Voltando de merecidas férias, compartilharei um “causo” engraçado que ocorreu na minha viagem para Caraíva e motivou este artigo.
Como ficaríamos pouco tempo na cidade, minha noiva montou o itinerário que deveríamos cumprir para aproveitar a visita ao máximo. Dentre os passeios escolhidos, fomos à praia do Satu, um local belíssimo em que tive meu primeiro contato com o Sol do Nordeste. Fizemos um piquenique, entramos no mar e caminhamos pela areia.
É claro que, após entrar no mar, esquecemos que era necessário repor o protetor solar. Moral da história: eu, que sou um palmito ambulante, fiquei com o aspecto de um pimentão seco e machucado.
Contando essa história para um conhecido, ouvi dele que fiz “bem” em não usar o protetor, já que a maioria deles contém “substâncias tóxicas” que agem como “disruptores endócrinos”. Subindo ainda mais na escala do absurdo, o mesmo interlocutor sugeriu que, para evitar queimaduras solares, eu me submetesse a uma exposição diária de 60 minutos para “fortalecer” a pele. Como não queria começar uma discussão, assenti com a cabeça e agradeci pelas dicas.
Felizmente, a RQC já se debruçou sobre esse tema por meio do artigo “Protetor solar: não é tão simples assim”, de autoria de Paulo Tonolli e Mauricio Baptista. Recomendo que todos o leiam na íntegra.
Por conta disso, considere o que se segue como um pósfácio,que tem como objetivo principal desmantelar algumas dúvidas e fake news espalhadas na Internet.
O que é o protetor solar?
Segundo a RDC Nº 629, de 10 de março de 2022 da Anvisa, protetor solar é “qualquer preparação cosmética destinada a entrar em contato com a pele e lábios, com a finalidade exclusiva ou principal de protegê-la contra a radiação UVB e UVA, absorvendo, dispersando ou refletindo a radiação”. Essa mesma resolução salienta que o rótulo do produto deve indicar o fator de proteção solar (FPS), que representa o quanto de radiação solar é necessário para causar vermelhidão na pele de uma pessoa com o protetor, na comparação com uma pessoa desprotegida.
Atualmente, é possível encontrar dois tipos de protetores solares: o filtro físico, que contém – geralmente – nanopartículas de dióxido de titânio e óxido de zinco e opera como uma barreira “física” contra a radiação solar; e outro conhecido como filtro químico, formado por moléculas orgânicas que “absorvem” os raios UV, transformando-os em ondas de menor energia.
Mas não basta usar o filtro, é preciso fazê-lo de forma correta. No artigo ‘Understanding the Perceived Relationship between Sun Exposure and Melanoma in Atlantic Canada: A Consensual Qualitative Study Highlightin a “Sunscreen Paradox”’, os autores verificaram que indivíduos que apresentavam níveis mais elevados de exposição solar também tendiam a usar mais filtro. No entanto, não o faziam em quantidade adequada ou adotavam outras medidas de proteção solar de modo insuficiente ou ineficiente.
Por causa disso, compartilharei algumas dicas disponibilizadas no “Guia de Fotoproteção da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD)” – recomendo que o leiam na íntegra.
Em resumo: além do filtro solar, é fundamental o uso de barreiras físicas, como chapéus, óculos de sol, roupas com tecido de proteção UV e, tão importante quanto, ficar à sombra durante os horários mais quentes, das 9h às 15h.
Bobagens online
Após assistir quase uma hora de conteúdo a respeito dos PERIGOS DO PROTETOR SOLAR – grifo meu – no YouTube, pude observar que a maioria dos proponentes dessa lógica utiliza estratégias batidas do charlatanismo, como apelo ao medo, conspirações mirabolantes envolvendo a grande e malévola "Big Pharma" e, como não podia faltar, certa megalomania de alecrim-dourado – "todos estão errados, menos eu".
Curiosamente, o primeiro vídeo a que assisti foi através de um corte do podcast Inteligência Ltda, que, por ironia do destino, tratou-se de um especial sobre saúde. Estavam presentes um biomédico, uma apresentadora e personal trainer e um cientista alimentar. Apesar de o vídeo ser curto, menos de sete minutos, posso afirmar que a fala do cientista alimentar abre meu diário das maiores bizarrices que ouvi em 2024.
