O fim dos discos voadores

Questão de Fato
9 mar 2024
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disco voador em Washington

 

Não há evidência digna de crédito de que a Terra já tenha sido visitada dor extraterrestres, de que exista tecnologia extraterrestre sendo empregada por governos ou companhias privadas, ou de que qualquer avistamento registrado de objeto não identificado possa ter sido causado por tecnologia extraterrestre. Denúncias de que o governo dos Estados Unidos mantém ETs ou discos voadores escondidos em bases secretas são “em grande parte, o resultado de informes que se disseminam em círculos dentro de um grupo de indivíduos que acredita ser este o caso, apesar da total falta de evidência”.

Essas são as conclusões gerais de um relatório publicado na sexta-feira, dia 8, pelo Departamento de Defesa dos EUA (DoD) com a revisão de todas as investigações conduzidas por autoridades americanas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sobre Fenômenos Anômalos Não Identificados (UAP), o novo termo técnico adotado em referência ao que antigamente se chamava de Objeto Voador Não Identificado – UFO, disco voador ou óvni.

Com mais de 60 páginas, o trabalho é assinado pelo Escritório de Resolução de Anomalias de Todos os Tipos (AARO), uma repartição do DoD criada por ordem do Congresso americano em 2023 para, especificamente, pôr em pratos limpos a questão da origem dos óvnis e revelar qualquer atividade clandestina envolvendo tecnologias ou corpos alienígenas. O relatório é a última publicação do AARO feita sob a orientação de seu ex-diretor, o físico Sean Kirkpatrick, que se demitiu no fim do ano passado, denunciando o sensacionalismo com que o tema vinha sendo tratado por políticos e pela mídia.

 

Informação imperfeita

O relatório afirma que os casos de avistamento de UAPs que seguem inexplicados encontram-se nessa situação não porque os fenômenos em si são inexplicáveis – extraordinários para além da compreensão humana –, mas porque a informação disponível a respeito é insuficiente. Diz o texto:

“Embora muitos relatos de UAPs permaneçam sem solução ou não identificados, o AARO avalia que se mais dados, e de melhor qualidade, estivessem disponíveis, a maioria desses casos também poderia ser identificada e resolvida como objetos ou fenômenos comuns. Sensores e observações visuais são imperfeitos; a grande maioria dos casos carece de dados úteis ou os dados disponíveis são limitados ou de má qualidade.

(...)

“A grande maioria dos relatos é quase certamente resultado de identificação incorreta e consequência direta da falta de consciência do domínio; existe uma correlação direta entre a quantidade e a qualidade da informação disponível sobre um caso e a capacidade de resolvê-lo de forma conclusiva”.

 

“Consciência do domínio”, no caso, significa a capacidade de compreender efetivamente os fenômenos que ocorrem num determinado ambiente – há “consciência do domínio marítimo”, do “domínio aéreo”, do “domínio espacial”, etc.  

O trabalho chama atenção, ainda, para o papel do contexto cultural e geopolítico na construção e interpretação das narrativas sobre UAPs, e distingue duas “eras”, a “prévia” (até 2009) e a “moderna” (de 2009 em diante). Aqui também vale a pena citar diretamente o texto:

“Fatores contextuais comuns entre as investigações prévias e modernas incluem um ambiente de segurança nacional dinâmico e em rápida evolução, preocupação com surpresas tecnológicas, intenso sigilo relacionado aos programas militares do governo, interesse público em UAPs, a percepção da existência de barreiras burocráticas e a persistente falta de dados de qualidade.

“As diferenças entre as investigações prévias e as modernas incluem: diferenças no nível de confiança do público no governo; o grande volume de conteúdo de cultura popular relacionado a UAPs; a percepção, dentro de alguns segmentos da população, de que o governo dos EUA está escondendo tecnologia extraterrestre; divulgações não autorizadas de programas secretos, confundidos com observações de UAPs; a proliferação de fontes online que reforçam estas crenças; o impacto que as redes sociais tiveram na circulação de informes; e a rápida disseminação de desinformação”.

 

 

Levantamento histórico

O índice do relatório é um verdadeiro passeio pela história da ufologia, começando com a série de projetos investigativos dos anos 1940-1950 com seus nomes coloridos (SAUCER, SIGN, GRUDGE, TWINKLE, BEAR, BLUE BOOK) e passando até mesmo pelo Caso Roswell, quando uma tentativa desastrada de manter em segredo um programa de balões lançados para captar sinais de testes nucleares na União Soviética deu origem a uma mitologia ufológica que só cresceu nas décadas seguintes, a ponto de o presidente Bill Clinton determinar, em 1992, uma investigação rigorosa do assunto.

