A nova elitização do ensino superior

Questão de Fato
1 jun 2022
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As salas de aula das universidades brasileiras sempre foram um espaço elitizado e ocupado, majoritariamente, pelos filhos das classes privilegiadas. Isso começou a mudar a partir do início do século, com políticas públicas de democratização do acesso ao ensino superior, como as cotas, financiamentos, bolsas e auxílios. Agora o sistema vive nova mudança, com risco de volta ao passado. Desde 2016, o número de estudantes de baixa renda que ingressa na universidade estagnou e, com isso, a possibilidade  de reelitização do ensino superior já aparece no horizonte.

O pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) Adriano Souza Senkevics, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese O acesso, ao inverso: desigualdades à sombra da expansão do ensino superior brasileiro, 1991-2020, tem dados que revelam esse quadro de forma clara.“Os jovens pertencentes ao segmento 20% mais rico da sociedade brasileira compunham aproximadamente 75% das vagas (totais, públicas e privadas) até o final da década de 1990”, diz.

De acordo com Senkevics, isso começou a mudar de 2000 para frente, quando os estudantes das classes mais abastadas passaram a perder espaço relativo nas universidades, e o segmento de baixa renda cresceu. “Os jovens que integram a camada dos 40% mais pobres passaram de 2,5% em 1995 para 16,1% em 2015”, conta.

O mestre em Letras e doutor em Literatura Dilvo Ristoff, professor emérito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem uma explicação para esse fenômeno. “A presença cada vez maior de estudantes pobres no campus brasileiro se deve a todo um conjunto de políticas de inclusão adotadas nos governos Lula e Dilma”, diz. “Eu destacaria alguns especialmente. No setor privado, o Prouni [Programa Universidade para Todos], o Proies [Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior], o Fies [Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior] e a flexibilização regulatória para a educação a distância”.

No caso específico do Fies, Ristoff, que é autor e coautor de vários livros sobre Educação, chama a atenção para o fato de que, a partir de sua versão 2010, que se estendeu até 2016, o programa foi agressivo no financiamento estudantil, com juros altamente subsidiados. “Além disso, o que poucos sabem, com gratuidade para estudantes das carreiras de professor e de médico que após se graduarem atuem nas redes públicas”, acrescenta.

No setor público, Ristoff destaca a importância de programas como o de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o de Assistência Estudantil (Pnaes) e o de Assistência Estudantil para as Instituições de Ensino Superior Públicas Estaduais (Pnaest), o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e o Bolsa Permanência, além de outras bolsas como as do Programa de Educação Tutorial (PET) e o de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid).

Ristoff cita ainda outras políticas públicas que ajudaram a aumentar o número de estudantes de baixa renda no ensino superior, como a interiorização das universidades federais, com a implantação de 270 campi vinculados a instituições já existentes, a criação de 20 novas e dos institutos federais, com seus mais 650 campi espalhados pelo interior do país, e da Universidade Aberta do Brasil (UAB).

O efeito dessas políticas na democratização do acesso às universidades agora está em risco. “Depois de 2015, a presença dos mais ricos parou de cair e a dos 40% mais pobres parou de subir”, diz Senkevics. “Então, há uma tendência bem descrita nos tempos recentes de estagnação no processo de inclusão que se observava nas últimas décadas”.

Há várias razões para isso, entre as quais a crise econômica, que vem se agravando desde 2015 e aumentando o número de jovens desempregados, e, principalmente, o corte de recursos para a educação pelo atual governo. Neste caso, depois que Michel Temer implantou o teto de gastos, em 2016, a fatia da área no orçamento federal caiu de 6,5% naquele ano para 5,2% em 2020. Como consequência, o investimento nas universidades federais foi reduzido de R$ 2,1 bilhões em 2015 para R$ 700 milhões em 2020.

Os cortes também afetaram as bolsas para o ensino privado, concedidas por meio do Fies, programa que paga parte das mensalidades dos alunos. Os recursos desse fundo caíram de R$ 17 bilhões em 2017 para cerca de R$ 5 bilhões em 2020. O Prouni, que oferece bolsas integrais, também foi duramente afetado, caindo para 296 mil concedidas, o menor número desde 2013.

