Faz sentido controlar a testosterona das mulheres atletas?

Questionador questionado
15 jul 2021
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corrida feminina

 

Os Jogos Olímpicos de Tóquio provavelmente não serão palco de quebras de recordes, mundiais ou olímpicos, em diversas modalidades. Inúmeros atletas passaram o ano treinando em casa e outros optaram por não participar, por conta da pandemia. Mas há ainda aqueles que foram excluídos pelo que certos dirigentes esportivos consideram ser “ciência”. Mudanças no regulamento para provas do atletismo feminino deixarão de fora duas atletas com as melhores marcas do ano nas provas dos 400 metros rasos. O motivo? A genética das moças e uma interpretação questionável de correlações sem casualidade definida.

Christine Mboma e Beatrice Masilingi, duas atletas da Namíbia que estavam cotadas para conquistar medalhas olímpicas este ano, foram proibidas de disputar a prova dos 400 metros depois que exames encomendados pela World Athletics (WA, órgão que gere o atletismo a nível mundial) apontaram concentrações elevadas de testosterona produzidas naturalmente no sangue das corredoras, o que significava uma infração de novas normas.

Em abril de 2018, a World Athletics substituiu o regulamento que rege a elegibilidade de mulheres para provas classificatórias em eventos internacionais. Dentre os itens do regulamento está estipulada a concentração máxima permitida de testosterona no sangue. A nova regra diminui de 10 para 5 nmol/L a concentração do hormônio circulante produzido naturalmente. E aqui começam os problemas.

Segundo a nota oficial, “especialistas consultados pela World Athletics reuniram-se e revisaram todas as evidências e dados publicados, que indicaram que aumentar o nível de testosterona circulante da faixa normal feminina para a faixa normal masculina leva ao aumento da massa e força muscular e a níveis mais altos de hemoglobina”. Apenas para situar os leitores, os valores de referência para concentração de testosterona no sangue da população geral é de 7,7 – 29,4 nmol/L para homens e de 0,06 – 2,7 nmol/L para mulheres. Valores que podem variar quando levamos em consideração atletas de elite.

O primeiro problema é o que exatamente a WA considera como “todas as evidências e dados publicados”. As referências bibliográficas que constam na nota vêm exclusivamente de um único grupo de pesquisadores franceses, que inclusive é patrocinado pela própria WA e pela WADA (Agência Mundial Antidoping). Os especialistas consultados pela WA deixam de fora estudos de outros grupos, e que trazem evidências contrárias ao que foi concluído sobre a testosterona. Este hormônio, como todos os outros hormônios, tem efeitos distintos em diferentes partes do corpo.

Embora seja verdade que a testosterona pode, em doses elevadas, proporcionar o aumento da massa muscular e de hemoglobina no sangue, a correlação entre os níveis naturais de testosterona e a massa muscular não é consistente entre as populações. Caso a correlação direta fosse forte, era de se esperar que atletas de diferentes países tivessem maior massa muscular conforme maior concentração natural de testosterona no sangue, o que não é verdade segundo este estudo.

Soma-se o fato de que existem pouquíssimos estudos com atletas de elite a respeito da testosterona e a melhora no desempenho esportivo. E ainda menos estudos com uma alta representatividade feminina. Os resultados não são homogêneos entre os grupos de pesquisa, o que é mais um indício de que a WA não levou em consideração TODOS os dados publicados a respeito do tema.

Além do grupo francês, existe um grupo de pesquisadores do Reino Unido e Irlanda que demonstrou a probabilidade de outras correlações serem muito mais plausíveis para explicar a diferença no rendimento de atletas masculinos e femininos do que, simplesmente, a concentração de testosterona no sangue. O principal achado do estudo diz respeito à diferença de porcentagem de massa magra (músculos, massa óssea, órgãos, pele e articulações) entre homens e mulheres. O estudo mostrou que atletas homens, em média, têm aproximadamente 10 kg a mais de massa magra do que as atletas mulheres.

