Em 2020, Brasil vai levar a gripe a sério?

Questão de Fato
23 mar 2020
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vacina gripe

 

A campanha de vacinação contra a gripe, que começou nesta segunda-feira, 23, em todo o país, deve imunizar 67,6 milhões de pessoas até 22 de maio. Os primeiros serão os idosos e profissionais de saúde, e as prefeituras estão fazendo o possível para adotar o sistema “drive thru”, para que os idosos não fiquem aglomerados em filas, em meio à pandemia de COVID-19. 

Na capital paulista, o prefeito Bruno Covas informou que as escolas municipais, que estão fechadas por causa da pandemia, serão usadas como postos de vacinação. A partir do dia 13 de abril, farmácias também passam a vacinar em São Paulo. 

Os postos de vacinação passam a imunizar doentes crônicos, professores e forças de segurança em 16 de abril. No dia 9 de maio, tem início a vacinação das crianças de 6 meses a menores de 6 anos, grávidas, puérperas (até 45 dias após o parto), pessoas de 55 a 59 anos, portadores de deficiências, indígenas, funcionários de presídios, população prisional e os jovens sob medidas socioeducativas.

Por conta da pandemia, este provavelmente será um daqueles raros anos em que o brasileiro vai levar a gripe a sério. Nas clínicas de vacinação particulares, que encomendaram 8 milhões de doses, os estoques praticamente já acabaram. E vai ser o ano em que muita gente vai correr para unidades de saúde em pânico, por causa de um mero resfriado.

“Brasileiro acha que resfriado e gripe são a mesma coisa e que gripe é um resfriado forte. A coisa mais comum que a gente ouve é o sujeito dizer que pegou uma gripezinha, ou seja, um resfriado”, conta Guido Levi, infectologista com décadas de experiência. “Brasileiros acham gripe uma bobagem, embora todo ano umas 800 pessoas morram de gripe por aqui.”

Na coletiva da última quinta-feira, dia 19 de março, o ministro Luis Mandetta foi claríssimo. “Gripe é uma doença séria, que mata. Quem pega gripe, tem de ficar em casa.” O problema no país que acha gripe “uma bobagem” é que raríssimas empresas e chefes permitem que funcionários se ausentem por causa de uma “reles” gripe. O caso do jornalista Luís Antonio Giron, ex-editor de cultura da revista Isto É, é ainda mais ilustrativo porque ocorreu há poucos dias, já com transmissão do coronavírus no Brasil. Gripado, Giron trabalhou em esquema de home office, para não infectar os colegas. A direção da revista, porém, decidiu demiti-lo por esse motivo. A prática, infelizmente, é comum, pouco importa que equipes de uma empresa contraiam a doença, a ordem é ir trabalhar assim mesmo.

Resfriado é outra coisa

“O resfriado é um quadro leve, com coriza, irritação da garganta, tosse e às vezes uma febrícola, uma febre baixa,”, explica a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Duas centenas de vírus diferentes podem causar resfriados, como os rinovírus, os mais comuns, adenovírus, vírus sincicial respiratório, além de quatro dos agora famosos coronavírus: OC43, HKU1, NL63 e 229E. Em média, um adulto pega três resfriados por ano e as crianças, seis.

A gripe é outra história, a gripe derruba e, às vezes, mata. Gripe é aquela coisa com febre alta, dor no corpo, mal-estar, dor de cabeça danada, cansaço e que, de quebra pode vir com garganta inflamada, tosse. 

A gripe mata 650 mil pessoas por ano em todo mundo, e grande parte dessas mortes ocorre nos invernos rigorosos do hemisfério norte. “A recomendação para vacina da gripe é universal, ou seja, todo mundo deveria tomar, independentemente da idade,” diz Levi. Deveria, mas há uma série de motivos que impedem que isso aconteça. 

Nos EUA, por exemplo, nesta temporada, a dose da vacina custava entre US$ 40 e US$ 70 e, como por lá saúde pública não existe, populações mais pobres ou com famílias numerosas acabam financeiramente impedidas de se imunizar.  Por aqui, o Sistema Único de Saúde (SUS) vacina gratuitamente os principais grupos de risco: crianças, mulheres grávidas, idosos, portadores de doenças crônicas, como diabetes e asma e, claro, profissionais da saúde e professores. 