O pedagogo Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da USP (FE-USP), chama atenção para outro fator que contribui para o quadro: a elitização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “O controle da ‘porta de entrada’ da universidade se deu pelas modificações no Enem”, explica. “Em 2017, o Enem deixou de fazer a certificação do Ensino Médio, e o impacto disso foi grande nos anos seguintes. Depois, a elevação da taxa e a proibição da isenção para quem faltou na edição anterior tirou milhares de jovens da disputa”.

Os cortes dos investimentos em educação não dificultam apenas o acesso dos estudantes de baixa renda à universidade. Eles também tornam mais difícil a permanência no ensino superior. Enquanto estudam, eles precisam de transporte, alimentação e moradia, por exemplo. A redução dos recursos também levou à queda dos auxílios nessas e em outras áreas, como o Pnaes.

Apesar da importância desse programa, Juarez Tadeu de Paula Xavier, vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) do campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista (Unesp), lembra que ele é auxiliar e não garante sozinho a permanência dos alunos. “As instituições não têm como bancar totalmente os estudantes em condições de vulnerabilidade”, explica. “Não há moradia estudantil para todos, nem restaurante universitário em tempo integral, com três refeições, e os valores dos auxílios – aluguel, socioeconômico, transporte, subsídio alimentação – não cumprem totalmente essa função”.

Além disso, acrescenta, há as famílias dos estudantes, que não são contempladas por essas políticas, o que obriga muitos a abandonar a universidade para ajudar com a renda familiar. “Muitas vezes, bons alunos concluem a graduação, com amplas possibilidades de ingressar na pós-graduação, com bolsa de iniciação científica, por exemplo, mas vão para o mercado de trabalho”, diz. “Isso cria uma barreira para a continuidade acadêmica, elitizando os programas de pós-graduação, sem políticas de inclusão, sem bolsas especiais e sem permanência estudantil”.

Para Ristoff, o descaso com a educação e a consequente redução dos investimentos estão inseridos num contexto mais amplo. “Cortes no orçamento das universidades, no Pnaes, na Bolsa Permanência, nas bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), nas verbas de investimento e custeio nas universidades e institutos federais – tudo isso é consequência de uma compreensão equivocada, velha e retrógrada, de que a educação universitária deve ser para poucos”, critica. “É um retrocesso descabido, um besteirol de alto custo para a vida dos indivíduos e para o desenvolvimento do país”.

O sociólogo e doutor em Educação Gustavo Bruno de Paula, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP) da USP, teme que os cortes dos investimentos em educação possam interromper o processo de ampliação do acesso ao ensino superior por estudantes que mais requerem apoios sociais. “Com o orçamento restrito, as universidades e outras instituições contam com menos recursos para direcionar para os programas de auxílio estudantil, bem como para financiar todas as atividades que influenciam a permanência indiretamente, como limpeza, manutenção, melhorias de infraestrutura ou mesmo segurança”, explica.

De Paula, que é autor da tese Desigualdades sociais e evasão no ensino superior: uma análise em diferentes níveis do setor federal brasileiro, defendida no ano passado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que essas mudanças são um sinal de alerta. “Temos que ficar atentos sobre uma possível reversão do processo de ampliação do acesso ao ensino superior e de equalização das oportunidades, beneficiando grupos como as classes mais baixas, estudantes negros e concluintes das escolas públicas”, alerta.

Apesar do quadro, Senkevics, do Inep, é cauteloso quanto a uma reelitização da universidade brasileira. “Por enquanto, os dados são pouco conclusivos sobre essa possibilidade, porque os efeitos da crise recente ainda estão sendo sentidos e captados pelas estatísticas oficiais”, explica. “Creio que viveremos alguma reelitização, sim, mas nada que retorne aos patamares pré-expansão. É possível que observemos algum retrocesso, mas não total. Logo, não creio que a universidade voltará a ser exclusividade de uma elite econômica”.

De acordo com ele, o que é mais provável é que não haverá expansão de vagas, logo, não se terá mais oportunidades de acesso em relação ao que já se tinha. “Também as condições de permanência e conclusão serão comprometidas, com encolhimento dos programas de assistência e permanência estudantil”, acrescenta. “No setor privado, especificamente, sem a expansão de políticas como o Prouni, dificilmente observaremos alunos de origem mais humilde cursando faculdade. O que temos visto também é uma queda expressiva na demanda pelo ensino superior, então é provável que testemunhemos um aumento na proporção de jovens que optam pelo ingresso no mercado de trabalho em vez de um curso de graduação”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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