A respeito da concentração de testosterona (T) no sangue dos atletas, o mesmo estudo mostra que, entre as mulheres, 13,7% tinham T acima da faixa típica feminina e 4,7% estavam na faixa típica masculina. Em contraste, 16,5% dos atletas de elite do sexo masculino tinham T abaixo da faixa típica masculina, com 1,8% caindo na faixa de referência feminina. Ou seja, o espectro de variação da concentração de testosterona é amplo e não é possível concluir que apenas a testosterona seja a responsável pela diferença de desempenho entre homens e mulheres. E é ainda menos prudente decidir quem participa ou não das provas de corrida feminina apenas pela concentração de testosterona no sangue. Vale ressaltar que no estudo inglês o limite superior de testosterona foi estipulado em 7 nmol/L e não em 5 nmol/L, como exige a WA. Provavelmente o estudo tem mais de 14% de mulheres com T considerada fora da faixa de referência.

Podemos perceber a sequência de erros na decisão do WA. Testosterona não deveria ser o único marcador para delimitar quem pode correr as provas femininas. Não há evidências robustas e convergentes que mostrem alguma ligação real entre a maior concentração de testosterona no sangue e a melhoraria no desempenho das atletas. Muito menos em casos tão específicos como em provas de meia distância no atletismo feminino. Nem estudos observacionais temos sobre o tema: por exemplo, não sabemos se medalhistas em diferentes provas têm uma concentração de testosterona no sangue maior ou menor em relação aos atletas que não conseguiram chegar ao pódio.

E a coisa fica ainda mais arbitrária. A decisão da WA presume que a testosterona sempre confere uma vantagem, por isso a determinação de um limite. Porém, essa regra é aplicada apenas em algumas modalidades do esporte, como corridas de meia distância, entre 400 e 1.600 metros. Ora, como foi estabelecida essa relação? Como eles sabem que a concentração de testosterona não vai interferir nas provas rápidas dos 100 e 200 metros? Ou nas provas mais longas? Novamente, basearam a decisão apenas nos estudos do grupo francês.

E tem mais! A decisão sobre a concentração de testosterona abre um precedente. Outro estudo mostrou que o estrogênio parece desempenhar um papel crítico no desempenho em provas de resistência, como corridas de longa distância. O mecanismo de ação do estrogênio pode ser potencialmente explicado por seu papel no metabolismo da glicose. O estudo mostra que homens treinados em provas de resistência tinham significativamente mais receptores de estrogênio em seus músculos do que homens com atividade física apenas moderada. Não há regulamentação a respeito do estrogênio naturalmente produzido por homens e mulheres, mas o precedente está aberto para regulamentar este e outros hormônios naturalmente produzidos.

E não ache que a nota não poderia ficar ainda pior. A WA, preocupada com a modalidade feminina, tem a solução para atletas que, mesmo com altas concentrações de testosterona no sangue, ainda queiram competir nas Olimpíadas! A recomendação é que mediquem-se  com contraceptivos hormonais para reduzir os níveis naturais do hormônio! Por no mínimo seis meses!

Quais os efeitos dos contraceptivos hormonais no desempenho e na saúde geral das atletas? Vai afetar apenas a concentração de testosterona? Tal sugestão lamentável pode trazer vários efeitos negativos no desempenho das atletas, além de representar uma interferência indevida na privacidade e na saúde de duas mulheres adultas e saudáveis. Mboma e Masilingi corretamente se negaram a realizar o tratamento.

Como podemos perceber, a decisão de regulamentar a concentração de testosterona acaba fazendo com que mulheres sejam impedidas de competir com base em uma leitura questionável da ciência, ou impondo a elas uma espécie de “doping negativo” que traz o risco de afetar outras áreas de suas vidas e sua saúde geral.

A regra absurda da WA se diz necessária para proteger as mulheres de uma suposta vantagem injusta de certas concorrentes. Porém a mesma regra não é aplicada para homens competirem entre si. Existem verdadeiras diferenças, embora muitas variações, entre mulheres e homens. Isso pode, em média, dar aos homens uma vantagem em atividades baseadas na força e potência, e às mulheres uma vantagem em esportes de resistência. Tais diferenças justificam separar os sexos, em algumas competições.

O que falta estabelecer é quais diferenças biologicamente significativas são, hoje, subestimadas, superestimadas ou ignoradas. Isso precisa mudar se quisermos banir o sexismo no esporte e levar a sério o treinamento e a nutrição de atletas femininas em todo o mundo.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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