Pessoas com plano de saúde têm, muitas vezes, desconto nas clínicas particulares, mas, como os EUA, para uma gigantesca parcela da população brasileira ela também é inacessível.

“As crianças são mais vulneráveis porque seu sistema imune ainda não é maduro e os idosos porque seu sistema imune está em senescência, isto é, não responde mais tão bem a um agente infeccioso,” diz Ballalai. O grande problema da gripe é que ela pode reduzir a imunidade e abrir caminho para outras infecções como otites, sinusites e, a mais grave, pneumonia.

Mitos gripais  

Uma série de mitos cerca tanto a gripe quanto a vacina. Vitamina C não previne e nem trata gripe: ela previne escorbuto. Nenhum dos remédios que anunciam “contra as gripes e resfriados” são específicos. Eles apenas combinam antitérmico, anti-inflamatório e analgésico, que aliviam os sintomas da gripe e dos resfriados, mas quem combate os vírus mesmo é o sistema imune. 

Outro alerta é contra um número absurdo de compostos “naturais” que apregoam serem capazes de “fortalecer” o sistema imune, mas que só fortalecem mesmo a conta bancária de quem os vende. “Eu nunca pego gripe” é outra coisa se ouve com certa frequência. “Algumas pessoas realmente têm um sistema imune melhor, mas também pode ser uma questão de sorte, de pessoas que não frequentam as mesmas áreas em que os vírus circulam”, afirma Ballalai. 

Vale a pena lembrar que antibióticos atuam contra bactérias e não contra vírus, portanto tomar antibiótico em quadros gripais só serve mesmo para tornar algumas bactérias resistentes. O único antiviral específico contra gripe é o osetalmivir (Tamiflu), que surgiu na pandemia de gripe de 2009, causada por uma nova cepa do H1N1, que, aliás, continua circulando e vem forte este ano.

O maior mito sobre a vacina é que ela causa gripe. “A vacina contra gripe é feita com uma parte inativada do vírus e, portanto, é impossível que ela cause gripe. O que muitas vezes acontece é que a pessoa já estava com gripe incubada quando se imunizou e a vacina leva 15 dias para agir. A outra coisa é que a eficácia varia e, por exemplo, quanto mais idosa a pessoa, menor a eficácia, apenas porque o sistema imune não responde tão bem como nos mais jovens, mas ainda assim protege contra os vírus e complicações”, explica Ballalai.

Como todo mundo já sabe, a vacina não protege contra o SARS-CoV-2, o novo corona vírus, mas além de proteger quem tomar contra influenza A (H1N1) e influenza B, vai facilitar diagnóstico em caso de suspeita de Covid-19, porque fica mais fácil descartar a hipótese de gripe. As duas doenças têm sintomas muito semelhantes, e o protocolo de atendimento das vítimas é praticamente o mesmo.

Pneumonia

O medo do coronavírus fez com que até uma vacina praticamente desconhecida desaparecesse das clínicas particulares, a P13, contra 13 bactérias causadoras de pneumonia – pneumonias bacterianas, e não virais como a causada pelo novo coronavírus. A vacina faz parte do calendário de vacinação dos adultos , mas como apenas pediatras aprendem sobre vacinas na faculdade, raramente médicos de outras especialidades recomendam-na a seus pacientes. “Ela é indicada para quem tem mais de 60 anos, e para pessoas de qualquer idade que tenham doenças respiratórias crônicas, diabetes, pessoas que retiraram o baço, entre outros”, diz Guido Levi. 

A dose é única e há esquemas de vacinação diferentes também para crianças e para pacientes em tratamento de câncer, portadores do HIV, transplantados. Na rede pública, as várias vacinas contra pneumonia deveriam estar disponíveis para esses pacientes e para idosos nos chamados Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIEs), mas estão sempre em falta. São Paulo, uma cidade de 11 milhões de habitantes, tem apenas dois CRIEs.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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