Em 23 de novembro, celebra-se o Dia de Fibonacci, uma homenagem ao matemático italiano Leonardo Fibonacci (1170-1250) que, ao redor do ano 1200, ao investigar a reprodução dos coelhos, acabou desenvolvendo a famosa sequência de números que leva seu nome. Sequência esta que, como veremos, acabou de mãos dadas com a constante matemática “áurea”, conhecida desde a Antiguidade e associada à busca de beleza e harmonia.
As pirâmides do Egito, o Partenon dos gregos, o corpo humano, os furacões, as plantas, as galáxias e a Mona Lisa. O que essas coisas têm em comum? Há quem diga existir um mesmo padrão universal “oculto” em todas elas – permeando, portanto, diferentes aspectos da natureza e dos artefatos construídos por diferentes civilizações – e que seria uma característica do que é belo e agradável. O tal padrão corresponde, matematicamente, a um número calculado a partir de operações específicas envolvendo divisão, e que costuma ser chamado de número (ou proporção, ou divisão, ou razão) de ouro (ou áureo/a, ou divino/a).
Que número é esse?
Imagine que você tenha um taco de sinuca nas mãos; e que, por qualquer razão particular sua, você deseje cortá-lo em dois pedaços de tamanhos diferentes, mas de uma tal forma que o tamanho do taco inteiro, dividido pelo comprimento do pedaço maior, acabe dando o mesmo resultado que a divisão do tamanho do pedaço maior pelo do menor. Se chamarmos o pedaço maior de “ta” e o menor de “co”, o que queremos é que (ta+co)/ta = ta/co. Esse problema – encontrar o ponto de corte que satisfaz essa relação – foi proposto pelo matemático grego Euclides, o “pai da geometria”, vários séculos antes de Fibonacci nascer.
A solução envolve uma equação de segundo grau, e aponta que o corte deve ser feito num ponto que garanta que a proporção entre “ta” e “co” corresponda a 1,61803... Esse número é uma dízima não periódica (isto é: com infinitas casas após a vírgula, sem uma periodicidade que possa ser identificada). Pronto. É o tal número de ouro, a razão divina. Caso você não saiba, este não é a única dízima não periódica famosa na Matemática: o número de Euler (2,71828...) e o Pi (3,14159...) são outros exemplos comuns.
A Sequência de Fibonacci
No ano 2000, a cúpula do prédio que hoje abriga o Museu Nacional do Cinema da Itália, em Turim, foi o local escolhido para receber uma instalação artística idealizada por Mario Merz. Trata-se de uma sequência de números feitos com letreiros luminosos que chamam atenção na cidade à noite: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, ... A obra faz referência a uma velha conhecida dos matemáticos, a Sequência de Fibonacci. Ela é construída colocando-se, inicialmente, dois números 1 e, depois, cada número novo a ser adicionado ao conjunto será aquele proveniente do resultado da soma dos dois imediatamente anteriores. Veja: o terceiro número da série é 2, que resulta de 1 + 1, os iniciais; o próximo é 3, que vem de 1 + 2; e assim sucessivamente. Analisando-se apenas os quatro primeiros componentes (1, 1, 2, 3), encontramos, em sequência, os algarismos que formam a data 11/23, que, na convenção de escrita norte-americana, apresenta primeiro o mês e, depois, o dia. Daí vem a escolha para celebrar Fibonacci.
Algo que sempre achei curioso, desde quando me debrucei sobre o assunto de séries e sequências na faculdade, é que as coisas podem ficar grandes muito rapidamente, ao contrário do que a intuição pode indicar. Essa sequência é um bom exemplo: mostrei seus oito primeiros componentes, e são todos relativamente pequenos; mas o elemento da 50ª posição já ultrapassa 12 bilhões; e o centésimo atinge a casa dos quintilhões (354.224.848.179.261.915.075). Agora, vejamos o que acontece quando se passa a realizar a divisão de um dos membros do conjunto pelo seu antecessor:
Segundo pelo primeiro: 1 / 1 = 1
Terceiro pelo segundo: 2 / 1 = 2
Quarto pelo terceiro: 3 / 2 = 1,5
Quinto pelo quarto: 5 / 3 = 1,666...
Sexto pelo quinto: 8 / 5 = 1,6
Sétimo pelo sexto: 13 / 8 = 1,625
Oitavo pelo sétimo: 21 / 13 = 1,615...
Perceba que quanto mais se avança no processo, mais próximo do número de ouro se torna o resultado. Isso explica o motivo pelo qual essa sequência numérica costuma estar sempre de mãos dadas com a razão áurea, em todas as discussões envolvendo a suposta beleza universal da natureza.
Minerando o ouro da beleza
A partir do número áureo, que, como vimos, se relaciona com uma divisão específica de um segmento de reta (como o taco de sinuca), podem ser construídas outras figuras geométricas “áureas”, como o retângulo áureo e a espiral áurea, que costumam aparecer sobrepostas a uma série de imagens de obras em que essa relação matemática teria sido usada para gerar uma estética bela e/ou “harmônica”. Veja exemplos em uma das pirâmides do Egito, no Partenon (Grécia) e no Taj Mahal (Índia).