A determinação de Clinton levou à publicação pela Força Aérea americana, em 1997, do livro “The Roswell Report: Case Closed” (“O Relatório Roswell: Caso Encerrado”), expondo toda a evidência disponível sobre o assunto.

A parte histórica também tem o mérito de passar a limpo a questão da suposta agência secreta de investigação de óvnis que teria operado dentro do DoD entre 2009 e 2012, e cuja existência foi “revelada” por The New York Times em 2017. Supostos ex-integrantes dessa agência (conhecida pelas siglas AAWSAP e AATIP) tornaram-se, após a publicação no NYT, celebridades no circuito ufológico de talk shows, podcasts e YouTube.

Segundo o AARO, em 2008 o senador Harry Reid destinou uma verba orçamentária de US$ 22 milhões para que o Departamento de Defesa estudasse “ameaças aeroespaciais avançadas” que poderiam, no futuro, afetar os Estados Unidos. O setor encarregado de levar adiante a missão foi batizado AAWSAP, sigla para “Programa de Aplicação de Sistemas de Armas Aeroespaciais Avançadas”.

“Embora a investigação de OVNIs/UAPs não estivesse especificada na minuta do contrato, a organização do setor privado selecionada conduziu a pesquisa de UAPs com o apoio do gerente do programa. Esta pesquisa incluiu: revisão de novos casos e de casos muito mais antigos do Projeto BLUE BOOK, operações de interrogatório e equipes de investigação, e propostas para criar laboratórios para examinar quaisquer materiais de UAPs recuperados”, explica o relatório, sem mencionar que a “organização do setor privado” era comandada por Robert Bigelow, um milionário fanático por discos voadores e fenômenos sobrenaturais e, coincidentemente, um financiador das campanhas eleitorais do senador Reid.

O contrato que sustentava a AAWSAP foi encerrado em 2012, e tudo que o projeto produziu foi uma série de artigos “científicos” que jamais passaram por revisão pelos pares. A outra sigla associada ao caso, AATIP (Programa de Identificação de Ameaças Aeroespaciais Avançadas), informa o relatório, jamais pertenceu a nenhuma iniciativa oficial do governo, mas era usada como nome por uma “comunidade informal” de funcionários do DoD aficionados por discos voadores.

 

Conspirações e denunciantes

O relatório da AARO também traz os resultados de entrevistas conduzidas com indivíduos que se apresentaram como tendo conhecimento do suposto envolvimento do governo americano com extraterrestres, ou acesso a evidências a respeito.

“O AARO determinou, com base em todas as informações fornecidas até o momento, que alegações envolvendo pessoas específicas, locais conhecidos, testes tecnológicos e documentos, supostamente envolvidos ou relacionados à engenharia reversa de tecnologia extraterrestre, são inexatas”, diz o trabalho. E prossegue: “todos os supostos programas de engenharia reversa de UAP mencionados pelos entrevistados ou não existem; ou são resultado de confusão envolvendo programas autênticos de segurança nacional altamente sensíveis, mas que não estão relacionados com tecnologia extraterrestre; ou se reduzem a um programa desautorizado”.

Esse programa desautorizado é o KONA BLUE, “proposto ao Departamento de Segurança Interna (DHS) e apoiado por indivíduos que acreditavam que o governo dos EUA esconde tecnologia extraterrestre. O programa jamais foi aprovado pelo DHS e seus proponentes jamais forneceram evidências empíricas para apoiar suas afirmações”.

 

Futuro?

O relatório publicado agora é apenas o primeiro volume; uma segunda parte, analisando mais alegações sobre alienígenas e tecnologia extraterrestre deve ser divulgada no futuro. Este trabalho do AARO é talvez o mais próximo que a realidade pode chegar da esperada “disclosure”, ou “revelação”, o momento messiânico aguardado por parte da comunidade ufológica em que os governos do mundo finalmente virão a público com “tudo o que sabem” sobre ETs e discos voadores.

Claro que se trata de uma “disclosure” que diz exatamente o oposto daquilo que os fiéis da ufologia esperam ouvir, e exatamente por isso há uma grande chance de que seja ignorada ou tratada como apenas mais uma peça do “grande acobertamento”. Este é o principal conforto de se aderir a uma teoria da conspiração: o governo, a imprensa e a ciência só merecem atenção quando dizem exatamente o que você quer ouvir.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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