Destilando as afirmações – errôneas, falsas, distorcidas ou sem base em evidências – feitas, temos: filtro solar não protege contra câncer de pele; filtro solar atrapalha a produção de vitamina D; uso de filtro solar está associado a aumento nos casos de câncer de pele; falta de iodo causa câncer de pele; cápsulas de óleo de coco ingeridas funcionam melhor do que filtro solar.
As alegações envolvendo câncer – de que o filtro não protege contra a doença, ou que ajuda a causá-la – são respondidas de forma sucinta no guia da SBD:
“PROTETOR SOLAR CAUSA CÂNCER? A resposta é não para essa hipótese, que, infelizmente, circula pela internet. É importante ressaltar que o protetor é um produto seguro e recomendado para reduzir os efeitos da radiação solar sobre a pele. As marcas são testadas antes de serem colocadas à venda, ou seja, são seguras e eficientes”. (grifo nosso).
Vamos, a seguir, analisar as demais.
Vitamina D
Passeron, T. et al. (2019) produziram artigo de revisão intitulado “Sunscreen photoprotection and vitamin D status” para verificar as evidências disponíveis sobre a influência dos filtros solares sobre a vitamina D.
O painel contou com especialistas de diversas áreas, incluindo epidemiologistas, endocrinologistas e dermatologistas. Os autores realizaram uma busca abrangente da literatura científica sobre o assunto, examinando artigos publicados de janeiro de 1996 até maio de 2017.
Enfim, será que a fotoproteção promovida pelos filtros solares influencia no nível de vitamina D presente no organismo? Os raios UVB são a principal fonte de síntese de vitamina D. Como o filtro solar “protege” contra esses raios, ele poderia impactar a produção da vitamina pelo corpo (o organismo humano produz parte da vitamina D que utiliza, e obtém outra parte pela alimentação).
A primeira sentença da conclusão dos autores não poderia ser mais clara: “O uso de protetor solar para fotoproteção diária e recreativa não compromete a síntese de vitamina D, mesmo quando aplicado em condições ideais”.
E, mais adiante:
“As doses necessárias de UVB são baixas, de modo que o uso típico de protetor solar não leva, na prática, à insuficiência de vitamina D em pessoas saudáveis. Na verdade, até mesmo uma utilização ideal do protetor solar permite uma boa síntese de vitamina D”.
Como uma informação adicional e importante, destaco que o levantamento recebeu financiamento da companhia L’Oreal, e que a maioria dos autores tem conflito de interesse, seja por serem funcionários da empresa ou por receberem gratificações e honorários por palestras.
Disruptor endócrino?
Possivelmente, esse é o tema que mais assusta as pessoas, visto que ninguém em sã consciência gostaria de utilizar um produto que desregule seus hormônios. Mas pode ficar sossegado – pelo menos por enquanto. Por mais que os dois ingredientes que levantaram suspeitas – oxibenzona (BP-3) e octinoxato (OMC) – consigam penetrar pela pele, entrar na circulação sistêmica e serem detectados no sangue, na urina, entre outros fluidos, isso não significa, necessariamente, que representem um risco à saúde humana.
Para nos auxiliar nessa questão, Susie, S. et al. (2020) publicaram um artigo intitulado “The Banned Sunscreen Ingredients and Their Impact on Human Health: A Systematic Review”. Nele, os pesquisadores resumem toda a evidência disponível relacionada aos níveis sistêmicos de BP-3 e OMC e os possíveis impactos à saúde.
A busca resultou em 423 estudos; no entanto, somente 29 alcançaram o nível de qualidade desejado.
A maior limitação do trabalho foi não conseguir determinar o quanto das concentrações sistêmicas de BP-3 e OMC realmente vem de filtros solares. Além disso, a maioria dos estudos incluídos na revisão analisou os níveis das substâncias por meio da concentração urinária, um biomarcador que pode ser resultado tanto da exposição ambiental quanto da absorção do filtro solar.
E somente dois estudos avaliariam potenciais desfechos de saúde decorrentes da exposição exclusiva dos filtros solares.
Um deles comparou as concentrações plasmáticas e urinárias de BP-3 e OMC antes e após a aplicação de um filtro solar em 32 voluntários. Observou-se que antes da aplicação, os níveis de BP3 e OMC eram inferiores a 3,9ng/ml na maioria dos voluntários. Após a aplicação no corpo inteiro, os valores subiram para 238 e 16, respectivamente, sugerindo que os filtros solares podem aumentar dramaticamente os níveis de ambas as substâncias na circulação sistêmica. A evidência de absorção sistêmica e acumulação de BP-3 indica a necessidade de mais estudos que investiguem riscos à saúde no longo prazo.
