Em 2015, Shinji Kusachi, um professor de 47 anos da cidade de Okayama, estava praticando high diving(mergulho de plataforma acima dos 20 metros) na piscina local, quando um salto deu errado. “Eu bati a cabeça no fundo da piscina,” conta Kusachi, lembrando o acidente que o deixou praticamente paralisado. “Disseram que eu não poderia mais usar meus braços e pernas. Fiquei desesperado.”
Mas ele logo se inscreveu no teste clínico de uma nova terapia chamada Stemirac. Pesquisadores da Sapporo Medical University retiraram fluido da sua medula óssea, isolaram um tipo de célula-tronco, multiplicaram-na no laboratório e reintroduziram as células em sua corrente sanguínea. No dia seguinte, Kusacho melhorou dramaticamente. “Foi uma surpresa para nós”, diz Toshihiko Yamashita, cirurgião ortopédico da universidade. “De tarde, ele conseguia se levantar da cama e sentar, e à noitinha, circulava pelo corredor numa cadeira de rodas.”
As melhoras continuaram. Sete meses depois, Kusachi deixou o hospital andando por conta própria. Hoje, embora ainda tenha problemas para controlar mãos e pés, ele cozinha, dirige e ensina matemática online, graças, acredita, ao Stemirac.
O Ministério da Saúde do Japão aprovou o Stemirac em dezembro e a terapia agora está disponível para o público japonês, com a maior parte dos custos, de US$ 140 mil, cobertos pelo Seguro Nacional de Saúde. Indiscutivelmente, é o mais ambicioso tratamento com células-tronco do mundo, e deveria ser motivo de comemoração, um breakthrough longamente aguardado na medicina regenerativa, usando modernas ferramentas biológicas para restaurar o organismo, o prenúncio de mais terapias revolucionárias.
No entanto, a liberação da terapia foi recebida com um acalorado debate. Por um lado, vários especialistas criticaram a liberação do Stemirac em termos surpreendentemente diretos, afirmado que não há evidências suficientes para mostrar que a terapia é eficiente e sequer que seja segura. Todo o processo de aprovação é aclerado e único: depois de pequenos testes clínicos, que apenas sugerem eficácia e segurança, agências reguladoras podem aprovar terapias com células-tronco em base condicionais, isto é, o tratamento é permitido por sete anos, durante os quais a terapia é avaliada, coletam-se evidências e, só então, vem a aprovação completa.
Críticos também dizem que a abordagem japonesa do tema foi flexível demais, permitindo que pacientes se submetam a terapias experimentais que podem ser ineficazes ou perigosas, com alto custo tanto para os pacientes como para seguradoras. “Esta, essencialmente, é uma terapia sem eficácia comprovada”, afirma Arnold Kriegstein, pesquisador de célula-tronco da Universidade da Califórnia, em São Francisco. “Fico muito espantado de ver isso acontecendo no Japão”, diz Doug Sipp, pesquisador do RIKEN Center for Biosystems Dynamics Research em Kobe, que argumentou na revista Science, de 16 de agosto, que esse novo sistema de aprovação japonês é resultado da competição entre países para liberação rápida de novas terapias, aumentando o risco de falhas e erros.
Defensores do novo sistema, especialmente os que criticam a regulamentação tradicional de medicamentos, afirmam que ele aponta para o futuro da inovação médica, não apenas no Japão, mas também nos Estados Unidos e outros países tecnologicamente avançados.
De certa forma, o debate gira em torno de uma questão empírica: qual o meio mais rápido e mais seguro de identificar os mais seguros e mais eficazes tratamentos e medicamentos? Os críticos do novo posicionamento japonês, porém, afirmam que não há respostas simples para essas questões e que sistemas de saúde, por definição, precisam pesar com muito cuidado os conflitos entre inovação e segurança, bem como a quem cabe decidir qual dos dois é o mais importante.
O sistema de aprovação japonês tem certo parentesco com o pensamento liberal americano, como o do Nobel de Economia Milton Friedman, que resumiu seu pensamento a respeito desta forma: “A Food and Drug Administration (FDA) já causou danos enormes à saúde do público da América, ao aumentar barbaramente os custos da pesquisa farmacêutica, reduzindo assim o fornecimento de novas drogas eficientes e ao retardar a aprovação das drogas que sobrevivem ao seu tortuoso processo de aprovação.” Na mesma linha, Daniel Klein, economista da George Mason University, afirmou no ano 2000 que a FDA errou ao impedir que as empresas anunciassem aspirina como prevenção ao infarto: “A FDA com certeza matou dezenas, e possivelmente centenas, de milhares de americanos só com essa proibição”.
