No dia 28 de janeiro, recebi no aplicativo do banco a seguinte proposta:
“Já imaginou conhecer seu DNA? Agora isso é possível, com o plano Total do Seguro para Vida. Além de conhecer suas origens, você tem acesso a relatórios de DNA para ter uma vida mais saudável, como a dieta que mais se adequa ao seu corpo ou informação de intolerância a alimentos. Clique abaixo, conheça e simule seu Seguro”.
Em um primeiro momento, a ideia parece (e é) fascinante: com uma simples amostra do material genético é possível mapear a origem dos meus ancestrais e, ao mesmo tempo, entender melhor meu corpo, sabendo que tipo de doenças tenho maiores chances de desenvolver ao longo da vida. Porém, atrás desta cortina de benefícios podem estar algumas intenções não tão nobres assim.
O Projeto Genoma Humano, que completou 30 anos do seu início em 2020, permitiu o mapeamento completo das sequências de DNA que compõem a estrutura dos genes da espécie humana. Desde seu fim, em 2003, os esforços da comunidade científica em torno desse tema se concentram principalmente na identificação da funcionalidade dos genes, ou seja, a quais processos metabólicos estão relacionados e quais as consequências de termos uma variante ou outra desses genes. Também é cada vez mais comum encontrarmos equipamentos sequenciadores de DNA tanto em universidades e centros de pesquisa quanto em empresas particulares, que oferecem o serviço de mapeamento.
A curiosidade em conhecer as origens genéticas dos familiares pode ser ao mesmo tempo reveladora, para quem se julga “puro” de alguma região, quanto frustrante, no sentido de que não há nenhuma informação mais específica impressa no DNA, apenas uma visão geral de traços genéticos associados a grandes grupos de povos da Antiguidade. No que se refere à saúde, parece uma boa ideia antecipar eventuais doenças que possam ser desenvolvidas no futuro e fazer o possível para evitá-las, com dietas e exercícios adequados, por exemplo.
Aqui, é importante notar que a maioria das inúmeras possíveis associações entre marcadores de DNA e doenças, aventadas na literatura científica (e na mídia), ainda carece de validação: são correlações, que podem ou não corresponder a relações reais de causa e efeito, algo que só pesquisas mais aprofundadas poderão determinar. Pouquíssimos genes já foram definitivamente associados a algum tipo de patologia. O caso mais conhecido é o da associação entre os genes BRCA e o câncer de mama.
Muitas empresas que oferecem testes genéticos tendem a minimizar essas incertezas e oferecer laudos que parecem mais informativos do que realmente são. Sugestões de “dieta emagrecedora ajustada ao genoma” ou exercícios físicos “compatíveis” com seu DNA individual não devem ser levadas a sério.
Vamos abstrair essas limitações por um momento. Ao vincularmos as informações contidas no material genético a uma proposta de seguro de vida, é inevitável questionar qual é de fato a correlação que será feita pela seguradora: será a apólice mais cara para aquelas pessoas que tiverem maior propensão genética a desenvolver alguns tipos de doenças? Será que uma indenização poderia deixar de ser paga a uma família sob o argumento de que o segurado “sabia da sua predisposição genética a desenvolver diabetes crônica e não seguiu a dieta recomendada”, por exemplo? Ou ainda, caso identificado um potencial desenvolvimento de uma doença, seriam sugeridas intervenções preventivas, condicionadas à manutenção da apólice?
Provavelmente a resposta inicial das seguradoras seria um sonoro “não”, além de haver questões éticas e legais que provavelmente os impediria de agir de modo tão explícito. No entanto, podemos fazer um paralelo com aquilo que já ocorre na contratação de um seguro de automóvel: os valores da apólice variam conforme a idade, sexo e endereço da residência do segurado, entre outros fatores. Ainda são oferecidos bônus na renovação caso o seguro não tenha sido acionado.
Além disso, os dados dos motoristas são consultados para avaliação de registros passados de sinistros e multas, por exemplo. Se todas essas informações compõem a avaliação de risco da seguradora para as apólices de automóveis, por que seria diferente no caso de um seguro de vida? Informações genéticas tornam-se dados extremamente valiosos para a definição de segurados com perspectiva de “longevidade” ou de “vida curta”.
Esse cenário traz à lembrança o filme GATTACA – A Experiência Genética (1997), do cineasta Andrew Niccol, no qual é retratada uma sociedade do futuro onde as pessoas não são mais discriminadas por sua origem, raça ou cor da pele, mas sim pelo seu material genético. Entrevistas de emprego, matrículas em instituições de ensino e até mesmo relacionamentos eram precedidos de análises de DNA para identificação de “bons genomas”.
A isso o autor chamou de “geneoísmo”, que, guardadas as devidas proporções, é de certa forma o que se observaria caso o valor de uma apólice de seguro de vida estivesse vinculado a uma análise de material genético. É sempre importante ressaltar que a pré-disposição ao desenvolvimento de uma determinada característica – uma doença, por exemplo – não é garantia de que de fato aquilo irá ocorrer, por maiores que sejam as probabilidades.
O fenótipo – manifestação da característica –- é resultado da combinação entre o que está escrito no DNA com fatores ambientais, que exercem uma alta influência nas características. Por isso, não faz sentido pré-avaliar alguém considerando apenas aquilo que seu material genético diz.
Nesse sentido, há importantes iniciativas como o Ato de Não-discriminação de Informação Genética (GINA) de 2008, que afirma “proteger os cidadãos americanos da discriminação com base em suas informações genéticas, tanto em seguros de saúde quanto no emprego”. De qualquer modo, é importante estarmos atentos e refletirmos sobre esse tipo de iniciativa que parece ter como objetivo o acesso ao nosso DNA. Se atualmente nos preocupamos com dados de CPF, histórico de buscas online, microfones e webcams, provavelmente no futuro as empresas terão esse mesmo interesse em nossos dados genéticos, para nos recomendar produtos e serviços conforme nossas necessidades.
Bruno Menezes Galindro é biólogo, com doutorado em Engenharia Ambiental, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, ministrando aulas de Biologia e Metodologia de Pesquisa, além de participar de projetos de pesquisa e divulgação científica na área ambiental
REFERÊNCIAS
https://www.genome.gov/about-genomics/policy-issues
Collins, F., Green, E., Guttmacher, A. et al. A vision for the future of genomics research. Nature 422, 835–847 (2003). https://doi.org/10.1038/nature01626
Gibbs RA. The Human Genome Project changed everything. Nat Rev Genet. 2020 Oct;21(10):575-576. doi: 10.1038/s41576-020-0275-3. PMID: 32770171; PMCID: PMC7413016.
https://www.nbcnews.com/health/health-news/i-took-batch-dna-tests-so-you-don-t-have-n880386
https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2673150