Entretanto, com base no que foi encontrado nesta revisão sistemática, não há evidências fortes que corroborem uma relação causal entre níveis sistêmicos de BP-3 ou OMC e problemas de saúde. Níveis elevados de BP-3 não apresentaram efeitos adversos na fertilidade, adiposidade infantil e desenvolvimento fetal e neonatal. No entanto, a determinação de seu impacto (se houver algum) na tireoide, hormônios reprodutivos, desenvolvimento na puberdade, função renal e no sistema imunológicos requer mais investigações. Com relação ao OMC, as evidências apontam que a aplicação tópica não tem efeito biológico significativo na tireoide, e nem nos níveis dos hormônios de reprodução.
Ou seja, em níveis anormalmente altos, talvez o BP-3 possa trazer algum efeito deletério, mas para que isso seja confirmado, são necessários estudos melhores.
Deficiência de iodo causa câncer de pele?
Essa alegação é uma tremenda boçalidade. O maior fator de risco câncer de pele, tanto melanoma maligno quanto não melanoma, é a exposição prolongada e sem proteção ao Sol.
De acordo com texto publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2017, intitulado “Radiation: Ultraviolet (UV) radiation and skin cancer”, os cânceres de pele do tipo não melanoma são mais frequentes em regiões do corpo que ficam mais expostas ao Sol, como orelhas, pescoço, antebraço e rosto. Isso implica que exposições repetidas aos raios UV ao longo do tempo são um grande fator de risco. Além disso, é observada uma clara relação entre a incidência deste tipo de câncer em países de baixa latitude, visto que isso implica em níveis de radiação UV mais elevados.
Em relação aos melanomas malignos, eles são mais observados em indivíduos com um fenótipo claro (pele clara, olhos azuis e cabelos vermelhos ou louros). A alta exposição solar parece ser um fator de risco significativo para o desenvolvimento do melanoma maligno. Este tipo de câncer apresenta um maior risco de surgir em indivíduos com histórico de câncer de pele não melanoma e ceratose actínica – dois indicadores de exposição cumulativa a UV.
O artigo lista os fatores de risco individuais para câncer de pele. Estes incluem pele clara, olhos claros, cabelo de coloração clara, tendência de queimar no Sol em vez de ficar bronzeado, histórico de queimaduras severas, presença de muitas pintas e/ou sardas, histórico familiar de câncer de pele e o fototipo de pele – que pode variar de 1 até 6, sendo que os dois primeiros níveis são considerados de alto risco.
A deficiência de iodo não aparece nem como hipótese. Não me estenderei nesse assunto, já que haverá – em algum momento – um artigo sobre o iodo e o motivo pelo qual não devemos suplementá-lo sem necessidade.
E o tal protetor oral?
Enfim, chegamos no último tópico. Porém, antes de abordarmos essa questão, é preciso esclarecer algumas coisas.
Primeiro, óleo de coco não é um fotoprotetor oral.
Segundo, o protetor solar oral a que me referirei é o extrato de Polypodium leucotomos, uma planta nativa da América do Sul e que tem atividade fotoprotetora e antioxidante. Por mais promissores que sejam os estudos a respeito de suas propriedades, o extrato não substitui em nenhuma situação o filtro solar convencional. No máximo, ele será um coadjuvante na fotoproteção.
Existe uma revisão sistemática a respeito da planta, realizada por Prado, G. et al. (2018), intitulada “Clinical Efficacy e Safety of Oral Polypodium Leucotomos Extract for Photoprotection: A Systematic Review”. Neste artigo, os autores realizaram uma busca em três bancos de dados (Pubmed, Cochrane Library CENTRAL e Embase) e identificaram um total de 288 artigos. Após a aplicação dos critérios de inclusão, que consistiam em selecionar qualquer estudo realizado em humanos que fizesse referência ao extrato de Polypodium leucotomos, restaram 18 trabalhos. Dentre esses, havia oito ensaios clínicos randomizados.
A maioria dos estudos utilizou amostras pequenas, variando de cinco a 61 voluntários. Além disso, a formulação comumente empregada nos experimentos era o Fernblock, ingrediente ativo e padronizado de Polypodium leucotomos fornecido pela empresa Cantabria Labs.