Uma década depois, Bartley Madden, ouro defensor do livre mercado, apresentou proposta para acelerar a aprovação de novas drogas no livro “Free to Choose Medicine”, defendendo aprovações rápidas a partir de autorizações condicionais, baseadas em pequenos testes clínicos com indícios de segurança e eficácia. Masaru Uchiyama, presidente do grupo de advocacy Japanese for Tax Reform, de direita, traduziu o livro para o japonês e enviou 800 exemplares para funcionários do governo, profissionais da saúde, pesquisadores e grupos de pacientes. Segundo Sipp, logo depois a equipe da agência reguladora de medicamentos do Japão passou a apresentar a proposta em palestras.
“Free to Choose Medicine” foi muito bem recebido no Japão: apesar de ser a terceira economia do planeta, o Japão vive uma estagnação econômica há 30 anos. E, depois de ditar o ritmo tecnológico do planeta nos anos 1980, o Japão ficou para trás em áreas como como laptops e smartphones.
Uma oportunidade surgiu em 2007, quando o pesquisador Shinya Yamanaka, da Kyoto University, mostrou como reprogramar células adultas da pele de camundongos e transformá-las em qualquer tipo de célula, o que lhe valeu o Prêmio Nobel. “Células-tronco eram novidade e o governo ficou muito animado com as iPS (induced pluripotent stem-cells). Era a chance de o Japão ser o número 1 de novo,” lembra a socióloga médica Kaori Muto, também da Kyoto University
Em 2012, quando Shinzo Abe se tornou primeiro-ministro, o governou fez da pesquisa com células-tronco prioridade, com a promessa de destinar US$ 1 bilhão para os estudos. As terapias, claro, serviriam para o mundo inteiro, mas especialmente para o Japão, com sua população envelhecida. O bem-sucedido negócio da biotecnologia ajudaria a alavancar a economia e o triunfo científico restauraria a reputação e a confiança do país como polo de tecnologia.
Mas desenvolver terapias com células-tronco seria demorado e caro e, então, em 2014, o governo aprovou um sistema acelerado de aprovação da “medicina regenerativa”, nos moldes propostos em “Free to Choose Medicine”. A abordagem funcionou, pelo menos no que se refere às empresas farmacêuticas e de biotech, que foram atraídas pela promessa de rápida liberação de seus produtos para o mercado.
“As empresas descobriram um meio de conseguir aprovação condicional que é bem mais fácil do que ir ao mercado e pedir mais US$ 50 milhões para testes clínicos”, diz Colin Lee Novick, consultor de medicina regenerativa da CJ Partners em Tóquio. “É uma proposta extremamente atraente para uma empresa pequena.” Firmas estrangeiras como Athersys, TiGenix e Pluristem também estão ansiosas para lançar seus produtos no Japão, por meio de parceria com biotechs locais. Por enquanto, apenas três terapias receberam aprovação, mas o governo japonês pretende ampliar a lista. Segundo estimativas do Ministério do Desenvolvimento japonês, a medicina regenerativa será um mercado de US$ 10 bilhões em 2030.
As críticas, porém, são muitas. Em janeiro, a revista Nature mostrou as preocupações profundas de 10 especialistas da área, criticado vários aspectos, entre eles o fato de os testes terem sio feitos em apenas 13 pacientes, a inexistência de estudos duplo-cego (todos fizeram a terapia, ninguém recebeu placebo), a explicação pouco convincente do mecanismo de ação e o fato e os resultados terem sido publicados apenas na mídia leiga, e não em revistas especializadas.
“Essa aprovação é um retrocesso em relação a tudo que aprendemos nos últimos 70 anos sobe como conduzir um teste clínico válido”, afirmou James Guest, neurocirurgião da Universidade de Miami, em entrevista à Nature. O neurologista da Universidade da Califórnia Bruce Dobkin disse que, pelos relatos da mídia, é possível que o tratamento nem sequer funcione. De acordo com ele, testes anteriores com terapias para danos na medula espinhal, randomizados e com grupos de controle, deram os mesmíssimos resultados que o Stemirac, ou seja, pacientes que receberam Stemirac se saíram tão bem quanto os que receberam placebo. Pacientes como Kurachi e outros no teste, que sofreram acidentes recentes, geralmente apresentam melhoras significativas nos meses seguintes naturalmente, justamente o período de duração do teste japonês.
