As mudanças climáticas globais estão se refletindo no Pantanal, um dos principais habitats da arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus), prejudicando sua reprodução e aumentando sua vulnerabilidade – ela está classificada como vulnerável na lista de espécies ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Entre as consequências das alterações do clima mundial na região, estão o aumento do número de temporais, com chuvas mais intensas num menor período de tempo, mudanças bruscas de temperatura e irregularidade nas estações ano – com clima típico de inverno durante o verão, e vice-versa.
Segundo a bióloga Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul, uma organização não governamental que criou e administra o Refúgio Ecológico Caiman (REC), o maior centro de reprodução da espécie no Pantanal, com 54 mil hectares, onde há atualmente 98 ninhos cadastrados, o excesso de chuvas torrenciais acaba destruindo ovos e matando filhotes nos ninhos.
De acordo com ela, estudos mostram que a quantidade de chuva na região tem sido a mesma ao longo dos últimos 50 anos. “Mas o que se precipitava ao longo de 10 dias, antigamente, por exemplo, cai em um só dia, hoje”, diz. “Este volume, num intervalo muito curto de tempo, prejudica a reprodução de muitas espécies, principalmente de aves que fazem ninhos em cavidades. Com a chuva lenta, a água escorria e não afetava a sobrevivência de ovos e filhotes. Hoje, com uma grande quantidade em poucas horas, os ninhos acabam inundados, e demoram de dois a três dias para secar. Isso mata.”
Dados da Embrapa Pantanal confirmam a percepção de Neiva. Entre 1925 e 2015, a quantidade de chuva anual tem se mantido mais ou menos a mesma, com média em torno 600 mm anuais, com picos de 800 a 900 mm em alguns anos, e queda para entre 500 e 400 em outros. Mas o número de dias de chuva no verão, por exemplo, diminuiu ao longo do mesmo período de cerca 50 por ano para pouco mais de 30. Em contrapartida, quantidade média de precipitação diária subiu de algo em torno de 15 mm para perto de 20.
Ou seja, segundo a pesquisadora Balbina Soriano, da Embrapa Pantanal, tem chovido mais em menos dias ao longo do tempo. “A quantidade de chuva em média é a mesma, mas o número de dias chuvosos tem diminuído, o que tem aumentado a frequência de temporais”, diz.
O ano de 2019 foi um ponto fora da curva. As chuvas ficaram 27% abaixo da média histórica, atingindo um total de 874 mm. “Além do baixo índice pluviométrico, com distribuição anual irregular, ocorreram longos períodos de estiagem, que associados as altas temperaturas (valores ao longo do dia acima de 40 °C) e aos baixos índices de umidade relativa do ar, favoreceu a ocorrências de grandes incêndios, o que afetou drasticamente o ecossistema da região”, diz.
As variações bruscas de temperatura, que atualmente ocorrem com muito maior frequência, são outro problema que as araras enfrentam, pois prejudicam a incubação de ovos e a sobrevivência de recém-nascidos. “Antes o clima era mais definido e regular”, diz Neiva. “Hoje, não. Podemos ter um verão mais tardio ou um ‘inverno’ em abril ou maio. Agora temos verão nesta época, com secas. Para as araras começarem a pôr ovos, elas precisam de um pouco de chuva. E em alguns anos, isso não tem ocorrido.”
Usando dados da temperatura do ar registrados durante 36 anos (1984-2019), na estação meteorológica da fazenda Nhumirim, localizada no Pantanal da Nhecolândia (MS), o pesquisador Ivan Bergier, da Embrapa Pantanal, diz quecomparando-se as médias registradas no perídio analisado à média climatológica de 25,1 °C (INMET, 2018), houve 23 anos com temperatuira média anual maior ou igual à climatológica e 13 anos em que ela foi inferior. “Os últimos 11 anos (2009-2019) apresentaram temperaturas médias anuais acima da média climatológica, com atenção para o ano de 2019 com desvio +1,7 °C, o maior da série analisada”, diz.
Todas essas alterações do clima afetam a disponibilidade de alimentos. As variações sazonais na produção de frutos também mudaram. Em determinados momentos, falta comida para outras espécies animais, que então aumentam a predação de ovos e filhotes de araras. Antigamente, era muito rara a predação de filhotes com mais de 45 dias, ou quase prontos para voar. Nos últimos anos, isso tem mudado, e está aumentando a predação de juvenis (com mais de 100 dias de idade, pesando em torno de 1,3 kg). Neste ano, houve até a morte, por predadores, de duas fêmeas adultas, que estavam chocando.
A mudança climática também atinge a saúde das araras, diminuindo sua resistência a doenças. Desde 2015, foram registradas várias mortes de jovens adultos no Pantanal, sendo a causa principal o herpesvírus.
Como se não bastassem todos esses problemas, em setembro do ano passado as araras da refúgio Caiman sofreram com as queimadas, que tomaram conta do Pantanal. Na época, havia 30 ninhos sendo preparados por elas, ou em disputa com outras aves, e 14 vazios. “Um terço deles foi atingido pelo fogo em diferentes graus de severidade, dos quais apenas dois foram perdidos totalmente”, conta Neiva. “No total, 16 filhotes e 23 ovos foram destruídos pelos incêndios. Mas não foi só isso. As queimadas destruíram vários hectares da palmeira acuri, principal fonte de frutos para as araras.”
Ela começou a trabalhar no refúgio Caiman em 1995. Naquele ano, Neiva ninhos e, no ano seguinte, mais dois. “Em 1997 começamos a instalar ninhos artificiais”, lembra. “Foram 29, que, com 41 naturais, totalizaram 70. Em 1998, tivemos um total de 60 naturais e 60 artificiais. O número máximo de ninhos que tivemos na Caiman foi 138, em 2013, sendo 68 do primeiro tipo e 70, do segundo.”
Depois disso, o número começou a diminuir, e hoje há 98, sendo 51 naturais e 47 artificiais. “Vale ressaltar que os primeiros podem durar mais de 20 anos (temos alguns monitorados há 24 anos), mas os segundos não passam de 1 a 3, 4 anos, dependendo do uso das araras, que geralmente beliscam bastante e por isso, precisamos ficar sempre trocando”, explica Neiva. “Todo ano substituímos entre 15 e 20 ninhos. Desde o começo até agora, já nasceram cerca de 400 filhotes de arara-azul no refúgio Caiman.”
O Instituto Arara Azul foi criado em 2003, para dar suporte jurídico e administrativo ao Projeto Arara Azul. “Sua principal finalidade é a promoção da conservação ambiental”, diz a diretora executiva, Eliza Mense.
Atualmente, o Instituto vêm desenvolvendo vários projetos, além do seu principal, o Arara Azul, como Aves Urbanas - Araras na Cidade; Monitoramento da Ocupação de Cavidades no Pantanal; de avaliação da perda de habitat na região; Promovendo, para construir casa e caixas para araras-vermelhas em Bonito (MS); Monitoramento de ninhos naturais e artificiais; Biologia reprodutiva da Maracanã; e Psitacídeos, em áreas verdes em Campo Grande. “Além desses, desenvolvemos outros de caráter associado e em parceria como, por exemplo, o projeto de genética e biologia molecular das grandes araras, com a Universidade de São Paulo (USP), e o Quiropterofauna (morcegos) associada aos ninhos de arara azul no Pantanal”, acrescenta Eliza.
Evanildo da Silveira é jornalista