras de dados sobre o CO2 atmosférico, mas ela não é a única, ao contrário do que alegam. Esse vídeo, por exemplo, mostra, simultaneamente, os dados obtidos a partir de diversas estações, localizadas em diferentes latitudes terrestres, entre 1980 e 2006, todos com o mesmo comportamento. Além disso, a tendência do aumento da concentração média de dióxido de carbono medida somente no topo do Mauna Loa, no Havaí, concorda muito bem com a média das medidas de diferentes estações ao redor da Terra, o que depõe a favor do fato de que a tendência medida no Havaí acaba servindo como uma boa amostra para o comportamento global da concentração desse gás.
A segunda alegação está parcialmente correta. Ou seja, embora a concentração de CO2, de local para local, ou de um momento para o outro, possa mesmo variar, o gráfico do taco de hóquei é baseado no valor médio do dióxido de carbono atmosférico. Assim, variações instantâneas não tornam menos confiável a apresentação da média. O argumento é tão incorreto quanto considerar que a análise do clima de uma região não é confiável só porque as condições meteorológicas são diferentes, de um dia para o outro.
Um passado distante
O calor acumulado, temperaturas e suas variações, em cilindros de gelo supostamente sendo de centenas ou milhares de anos atrás, na verdade podem ser de algumas horas ou dias atrás apenas (veja o original aqui).
Basicamente, o recorte em questão tentar colocar em dúvida os dados científicos acerca de um passado mais distante da Terra, muito antes do período da Revolução Industrial. Ora, uma vez que os registros de temperatura não eram feitos sistematicamente até meados do século 18, como podemos confiar em medidas de temperatura média global, e concentração média de CO2 atmosférico, para períodos de tempo envolvendo milhares de anos no passado?
Aí é que mais precisamos da ciência para resolver problemas: da mesma forma que camadas profundas de perfis geológicos guardam informação sobre o passado da Terra, também podemos estudar as camadas profundas de gelo, formadas há milhares de anos: à medida que gelo “novo” se forma sobre uma camada anterior, de gelo “velho”, ele guarda consigo contaminantes e pequenas bolhas de ar que estão relacionados com a composição da atmosfera do momento. Assim, escavadeiras podem fazer furos profundos nas geleiras, por exemplo, para retirar núcleos cilíndricos de gelo que serão analisados quimicamente, camada por camada, em busca de desvendar as condições atmosféricas ao longo do tempo, chegando, inclusive, a milênios atrás, como os dados mostrados no gráfico do taco de hóquei.
Mas, e quanto aos dados de temperatura? Não é possível medir diretamente a temperatura que vigia na época em que cada camada de gelo se formou. Parece que o recorte negacionista, criticando as medidas de temperatura da Terra a partir do gelo, está correto. Bom, só parece.
A medida da temperatura atmosférica do passado não é direta, mas sim reconstruída a partir da investigação de fenômenos cujos efeitos sejam dependentes da temperatura ambiente quando aconteceram. Uma das maneiras de se fazer isso é utilizar o que chamamos de “isótopos”. Por exemplo, sabemos que o gelo é formado por água no estado sólido, logo suas moléculas são compostas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, a famosa fórmula H2O. A questão é que, na natureza, existem diferentes tipos de “hidrogênio” e de “oxigênio”, são os seus isótopos.
Vamos explorar com um pouquinho mais de detalhes: o que faz com que um determinado átomo seja chamado de “hidrogênio” é o fato de seu núcleo ser composto por apenas 1 próton. Então, quando falamos do “hidrogênio-1”, queremos dizer que é um átomo com 1 próton (por ser chamado “hidrogênio”) e nenhum nêutron no núcleo. Mas outro tipo de hidrogênio, ou, tecnicamente, um isótopo dele, é o “hidrogênio-2” (ou também chamado de “deutério”): agora, o núcleo desse átomo tem 1 próton (por ser chamado “hidrogênio”) e 1 nêutron, de modo que o total de partículas no núcleo é igual a 2. A mesma lógica pode ser aplicada para qualquer outro elemento da tabela periódica que você aprendeu na escola. Enquanto o oxigênio mais comum na natureza é o “oxigênio-16” (com 8 prótons e 8 nêutrons, totalizando 16 partículas no núcleo), também podemos encontrar, por exemplo, o “oxigênio-18” (que, por ser “oxigênio”, tem 8 prótons, mas agora possui 10 nêutrons nucleares, ao invés dos 8 anteriores).
A grande maioria dos “hidrogênios” na natureza é hidrogênio-1, enquanto o tipo de “oxigênio” mais comum é o oxigênio-16. Graças a esse fato, a molécula de água mais comum é formada por dois átomos de hidrogênio-1 e um átomo de oxigênio-16. Porém, e é aí que as coisas ficam interessantes, algumas moléculas de água são formadas por pelo menos um desses 3 átomos substituídos por seus isótopos mais pesados, por possuírem mais partículas no núcleo. Assim, um ou dois dos hidrogênios-1 podem ser substituídos pelo hidrogênio-2, ou o oxigênio-16 pode dar lugar ao oxigênio-18.
Finalmente, a ideia central é que a quantidade relativa de águas pesadas e águas comuns, em determinada camada de gelo, depende da temperatura do ambiente à época. O motivo por trás disso, de forma simples, é que a energia necessária para evaporar uma molécula de água pesada do oceano, por exemplo, é levemente maior que a necessária para evaporar a água comum. Assim, em períodos climáticos mais quentes, a água que precipitou na geleira para formar o gelo, vinda da atmosfera, é mais rica em água pesada, e o contrário acontece em períodos mais frios. Portanto, medidas dessas quantidades relativas de isótopos, encontradas em diferentes camadas de gelo, são uma boa maneira de investigar a temperatura dos grandes períodos de tempo em questão.