Sipp diz que esse tipo de problema é facilmente evitável com uso e placebo. “Por que não fizeram? Porque não precisam fazer, para obter aprovação condicional.”
O sistema japonês também carece de transparência, ouro alvo de críticas. “O maior problema do grupo da Universidade de Sapporo é o fato de não terem publicado dados sobreo tratamento”, afirma Norio Nakatsuji, pesquisador de células-tronco da Kyoto University. “A terapia foi usada em um só hospital, por um único grupo, e só este hospital vai usar o tratamento. Por isso, a falta de transparência e a impossibilidade de análise e discussão sobre os dados médicos é preocupante.”
Os pesquisadores de Sapporo não publicaram sua pesquisa a pedido do Ministério da Saúde japonês, que alegou que a publicação constituiria propaganda da terapia. Porém, tanto pesquisadores da Stemirac como pacientes participaram de um documentário da NHK, a TV pública japonesa, onde classificaram a terapia como “fantástica revolução médica”. O documentário termina com um locutor dizendo: “O que estava perdido foi recuperado. A era da medicina regenerativa chegou.”
Jun Takahashi, também pesquisador de células-tronco da Kyoto University, tuitou que “o tratamento dado ao conteúdo científico parece complacente e excessivamente otimista”, antes de criticar várias partes do estudo da Stemirac. Editorial da Nature, em janeiro, classificou de kafkiana a promoção da terapia sem que dados tivessem sido publicados.
Diante da falta de evidências sólidas nas pesquisas iniciais, o sucesso da terapia vai depender dos resultados de estudos durante a vigência da aprovação condicional, necessários para a aprovação definitiva, o que também esconde um problema. “Estudos de drogas que já chegaram ao mercado são um inferno”, diz Novick. Uma investigação da Undark, do ano passado, mostrou que a indústria raramente realiza os estudos de follow-up que se compromete a fazer, “enquanto o FDA parece não prestar a menor atenção nisso”. O governo japonês estabeleceu alguns princípios para esses trabalhos, mas não exige estudos randomizados de larga escala.
Sem eles, é difícil saber se um tratamento realmente funciona. Foi uma boa quantidade desses estudos que levou a FDA a mudar sua oposição em relação à aspirina para infartos e, ao contrário do que disse Klein no ano 2000, essa demora de décadas não matou milhares de americanos.
Mas, em 2004, a Merck teve de tirar do mercado o Vioxx, quando um estudo randomizado com 2.500 pessoas mostrou que o medicamento praticamente dobrava o risco de infartos e derrames. Uma estimativa da própria FDA diz que 55 mil pessoas podem ter morrido por causa do anti-inflamatório. Se terapias como a Stemirac não passarem por estudos amplos e controlados, o público nunca vai saber se são eficazes ou se oferecem riscos e efeitos colaterais.
O Japão não é o único país a afrouxar a regulamentação de medicamentos. A FDA vem sendo bombardeada, há décadas, para fazer o mesmo, com um crescendo nos anos 80, quando grupos de pacientes de aids estavam desesperados por qualquer coisa que detivesse a progressão da doença. O resultado foi o Parallel Track, que permitiu que pacientes de aids usassem drogas experimentais, e o Expanded Access, também chamado de uso compassivo, para doenças terminais.
De lá para cá, a FDA criou uma série de alternativas para acelerar a aprovação de novas drogas: Fast Track, Priority Review, Breakthrough Therapy e Accelerated Approval, semelhante à aprovação condicional dos japoneses. O Congresso também levantou a bandeira da desregulamentação e, em 2016, aprovou o 21st Century Cures Act, que cria uma nova categoria para terapias regenerativas promissoras, e pode acelerar sua comercialização. Ano passado, o presidente Donald Trump assinou o Right to Try Act, que, como o uso compassivo, permite que pacientes com doenças difíceis de tratar usem drogas experimentais.
Essas mudanças são parte de um cenário mais amplo de distanciamento da regulação, sendo que a FDA já afrouxou dramaticamente as normas para suplementos alimentares, propaganda de medicamentos e clínicas de células-tronco, que se espalharam pelos Estados Unidos quase que sem nenhuma regulamentação. Essas terapias têm pouquíssimo embasamento científico e, segundo a maioria dos especialistas, são ineficazes.
