Uma empresa de biotecnologia canadense anuncia a fabricação – com grande potencial para manufatura e distribuição rápida, após aprovação da agencia regulatória – de uma vacina para o SARS-Cov2, o novo coronavírus. Várias outras empresas e universidades estão trabalhando em diferentes abordagens para conseguir uma vacina. Qualquer uma que fique pronta primeiro, entretanto, terá que passar por um período de testes de, no mínimo, 18 meses a dois anos.
A novidade da vacina canadense é que ela nem precisa do vírus. Será feita usando apenas a sequência genética do Cov2, com técnicas de biotecnologia de plantas. A técnica em si não é novidade: clona-se a sequência genética de interesse em uma bactéria capaz de infectar células vegetais, e a planta começa a produzir a proteína que escolhemos, no caso, proteínas que são uma espécie de “assinatura” do vírus Cov2. Essas proteínas poderão ser usadas em uma vacina: afinal, vacinas funcionam treinando o sistema imune para reagir a agentes causadores de doenças. Se a proteína já basta para que as células de imunidade identifiquem o vírus, não precisamos do vírus inteiro para fazer o treinamento!
Se a vacina não precisa conter o vírus inteiro, atenuado ou inativado, o processo todo passa a ser muito mais seguro.
Outra vantagem? A produção na planta torna desnecessária a propagação dos vírus em ovos de galinha, técnica usada na produção de outras vacinas, inclusive várias vacinas de gripe sazonal. Hoje, precisamos usar uma quantidade grande de ovos para produzir vacinas contra alguns outros vírus, como o da febre amarela, o que muitas vezes atrasa, onera, e pode inviabilizar a produção em larga escala. Pode também prejudicar a produção em situações de emergência. Lembre-se do caso da febre amarela. Quando o Brasil precisou aumentar a produção, teve dificuldades, porque só temos uma granja certificada para produção de vacinas. Além disso, uma pequena parcela da população é alérgica a ovos, e não pode se beneficiar deste tipo de proteção.
Quer mais uma vantagem? Com o processo todo regulamentado e a produção em andamento, se o vírus sofrer mutações, bastaria alterar a sequência genética e poderíamos facilmente atualizar a vacina. Já explicamos, aqui, por que todo ano precisamos de novas vacinas da gripe.
A tecnologia utilizada para fazer esta vacina tão promissora é exatamente a mesma que usamos para produzir plantas geneticamente modificadas. A bactéria utilizada, Agrobacterium sp, foi uma das primeiras ferramentas em transgenia.
Curiosamente, em meio a uma crise, todos se voltam para a ciência em busca de soluções. Além da vacina canadense, várias outras abordagens vacinais também utilizam tecnologias de transgenia. E não são só vacinas. A biotecnologia contribui em diversas áreas para nossa saúde, alimentação e para a sustentabilidade do planeta.
Bactérias geneticamente modificadas produzem insulina humana desde 1976. O gene da insulina humana, exatamente o mesmo que produz insulina no pâncreas, foi inserido numa bactéria. O micróbio processa esse gene como se fosse dela, e produz um hormônio idêntico ao humano.
Sorte dos diabéticos, que antes dessa técnica, precisavam utilizar insulina extraída do pâncreas de porcos ou vacas, que não é exatamente igual à humana, e por isso, com o passar dos anos, podia gerar intolerância e reações alérgicas. Isso sem contar o sofrimento dos animais.
A fabricação de queijo também depende de biotecnologia. Para fazer queijo, a caseína, uma molécula presente no soro do leite, precisa ser “coalhada”. Para isso se utiliza uma enzima, a renina, que até 1990, era extraída do estômago de bezerros, ou filhotes de ovelha e cabra, que a utilizam no processo de digerir o leite da mãe. Hoje, essa enzima é produzida por bactérias geneticamente modificadas. O que reduziu a um décimo o custo da obtenção da enzima, e tornou desnecessário o abate dos filhotes.
O Impossible Burger é feito com leveduras geneticamente modificadas para expressar uma proteína de soja chamada leghemoglobina, que confere sabor e textura similares aos dacarne vermelha. Pat Brown, CEO da empresa, atribui o sucesso do produto a esta proteína, e ao fato de que é mais fácil criar uma alternativa viável ao consumo de carne do que mudar o comportamento de milhões de pessoas. Reduzir o consumo de carne reduz a criação de animais, o uso de terra, e a emissão de gases de efeito estufa.
A tecnologia usada para fazer as vacinas, o queijo, o remédio e o hambúrguer, é exatamente a mesma utilizada para fazer alimentos geneticamente modificados. Então, por que estes produtos são tão bem aceitos pela sociedade enquanto os alimentos baseados em organismos geneticamente modificados (OGMs) são demonizados?
A alegação de que OGMs são prejudiciais à saúde já foi desmentida inúmeras vezes em estudos sobre populações – humanas e de animais – que os consomem há várias décadas.
O uso da biotecnologia em agricultura, assim como em medicina, pode salvar vidas e contribuir para um planeta mais sustentável. Há algo de pensamento mágico, supersticioso, em imaginar que as técnicas de manipulação genética e os protocolos de segurança em que confiamos para produzir vacinas e hormônios que injetamos em nossos corpos devem, por algum motivo, parar de funcionar quando aplicados às frutas e leguminosas que comemos. Só porque as bactérias transgênicas são pequenas demais e o milho e a soja, visíveis a olho nu?
Alimentos geneticamente modificados para resistir a pragas usam menos pesticidas, e, portanto, economizam o combustível que seria usado no transporte dos agroquímicos e na pulverização. Isso reduz o custo e a pegada de carbono da safra. O mesmo ocorre para modificações que tornem as plantas mais resistentes a mudanças climáticas, mais resistentes a inundações ou secas. Isso para não falar da biofortificacao que pode ajudar a controlar casos de desnutrição em países em desenvolvimento.
Pode ser que nossa ilusão de que o ideal seria viver em uma sociedade com tolerância zero a riscos tecnológicos e onde tudo é “natural” – como se essas coisas fossem possíveis – tome um necessário choque de realidade diante do risco real de uma pandemia. Que esse choque sirva para nos lembrar dos inúmeros benefícios da ciência e da biotecnologia, em tempos mais calmos também.
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência