Em junho, começou o inverno no Hemisfério Sul terrestre, onde a maior parte do Brasil está localizada (sim, caso você nunca tenha reparado, há uma porção do território brasileiro que fica acima da Linha do Equador). Por ocasião desse fato, e também por decorrência das minhas atividades de divulgação científica, sou corriqueiramente acionado pela imprensa para explicar o que ocorre, do ponto de vista astronômico, nesse momento do ano.
Não é incomum que a primeira resposta que eu tenha que elaborar seja a da seguinte pergunta: “o inverno é causado pelo maior afastamento da Terra em relação ao Sol?”. A lógica é relativamente simples: se o Sol é nossa fonte de luz e calor, quanto mais longe dele estiver a Terra, mais frio enfrentaremos por aqui; e o contrário, claro, seria igualmente verdadeiro.
Essa relação entre distância e temperatura é um mal-entendido que também aparece no contexto do “terraplanismo”: se a Terra está sempre com todos os pontos da sua superfície aproximadamente à mesma distância do Sol (como logo veremos que é o caso), como explicar o fato de que seus polos são sempre muito mais frios que as regiões equatoriais? Isso não deveria acontecer, alegam os defensores da Terra plana, na esperança de colocar em xeque o fato bem estabelecido de que a Terra é redonda.
Fato é que nem as estações do ano são causadas pela variação da distância Terra-Sol, nem a falta dessa variação deve fazer com que os polos e o equador terrestres tenham condições climáticas semelhantes. Motivados por uma pergunta de um leitor, vamos esclarecer esses assuntos.
Terra esférica vs Terra plana
O tema da Terra plana já foi abordado na Revista Questão de Ciência algumas vezes, como aqui, aqui e aqui. Fazendo um breve resgate, o terraplanismo corresponde à defesa da falsa ideia de que o nosso planeta não é esférico, mas uma “pizza”, cujo centro é o “Polo Norte”, a borda é a Antártica – “Polo Sul” – e os demais continentes ficam espalhados pelo disco. Um mapa é útil para visualizar a proposta.
Mas, com base no conhecimento científico atual, sabemos que a Terra é um planeta redondo, que gira em torno de si mesmo enquanto também faz um movimento orbital ao redor do Sol, a nossa estrela mais próxima. A qualquer momento, a face terrestre voltada para o Sol experimenta o período diurno, e a face oposta, o noturno.
No mundo imaginário da Terra plana, é o Sol que faz um movimento orbital em torno de um ponto imaginário acima do “Polo Norte” terrestre (o centro da “pizza”) e, à medida que se move, ilumina apenas a porção do disco abaixo de si, gerando nela o período diurno e deixando o noturno nas demais. Uma animação pode ajudar a quem não está familiarizado.
É importante frisar que o modelo terraplanista falha completamente em explicar a realidade. Suscita questões importantes que simplesmente não têm resposta cientificamente plausível. Citando algumas: por que o Sol iluminaria apenas parte da “pizza”, se está sempre pairando acima dela? Nesse sistema, os fenômenos do nascer e do pôr do Sol, tal como observados pela Humanidade há milênios, não fazem sentido e nem têm explicação. E por que o Sol orbitaria um ponto imaginário? Que forças o mantêm nessa órbita? A atração gravitacional que sofreríamos na superfície de uma “pizza” terrestre também seria completamente diferente da que realmente atua sobre nossos corpos.
Arredondando os números, terraplanistas alegam que o Sol está a 3.000 milhas (5.000 km) de altura, e é bem pequeno, com diâmetro de 30 milhas (50 km); e a “pizza” terrestre teria um diâmetro de 25.000 milhas (40.000 km). Mas sabemos que a Terra tem um diâmetro de 12.800 km e faz seu movimento orbital mantendo-se a 150 milhões de quilômetros do Sol, que, por sua vez, é 100 vezes maior que o nosso planeta.
Por motivo de economia de espaço, não exploramos como esses números foram obtidos, mas precisamos apresentá-los para demonstrar um contraste importante. Na Terra plana, o Sol é muito menor que a Terra e paira relativamente próximo da “pizza”, fazendo com que seus raios de luz cheguem à superfície terrestre de modo análogo ao que acontece com um poste iluminando a estrada: abaixo do poste, a iluminação é direta e mais intensa; à medida que nos afastamos dele, os raios nos iluminam de modo menos intenso e mais inclinado, por isso as sombras “crescem”, alongando-se. Por outro lado, no mundo real da Terra redonda, sabemos que a distância que nos separa do Sol é realmente muito maior que o tamanho do nosso planeta, de modo que, para fins práticos, todos os pontos na superfície terrestre podem ser considerados igualmente distantes do Sol.