“O que me parte o coração é que gente trabalhadora faz crowdfunding, pede dinheiro para parentes, amigos e vizinhos para ir a um shopping onde essas clínicas, que fazem anúncios em jornais, prometem curar osteoartrite, enxaqueca e até autismo e paralisia cerebral”, disse John Rasko, pesquisador de células-tronco da Universidade de Sydney, ao site Medscape em fevereiro. “Elas cobram US$ 5 mil, US$ 10 mil, US$ 20 mil por infusão.” E, ao captar esses recursos do sistema de saúde, essas terapias drenam dinheiro que poderia ir para tratamentos realmente eficazes. “Se você gasta dinheiro com terapias fúteis, ineficazes e não comprovadas, você está deixando de fazer tratamentos que poderiam mesmo melhorar sua vida”, disse Rasko.
A desregulamentação também está mudando a relação das pessoas com a medicina. Os pacientes são agora consumidores de planos de saúde, e têm mais poder sobre decisões médicas do que em qualquer outro período da era moderna, com liberdade para aderir a tratamentos inúteis, e uma voz poderosa para exigi-los.
“Recebi uma série de e-mails recentemente que mostram esse empoderamento. Por que preciso ir para o México? Por que não posso fazer o tratamento aqui nos Estados Unidos?” contou Kriegstein. “As pessoas acham que têm direito a essas terapias, mesmo antes de sabermos se são eficazes. Eu acredito que esse tipo de atitude pode alterar políticas de saúde, e é uma tendência assustadora.”
A liberdade de escolher terapias vem acompanhada da liberdade dos provedores de serviços de saúde para vender substâncias e drogas que “engendram falas esperanças em curas milagrosas e leva a um cinismo em relação ao valor e peso da pesquisa,” escreveram Sipp, Rasko e outro colega na Nature, em 2017.
Levado em conta essa tendência pró-escolhas individuais, o movimento pela desregulamentação não vai desaparecer tão cedo. Yoshihide Esaki, integrante do Ministério do Desenvolvimento e um dos responsáveis pelo novo sistema de aprovação, que estendê-lo a todos os tipos de medicamentos. “Desta vez, nosso foco foi a medicina regenerativa, mas esse foi apenas um primeiro passo rumo a uma mudança na área médica,” declarou, em entrevista de 2015. “Nosso próximo passo é mudar todo o sistema de testes clínicos.”
Defensores do livre mercado estão usando o exemplo do Japão para tentar abrir ainda mais o sistema americano. “Os EUA podem continuar passando leis ocasionais que não enfrentem muita oposição política e aprovar pequenas melhorias. Se isso acontecer, podemos nos preparar para ver a liderança mundial na pesquisa biofarmacêutica passar para o Japão”, escreveram Madden, autor de “Free to Choose Medicine” e o Nobel de Economia Vernon Smith, numa edição da Forbes de 2015.
A defesa do livre mercado vem ganhando força. Num comunicado de março, Edward Hudgins, do Heartland Institute, conclamou a FDA a adotar o “Free to Choose Medicine”, que na prática ampliaria o Parallel Tracke daria acesso a drogas experimentais a pacientes com “doenças debilitantes como Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica, Parkinson e vários tipos de câncer”. Logo depois, Ted Cruz e outros três senadores escreveram para a FDA pedindo a mesma coisa.
É difícil prever até onde irão essas mudanças, tanto no Japão como nos EUA, mas é óbvio que a balança está pendendo menos para o ceticismo e foco no paciente, para um exagero calculado na promoção de terapias e medicamentos e foco no consumidor. “Se os EUA afrouxarem sua regulamentação para aprovação de novos medicamentos, o Japão vai desregulamentar seu sistema mais ainda,” disse Sipp. “Uma corrida dessas pode ter resultados graves e muito ruins. Podemos voltar aos tempos em a maioria dos remédios não servia para nada.”
Amos Zeeberg é jornalista freelance em Phnom Penh, Camboja, e colaborador da New Yorker, The Atlantic e Discover. Esta reportagem foi financiada pela Abe Fellowship for Journalists, que é uma bolsa do Social Science Research Council, e pelo Japan Foundation Center for Global Partnership. Esta reportagem foi publicada originalmente na revista UNDARK