Não satisfeito com o método, destaco que existem ainda outras maneiras, independentes, de verificar temperaturas ancestrais a partir de outras pistas presentes no ambiente, como características de corais e de anéis de crescimento de árvores. Assim sendo, dado esse conjunto de técnicas engenhosas da ciência, podemos afirmar, com boa margem de segurança, que as temperaturas médias presentes no planeta atual são as mais altas atingidas em um período de tempo de mais de 10 mil anos.
A culpa é da água
Já se verifica que o vapor d’água é o gás de maior efeito estufa, e muito maior do que o CO2, mas a turma [do aquecimento global] o despreza (ver o original aqui).
Quando aceitamos que as temperaturas médias atuais são as maiores dos últimos milênios, a estratégia negacionista é apelar para a alegação de que a culpa desse processo não é do CO2, mas de qualquer outra variável distinta. Dentre elas, a saída mais famosa é jogar a culpa para a água: mais especificamente, para o vapor de água na atmosfera. A saída, novamente, é baseada em uma meia-verdade. De fato, a capacidade de absorção de energia pelo vapor de água é bem maior que a do dióxido de carbono. Mas a ciência atmosférica não ignora esse fato, inclusive o reconhece: salientando que mudanças na quantidade de vapor presente na atmosfera podem, sim, intensificar o aquecimento do planeta.
Embora a informação sobre a eficiência da absorção energética da água seja correta, o comportamento atmosférico do seu vapor é diferente do CO2. E o motivo é simples: enquanto a concentração de CO2 na atmosfera pode aumentar sempre que novas emissões desse gás acontecerem, a quantidade de vapor de água não consegue crescer indefinidamente. O limite de água atmosférico é dependente da temperatura do ar. Atmosfera mais quente consegue acumular mais água que atmosfera mais fria. Além disso, a atmosfera tem meios de liberar rapidamente vapor de água, como a ocorrência da chuva, ao passo que a liberação de dióxido de carbono da atmosfera é um processo lento, durando décadas ou séculos.
Dessa forma, o vapor de água é, sim, parte importante do processo de compreensão do aquecimento global, mas esse problema é intensificado justamente pelo aquecimento da atmosfera do planeta gerado pelo aumento desenfreado da concentração de CO2. É um sistema de feedback positivo: mais CO2, maior temperatura da atmosfera e de recursos hídricos, mais evaporação, maior capacidade de sustentação de água na atmosfera, maior temperatura novamente...
De fato, apenas para não parecer simplista demais, é importante lembrar que o clima da Terra é um sistema complexo, onde vários fatores realmente contribuem para efeitos globais. Mas não se iluda quando tentarem usar esse argumento para dizer que as emissões humanas de gases de efeito estufa não são capazes de gerar mudanças no clima global, atribuindo a culpa do aquecimento para outros inúmeros fatores, como as variações da energia emitida pelo Sol, as partículas de aerossóis em suspensão na atmosfera, cobertura de nuvens, etc. O grupo do IPCC tem consciência disso, e os melhores modelos climáticos levam em consideração esses diferentes aspectos.
O aquecimento global é insignificante
Dizem que a temperatura do planeta vai subir 2º C em 2100, uma temperatura que não tem capacidade ou poder de causar nenhuma catástrofe (veja o original aqui).
O argumento aparentemente convence. Quem vive a 20º C ou 22º C não percebe grandes diferenças. Durante um dia, a temperatura em uma cidade pode variar mais de 10º C, e ninguém passa por uma catástrofe por causa disso. Tanto faz um ou outro grau a mais de temperatura na minha cidade, dizem... O problema dessa ideia reside no fato de que quando a temperatura média global sofre uma variação de 1 ou 2 graus, isso não ocorre uniformemente por todo o planeta. As características geográficas diferentes fazem com que cada região sofra efeitos distintos e persistentes no seu ciclo de temperaturas.
É esse processo de variação de temperatura de longo prazo que gera, por exemplo, em algumas regiões, a incidência de ondas de calor mais extremas e mais frequentes, mudanças na disponibilidade de água de recursos naturais, impactos na biodiversidade, na agricultura, e incremento na frequência de tempestades extremas. Já outras regiões podem sofrer com mudanças no sentido contrário, igualmente danosas: invernos mais rigorosos, secas persistentes, e assim por diante.
Em suma: uma pequena variação em nível global é resultado de distintas variações locais, grandes ou pequenas, a depender da região, mesmo que essas variações possam ser divergentes entre si.
O conjunto da obra
Embora do IPCC façam parte diversos cientistas independentes, dos quatro cantos da Terra (sem fazer apologia à Terra plana), a turminha do aquecimento global é bem maior que esse grupo. Cientistas já vêm alertando há décadas sobre a necessidade de tomarmos medidas eficazes contra o aumento da temperatura média global, ocasionada por fatores antropogênicos. Mas foi à medida que o conjunto de evidências desse processo se tornou cada vez melhor que a comunidade científica defensora da causa se tornou cada vez maior.
Atualmente, a partir da análise das publicações em revistas científicas, sabe-se que pelo menos 97% dos pesquisadores envolvidos em trabalhos ligados à climatologia concordam sobre a ocorrência do aquecimento global e o papel antropogênico determinante no processo. Seriam os poucos negacionistas os grandes revolucionários da ciência das mudanças climáticas?
Ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer que a ciência não produz verdades absolutas, é muito difícil dar crédito às argumentações como essas que exploramos neste artigo, pois, como vimos, elas não são nada além da propagação de ideias baseadas em erros básicos, mostrando desconhecimento sobre como realmente são obtidas e testadas as evidências científicas.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia