Não há como negar que o governo Jair Bolsonaro tem uma política, uma estratégia, para lidar com o meio ambiente. Só que é do contra. Ela inclui pressão contínua pela flexibilização e revogação de leis ambientais; demissão, transferência ou silenciamento de servidores de diferentes órgãos de fiscalização; e cortes orçamentários. Só um exemplo deste último item: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sofreu um corte de quase 15% em 2020 quando comparado a 2019. Para 2021, a ameaça é de uma redução de mais 20% em relação a este ano. Enquanto isso, os incêndios no Pantanal e o desmatamento na Amazônia batem recordes.
Por isso, a bióloga Luciana Leite, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que “o governo federal tem um plano muito bem delimitado e em execução de aceleração da destruição do meio ambiente”. “Ele está sendo implantado em diferentes frentes”, acrescenta. “E talvez ainda mais grave, há a negação dos problemas ambientais como as mudanças climáticas e no uso do solo e, mais recentemente, as queimadas na Amazônia e no Pantanal. Some-se à política de negação dos fatos a utilização de estratégias de desinformação da população, e a polarização e politização falha na proteção de um direito fundamental dos brasileiros: de um meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Para o também biólogo Hugo Fernandes-Ferreira, da Universidade Federal do Ceará (UFC), quando se fala em política ambiental, é preciso separar o que são as ações de manutenção dos serviços ligados ao Ministério do Meio Ambiente e o que seria a agenda do atual do governo sobre os rumos da pasta. “Comecemos pelas ações”, diz. “Seria leviano falar que não há atividade. O Ministério existe, funcionários do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) estão trabalhando e sendo pagos, e diversas ações estão sendo mantidas”.
Entretanto, ele ressalva, boa parte dessas ações, principalmente aquelas que podem ir contra os interesses da bancada do agronegócio, “têm sido desqualificadas e desmontadas, diante de um processo histórico de ataques”. De acordo com Fernandes-Ferreira, o maior reflexo disso são os cortes no orçamento do Ministério em 2019 e 2020. “No ano passado, alguns programas chegaram a mais de 80% de redução orçamentária, caso da Política Nacional de Resíduos Sólidos”, conta. “Os programas de fiscalização do Ibama, hoje mostrando o quanto somos dependentes disso, tiveram cortes de 24%”.
Para piorar, os cortes foram aprofundados em 2020 e, como se não bastasse, os recursos não estão sendo utilizados. “No meio de um caos de desmatamento e queimadas, o governo só havia usado 20% do orçamento do Ibama até agosto”, diz Fernandes-Ferreira. “O PrevFogo, por exemplo, principal programa de combate e controle de incêndios do país, teve 50% do seu financiamento cortado. As previsões para 2021 são de ainda mais cortes para o Ibama e ICMBio”.
Segundo o pesquisador, o desastre nas ações é um retrato fiel do segundo ponto, a agenda negativa. “Estamos num período da história em que ainda precisamos convencer apoiadores do governo de que ele apresenta uma agenda anti-ambiental, mesmo quando o próprio presidente deu declarações explícitas por diversas vezes, em campanha eleitoral, com suas próprias palavras gravadas em vídeo”, lamenta. “Não sei o que mais é preciso para convencer alguém de tal absurdo, quando o chefe maior da pasta é um indivíduo condenado pela Justiça por improbidade administrativa, por mudar mapas de zoneamento de áreas de conservação para favorecer empresas de minério”.
Ele se refere à condenação em primeira instância de Ricardo Salles, por improbidade administrativa, quando era secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, no governo de Geraldo Alckmin. Ele foi condenado pela acusação do Ministério Público de ter fraudado o processo do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê. Segundo o MP, Salles teria modificado mapas elaborados pela USP, “alterado minuta do decreto do plano de manejo e promovido perseguição a funcionários da Fundação Florestal” para beneficiar empresas do setor de mineração.