Para além da arquitetura, inúmeras pinturas são apontadas como contendo exemplos da proporção áurea, propositadamente incluídos pelos artistas. A Mona Lisa é um caso. Embora Leonardo Da Vinci tenha tido uma relação de amizade com Luca Pacioli, autor de um tratado em vários volumes sobre o tal número de ouro, o fato é que não há nenhum registro formal que confirme essa inclusão deliberada na referida obra.
Fenômenos naturais, como padrões em conchas, sementes, flores e furacões, também deixam transparecer características que parecem seguir os números de Fibonacci, ou as figuras geométricas áureas. E mesmo aplicações tecnológicas podem ser feitas com a matemática da razão divina: na engenharia, por exemplo, ela pode ser usada para projetar estruturas menos suscetíveis a entrar em ressonância com outros sistemas oscilantes e, assim, evitar que se tornem indesejavelmente instáveis e inseguras.
Nem tudo que reluz é ouro
O estudo de sistemas naturais pode mesmo acabar levando à conclusão de que, de fato, os números de Fibonacci são favorecidos em processos evolutivos, ou de crescimento, ou de comportamento desses sistemas. Isso pode estar por trás da identificação da razão áurea em plantas e em espirais de conchas, por exemplo. Mas outros sistemas podem apresentar proporções áureas apenas por coincidência, ou apenas aparentar tê-las – a correspondência, no caso, não passaria de mera ilusão. Explicações desse tipo podem ser úteis para eventuais formatos “áureos” projetados em galáxias e em furacões, por exemplo.
Já a alegação, muito popular, de que a proporção áurea é a “mais agradável” ou “harmônica” para o olho humano, e que por isso foi deliberadamente usada por artistas, arquitetos, escultores etc. das mais diferentes culturas, ao longo da história, para a concepção de suas obras, não se sustenta, e por pelo menos dois motivos.
O primeiro é que, nesses sistemas, em geral, existem inúmeras características que podem ser medidas para, depois, sabendo-se de antemão o resultado que se deseja obter (o número áureo), começar, pacientemente, a testar divisões aos pares até que, (voilá) uma hora você encontre o resultado desejado: se ele não aparece na divisão da altura pela largura, talvez esteja na largura pela profundidade, ou no caso de uma estátua ou pintura, na distância entre os olhos pelo comprimento do nariz. E assim por diante.
Depois de “descoberto” o par de medidas que produz a razão divina, simplesmente se ignoram todos os outros cálculos possíveis que levavam a resultados diferentes. Essa é uma estratégia bem comum no contexto das pseudociências, chamada de “cherry picking” (que, em português, pode se traduzir livremente como “catação”, ou “seleção de cerejas”). Por meio dela, Carlos Orsi já mostrou como o número pi acaba, de vez em quando, enrolado no meio de afirmações extraordinárias (e cientificamente absurdas) sobre as pirâmides; e eu mesmo concluí (contém ironia) que os engenheiros que projetaram meu apartamento também devem ter sido inspirados pela “beleza” da proporção áurea: com uma trena na mão e 15 minutos destinados à missão, descobri que uma das paredes da minha sala mede 430cm por 270cm; e outra parede no corredor tem 270cm por 165cm. Faça as contas e veja que a razão entre esses números é, com uma boa aproximação, 1,6.
E o segundo motivo é que, quando se trata de investigar a “beleza” de determinada estrutura, ou de alguma pessoa, a partir do que pode concluir um observador também humano, o terreno se torna bastante pantanoso, e as coisas se complicam muito rapidamente. Uma revisão de alguns estudos mostra que até retângulos já foram colocados diante das pessoas para pesquisar se aqueles com proporção áurea entre os lados eram mesmo considerados mais agradáveis. Embora um resultado positivo tenha sido encontrado, estudos posteriores apontaram problemas que o colocaram em xeque.
E em relação à percepção de beleza/atratividade de seres humanos, fatores pesquisados envolveram o grau de simetria do rosto em avaliação, ou o quanto ele se assemelha (ou difere) de um “rosto com características médias” de determinado grupo de voluntários. Também, relações culturais, sociais, de gênero, idade e religião são determinantes para gerar diferentes resultados sobre o que é visto como belo (ou não).
Portanto, não se está defendendo, aqui, que o número áureo, ou a Sequência de Fibonacci, não se manifesta em eventos, objetos ou fenômenos na natureza.
Afirmar que ele está lá, em determinados contextos, como vimos, é uma coisa. E muitos desses exemplos são demonstrações evidentes da beleza da matemática e da sua utilidade para interagirmos com o mundo em que vivemos. Agora, outra coisa completamente diferente é apresentar a razão áurea como sendo a matemática universal da beleza: reduzir a um número a capacidade de predizer o que é belo e o que não é, como uma espécie de mensagem oculta a ser decifrada em um universo de quase infinitas possibilidades, é tão (indevidamente) científico quanto afirmar que formas vistas nas nuvens são oráculos de guerra.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)