As estações do ano
A órbita da Terra em torno do Sol não é perfeitamente circular, mas levemente elíptica – uma circunferência um pouco achatada, lembrando a forma de um ovo –, e o Sol não fica no centro dessa trajetória, mas um pouco deslocado, em um ponto matemático conhecido por “foco da elipse”. Na prática, isso significa que, ao longo do ano, enquanto a Terra percorre seu longo caminho ao redor do Sol, a distância que os separa realmente muda. No momento de maior aproximação, chamado de periélio orbital, a Terra chega a 147 milhões de quilômetros do Sol; no maior afastamento, o afélio orbital, a distância sobe para 152 milhões de quilômetros. Atualmente, o periélio ocorre no início do janeiro, e o afélio, no início de julho.
O que isso tem a ver com as estações do ano? Nada! Ora, mas o verão não ocorre em janeiro e o inverno em julho? Não nos precipitemos: lembremo-nos que, em julho, em pleno inverno aqui no Hemisfério Sul, ondas de calor fatais aparecem no Norte; e, na época de virada do ano, quando estamos em busca de praia e piscina para refrescar o calorão, nevascas devastadoras acontecem com nossos amigos do Norte. Caso você não tenha reparado, as estações do ano são trocadas entre os hemisférios: verão no Sul, inverno no Norte; primavera no Sul, outono no Norte; e vice-versa. Caso a distância Terra-Sol fosse a responsável pela ocorrência das estações, essa inversão não poderia existir.
O que gera as estações do ano é a mudança na forma como nosso planeta recebe luz (e calor!) do Sol à medida que percorre sua trajetória ao redor dele. E essa mudança ocorre porque o eixo de rotação da Terra – aquele movimento que ela faz em torno de si mesma, gerando dias e noites – é inclinado em relação ao plano da órbita ao redor do Sol. Na prática, isso significa que, durante parte do ano, um dos polos está levemente mais “apontado” para o Sol do que o outro, e recebe mais luz.
Ambos os hemisférios somente são iluminados de forma igual em dois momentos específicos do ano – nos dias dos chamados “equinócios” –, que ocorrem em março e em setembro; em dois outros momentos, em um dia de junho e em outro de dezembro, ocorrem os “solstícios”, que correspondem ao ápice da diferença de iluminação recebida pelos hemisférios. Os solstícios são usados como referências astronômicas para marcar o início do verão e do inverno; os equinócios, para a primavera e o outono. Quem tem dificuldade de visualizar, pode encontrar boas imagens aqui.
As consequências dessa variação na iluminação dos hemisférios podem ser percebidas no nosso dia a dia: o Sol nasce mais cedo e se põe mais tarde no verão, gerando um período de iluminação maior; ao mesmo tempo, no hemisfério oposto, acontece o contrário, o período noturno é o que dura mais. É esse mecanismo de assimetria da energia solar recebida pelos hemisférios que causa as estações do ano invertidas.
Os polos gelados
É bem verdade que o clima de uma região é influenciado por diversos fatores, como relevo e proximidade com o mar, por exemplo, mas o que é determinante para compreender o motivo dos polos terrestres serem gelados tem a ver com a energia solar que eles recebem, que é menor que aquela depositada na região equatorial. E, como já sabemos sobre a Terra redonda, isso não pode ter a ver com a diferença entre as distâncias polos-Sol e equador-Sol.
Em termos simples, funciona assim: quanto mais tempo o Sol permanece no céu, e quanto mais alto ele sobe em relação ao horizonte entre o nascente e o poente, mais energia solar aquele local recebe, e mais quente será o clima por ali. O mesmo fato gerador das estações do ano – a tal inclinação do eixo de rotação da Terra – também é responsável por fazer não apenas com que a duração do período noturno e diurno se modifique ao longo do ano, mas o próprio caminho do movimento aparente do Sol no céu também varie. Você já reparou, aí na sua casa, que a direção da iluminação solar recebida ao longo de um dia de julho, por exemplo, é diferente da que ocorre em janeiro? Aqui em casa, em janeiro, a cozinha é iluminada durante boa parte da manhã; em julho, ela não recebe luz solar diretamente.
No globo terrestre, todas as regiões localizadas entre as linhas imaginárias dos trópicos de Câncer (ao norte) e de Capricórnio (ao sul) estão sujeitas a observar o Sol “a pino” (no topo do céu) duas vezes por ano; nos locais exatamente sobre os trópicos, isso ocorre apenas uma vez, justamente no dia do solstício de verão do hemisfério correspondente; nos demais locais do planeta, isso simplesmente nunca acontece.