Já como ministro do Meio Ambiente, em reunião ministerial de 22 de abril, Salles sugeriu que o governo aproveitasse a pandemia de coronavírus para adotar “medidas infralegais” e “passar a boiada” no meio ambiente. “Entenda-se com isso a destruição das conquistas legais que asseguram o direito ao meio ambiente, definido na Constituição Federal”, explica o biólogo e doutor em Ecologia Paulo Brack, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para o pesquisador, que também faz parte da coordenação da entidade ambientalista Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), “trata-se de uma política evidentemente fora da lei”. “Por isso, se levanta uma grande mobilização de setores da sociedade, incluindo também o Ministério Público, contra as políticas de extermínio de direitos de povos indígenas e o abandono do Estado em relação aos seus compromissos com as unidades de conservação”, diz.
De acordo com Brack, o governo segue a lógica imediatista de transformar tudo em riqueza econômica para setores já privilegiados. “Faz isso dentro da concepção do século passado, mas resgatada por Donald Trump, de que meio ambiente e a ciência atrapalham o negócios. As metas são retirar os avanços na legislação, na gestão ambiental e nos acordos internacionais relacionados ao clima (Acordo de Paris) e à biodiversidade (Convenção da Diversidade Biológica)”, explica. “Ignora a Constituição, que assegura o direito ao meio ambiente equilibrado para todos, e que garante a necessidade de manter os processos ecológicos, a diversidade biológica e que veda que se provoque extinção de espécies”.
Entre as ações de retrocesso, Brack cita a negativa de sediar a reunião internacional sobre mudanças climáticas no Brasil, ameaçando sair do Acordo de Paris, e promover a desestruturação do Ministério do Meio Ambiente, em especial do Ibama e do ICMBio. “O governo também tratou de combater os movimentos e as representações da sociedade no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama)”, critica. “Provocou um corte de mais de 70% da representação de entidades ambientalistas, indígenas e outros setores da sociedade neste Conselho”.
Para o pesquisador Demétrio Luís Guadagnin, do setor de Conservação e Manejo de Vida Silvestre do Departamento de Ecologia da UFRGS, a postura filosófica do governo federal é coerentemente retrógrada em todas as pastas, de forma abrangente. “Conceitualmente, está situada na postura laissez-faire desenvolvida no séculos 17 e 18 por pensadores como Thomas Hobbes, John Locke, François Quesnay e Adam Smith”, explica. “Segundo essa concepção, a natureza é infinita, os interesses individuais são soberanos, a tecnologia é onipotente e o mercado é capaz de lidar de forma eficiente com todo tipo de problemas”.
Guadagnin diz que essa visão ignora o conhecimento científico contemporâneo e já consolidado sobre os constrangimentos socioambientais e as pautas globais de desenvolvimento que se embasam nesse saber. “Essa postura não é capaz de dar conta da complexidade do presente, o que inevitavelmente resultará no agravamento dos desafios ambientais, econômicos e sociais, que agora sabemos que são interdependentes”, explica. “A sustentação dessa postura depende da negação da ciência como base do planejamento e da tecnologia como base do desenvolvimento, o que dá coerência às posturas adotadas pelo governo”.
Fernandes-Ferreira, por sua vez, não tem dúvidas que o atual governo “trabalha vigorosa e constantemente para minar a pauta ambiental brasileira”. “Engana-se aquele que pensa que a economia entraria em declínio se não fosse esse o padrão de operação”, diz. “Na verdade, as constantes ameaças de sanções e embargos, a possibilidade da não assinatura do acordo entre União Europeia e Mercosul, o esvaziamento do Fundo Amazônia por apoiadores europeus prejudicam, inclusive, o agronegócio que o presidente e seu ministro juram proteger. Considerando os constantes registros de encontros com grileiros, desmatadores e garimpeiros ilegais, talvez já dê para ter uma ideia do rumo do compromisso. A sensação de impunidade a eles está disseminada no país, como se fosse uma nova pandemia. Como se não bastasse isso, a tônica maior do governo diante das críticas tem sido negar deliberadamente não só a Ciência, como os fatos”.
Luciana tem certeza disso. “Não podemos dizer que o governo está falhando na proteção do meio ambiente, porque ele nunca se empenhou em fazê-lo”, explica. “Por isso, fica o meu apelo aos cidadãos brasileiros para que denunciem ao Ministério Público Federal a omissão criminosa do governo federal com relação aos incêndios do Pantanal e da Amazônia. A omissão do poder público é um crime e precisamos fazer rodar as poucas engrenagens que ainda restam da nossa democracia”.
Evanildo da Silveira é jornalista