Não é só com vacinas, drogas e isolamento social que se enfrenta uma pandemia, como a de COVID-19. Para os autores do livro Inimigo Mortal – Nossa guerra contra os germes assassinos, Michael Osterholm e Mark Olshaker, nesses casos é fundamental haver urna liderança eficiente, e a primeira responsabilidade do presidente ou líder de qualquer nação “é oferecer informações atualizadas e precisas, providenciadas por especialistas em saúde pública, não por agentes políticos orientados por outras agendas”. Para muitos cientistas do Brasil, é exatamente o que faltou e está faltando ao país, onde o número de mortos já ultrapassou a marca dos 100 mil.
A pesquisadora Silvia Regina Tozato Prado, do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), diz que, em momentos de pandemia, “o papel de um governante é crucial para que a sociedade se mantenha calma e possa confiar nas informações fornecidas pelos órgãos oficiais, o que também leva a ações corretas tanto pelos estados e municípios, quanto pela população”.
De acordo com ela, o presidente ou chefe de Estado ou de governo deve agir com cautela, sem alarde e comunicando os fatos reais para a sociedade, mesmo que num primeiro momento seja o “não sabemos”, tranquilizando as pessoas e solicitando compreensão e adesão às medidas que forem recomendadas. “Em casos como este, os conhecimentos gerados pela ciência são primordiais para condutas corretas e de proteção à sociedade”, defende. “O governante deve ter o papel de proximidade e confiança recíproca com as instituições científicas do país”.
Para o médico Jair Ferreira, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o papel dos governantes é tomar as decisões políticas, com embasamento nos conhecimentos técnicos disponíveis. “Ele deve mobilizar e agilizar os recursos para a área da saúde, onde as ações de combate à epidemia serão realizadas”, explica. “A decisão política diz respeito a quanto, onde e quando se aplicarão esses recursos. Além disso, o governante deve ter cientistas e especialistas em saúde pública como consultores, se já não os tiver dentro de suas próprias equipes de governo”.
Segundo o professor titular sênior (aposentado) Paulo Carpel Narvai, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), um presidente ou líder de governo deveria, “primeiro, não atrapalhar, e, segundo, adotar uma postura ética compatível com o exercício de funções públicas”. “Nosso atual presidente não tem agido conforme esses preceitos, razão pela qual o considero um chefe de Estado inconsequente e um chefe de governo irresponsável”, diz.
Na avaliação do também médico Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o governo central vem aplicando um programa que poderia ser chamado de “o que não fazer”, a despeito dos esforços realizados pelos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e de fora dele. “A atitude negacionista e irresponsável do governo federal, tendo à frente o próprio presidente da República, contribuiu para desorganizar a atuação do sistema público de saúde e para desorientar boa parte da população”, critica. “Soma-se a isso a perda quase completa de capacidade operacional e política do Ministério da Saúde”.
Sem querer justificar a atuação do governo brasileiro, Sílvia diz que essa pandemia foi algo inesperado. “A maioria dos governos não estava preparada para tal situação”, reconhece. “Muitos sequer haviam pensado nesta possibilidade. Mas como já disse, cautela e honestidade devem ser sempre uma conduta esperada. Porém, não tivemos isso no Brasil”.
De acordo com Sílvia, muito já foi falado sobre o que o presidente não deveria ter feito, como, por exemplo, menosprezar a situação ou “falar de condutas que somente deveriam ser ditas por especialistas dos órgãos da saúde e ciência”. “Novamente, o que deveria ser feito é dizer a verdade: que ninguém (cientistas e especialistas) sabia ao certo qual a melhor conduta para infectados e não infectados, a não ser o isolamento social”, diz. “Era a única coisa que se sabia no início e também que não havia tratamento eficaz e testado. Além disso, deveria pedir um voto de confiança para as ações tomadas. Mas só se consegue confiança tendo um discurso verdadeiro e de bom senso”.
É mais ou menos o que dizem os autores de Inimigo Mortal. “É muito melhor dizer que não se sabe determinada coisa, mas que se está trabalhando para descobrir a resposta, do que apresentar um discurso vago, que vai ser desmentido pelo próximo ciclo de notícias”, escreveram. “Se um presidente sacrifica a própria credibilidade, o público não sabe a quem recorrer. Mas vários estudos já mostraram que, munidas de informações honestas e francas, as pessoas não entram em pânico e aprendemos a trabalhar junto”.
Em relação a esta questão, Ferreira diz que discursos vagos não têm como ser desmentidos, justamente por serem vagos e sujeitos a várias interpretações. “O ideal é admitir o que não se sabe (até porque numa doença nova, mesmo os mais preparados cientistas ignoram muitos aspectos do problema)”, recomenda. “Só que esse ideal de sinceridade costuma provocar reações imediatas na oposição ('governante incompetente') e na imprensa ('governo admite que nada sabe'), politicamente incômodas para quem está no poder”.
Guimarães, por sua vez, ressalta o problema da comunicação dos gestores de saúde, autoridades e imprensa com a população. “Nesse aspecto, a falta de informações costuma vir acompanhada de outras destorcidas”, diz. “Isso já ocorreu no capítulo dos medicamentos (cloroquina, ivermectina e outros) e atualmente se expressa numa falsa esperança de uma vacina a curto prazo, que seria uma espécie de ‘bala de prata’ que acabaria com a pandemia”.
Ele alerta, no entanto, que essa expectativa prejudica o cumprimento das medidas não-farmacológicas, como o uso de máscaras e o isolamento físico, bem como não se sustenta do ponto de vista da realidade do desenvolvimento das vacinas. “Não é nada provável que um imunizante com um bom nível de proteção esteja no mercado nesses prazos que estão sendo anunciados, e muito menos que uma campanha de vacinação que atinja uma boa cobertura populacional possa ser realizada em curto prazo”.
Evanildo da Silveira é jornalista