Os autores observaram que oito estudos relataram efeitos fotoprotetores benéficos ao medirem a dose mínima eritematosa (DME), definida como a quantidade mínima de radiação ultravioleta necessária para produzir a primeira vermelhidão perceptível com bordas claramente definidas, observadas entre 16 e 24 horas após a exposição à radiação ultravioleta. Por meio de biópsias, constatou-se que pacientes que ingeriram o extrato de Polypodium leucotomos (PLE) apresentaram um menor número de células queimadas pelo Sol, mastócitos e células proliferativas.
Apesar de a revisão fornecer um resultado geral positivo, é crucial destacar alguns detalhes que me impedem de aceitar completamente o parecer favorável. A ausência de uma análise detalhada sobre o risco de viés e a qualidade dos artigos revisados é uma preocupação significativa. Vale destacar que uma revisão sistemática baseada em artigos de qualidade duvidosa – ou ruins mesmo – também terá sua qualidade comprometida.
Além disso, há conflito de interesse: uma das autoras do trabalho pertence a uma organização financiada pela empresa Ferndale Healthcare que produz o Heliocare, um suplemento alimentar que – rufem os tambores – tem o Fernblock em sua composição. Talvez isso explique o motivo de a conclusão do artigo científico soar como peça de propaganda.
No lado crítico, Biba, E. (2014) em seu artigo “The sunscreenpill. A tablet that protects against sunburn is an attractive Idea, but the science is patchy” traz algumas ressalvas pertinentes, incluindo o fato de que as supostas pílulas de proteção solar são vendidas como suplementos, que têm uma regulamentação mais frouxa e permissiva do que medicamentos.
Realmente não sei se você deve ou não utilizar o suplemento. Entretanto, caso opte por utilizá-lo, siga o conselho do coordenador do Consenso de Fotoproteção no Brasil, Sérgio Schalka, em entrevista para a SBD: “(...) Diferentemente dos protetores solares, que atuam antes da radiação chegar à pele, evitando assim sua penetração parcialmente, o protetor oral age posteriormente. Isso ocorre por um mecanismo de antioxidação e proteção do colágeno e outras estruturas celulares. Então, ele não substitui o protetor que passamos na pele. Isso é muito importante de ser pontuado. Nenhum protetor via oral protege se você não tiver utilizado o outro, em creme. Ele funciona então complementando a proteção”.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
TONOLLI, P. e BAPTISTA, M. Protetor solar: não é tão simples assim. 2019. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/07/20/protetor-solar-nao-e-tao-simples-quanto-parece.
ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC No 629, de 10 de Março de 2022. 2022. Disponível em : https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6407780/RDC_629_2022_.pdf/8afdb838-af85-4690-a9f7-842ba38119ee.
ALLI, S. et al. Understanding the Perceived Relationship between Sun Exposure and Melanoma in Atlantic Canada: A Consensual Qualitative Study Highlighting a “Sunscreen Paradox”. Cancers (Basel). 2023 Sep 26;15(19):4726. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37835419/.
Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Guia de Fotoproteção da Sociedade Brasileira de Dermatologia. 2022. Disponível em: https://www.sbd.org.br/publicacoes/fotoprotecao/.
PASSERON, T. et al. Sunscreen photoprotection and vitamin D status. Br J Dermatol. 2019 Nov; 181(5): 916 – 931. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6899926/.
SUH, S. et al. The banned sunscreen ingredients and their impact on human health: a systematic review. Int J Dermatol. 2020 Sep;59(9):1033-1042. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32108942/.
WHO. Radiation: Ultraviolet (UV) radiation and skin Cancer. 2017. Disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/radiation-ultraviolet-(uv)-radiation-and-skin-cancer.
PRADO, G. et al. Clinical Efficacy & Safety of Oral Polypodium Leucotomos Extract for Photoprotection: A Systematic Review. SKIN The Journal of Cutaneous Medicine Vol 2, No6. (2018). Disponível em: https://jofskin.org/index.php/skin/article/view/413.
BIBA, E. Protection: The sunscreen pill. Nature 515, S124- S125 (2014). Disponível em: https://www.nature.com/articles/515S124a.
SBD-SP. Fotoprotetores orais e aceleradores de bronzeado. Disponível em: https://www.sbd-sp.org.br/geral/fotoprotetores-orais-e-aceleradores-de-bronzeado-o-que-sabemos-a-respeito-deles/