Nos polos terrestres, em particular, a altura máxima angular que o Sol atinge no céu é cerca de 23 graus, e isso apenas durante o solstício de verão do hemisfério correspondente. Esse valor é cerca da metade da metade do necessário para chegar à condição “a pino”, que seria 90 graus. Para piorar a situação, por vários meses entre o outono e o inverno, o Sol nem mesmo “aparece” por lá.
Colocando tudo isso na ponta do lápis, a energia total depositada pelo Sol nos polos é significativamente menor do que a depositada nas regiões equatoriais, sendo este o fator-chave para a ocorrência de climas equatoriais quentes e climas polares congelantes.
Um Sol para cada um?
Vale destacar como é mesmo intrigante que o nosso planeta esteja nos arredores de uma estrela 100 vezes maior que ele em diâmetro e, mesmo assim, ela não apareça diariamente bem alto céu de qualquer região. Isso é consequência de uma soma de fatores: o primeiro é que coisas muito grandes parecem bem pequenas quando observadas à distância. Por mais que o Sol seja mesmo bem maior que o nosso planeta, ele não tem condições de “encher” o céu porque, visto daqui, ele tem um tamanho equivalente ao de uma moeda de 10 centavos colocada a 2 metros dos nossos olhos.
O segundo é que o quanto o Sol consegue “subir” no céu depende do local da Terra a partir do qual você o observa. Lembre-se que as pessoas estão distribuídas ao redor de uma “bola” – o globo terrestre – e, portanto, os topos de suas cabeças apontam para direções espacialmente diferentes umas das outras, o que faz com que as posições com que elas vejam o Sol, dia após dia, nascendo, percorrendo o céu e se pondo sejam também distintas.
Junte-se a isso o terceiro fator, a tal inclinação do eixo de rotação terrestre que já comentamos, e estamos de posse dos motivos pelos quais o Sol só pode ser visto “a pino” na região intertropical, e, para as regiões acima do Círculo Polar Ártico e abaixo do Círculo Polar Antártico, ele nem mesmo aparece no céu por pelo menos um dia inteiro no ano. Novamente, recorrer a animações pode ajudar a visualizar o processo.
Malabarismos
Os defensores da Terra plana sempre têm uma (péssima) explicação para qualquer um dos fenômenos já bem estabelecidos e explicados pela ciência. No que se refere às estações do ano, precisam recorrer a modificações periódicas no caminho imaginário do Sol sobre a “pizza” terrestre. Mesmo não havendo qualquer justificativa plausível para as alegações terraplanistas, elas já foram testadas a sério, como neste vídeo: um modelo computacional em escala demonstra que a forma como a superfície da Terra plana deveria ser iluminada durante um equinócio, por exemplo, para condizer com a realidade observada em diferentes locais do planeta, simplesmente não faz sentido para uma fonte de luz solar pequena e próxima do disco terrestre. A Terra plana é um fracasso.
Já no quesito “polos gelados”, os terraplanistas poderiam simplesmente observar o que acontece em Marte, que é reconhecidamente redondo por eles mesmos, como mostra uma resposta da Sociedade da Terra Plana para uma postagem de Elon Musk no Twitter. Embora existam diferenças entre o clima marciano e o terrestre, Marte também tem polos com cobertura de gelo (não constituído apenas de água) e estações climáticas invertidas entre os hemisférios Norte e Sul, justamente pela inclinação do seu eixo de rotação, semelhante ao que ocorre na Terra.
Terraplanistas, portanto, ao invés de ficarem se debruçando sobre malabarismos intelectuais para salvar as aparências de seu negacionismo, deveriam apenas comprar um bom telescópio e olhar para o céu.
Observações:
1. Neste artigo, uso a expressão “Terra redonda” como a maneira usual de referência à forma “esférica”. Mesmo assim, sabemos que a Terra é levemente achatada nos polos, embora esse achatamento seja praticamente imperceptível em qualquer imagem espacial do nosso planeta – mas o motivo disso é assunto para outro artigo;
2. Quando afirmo que a relação entre distância e temperatura é um mal-entendido, estou me referindo ao contexto do que se está explicando neste artigo – as estações do ano e os polos gelados. A relação é verdadeira sob um aspecto mais geral da astronomia, o de que planetas mais distantes da estrela tendem a ser mais frios, e os mais próximos, mais quentes. Mesmo assim, ainda há fatores adicionais que atuam sobre o clima de um planeta, como a existência ou não de atmosfera, sua composição e sua densidade, por exemplo.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)