A vida após a morte da ciência invalidada

Questão de Fato
19 mai 2022
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Como as almas penadas e os zumbis das lendas, os artigos científicos retratados nunca desaparecem, ficam arquivados para sempre nos periódicos em que foram publicados. Até aí, tudo bem: são marcados como incorretos ou fraudulentos e todo pesquisador pode verificar. Apesar disso, alguns desses papers continuam sendo citados como válidos – por negligência ou má-fé dos cientistas que os usam como referência –, assombrando e causando danos à ciência por uma eternidade, depois sua retratação.

O químico Luiz Carlos Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que a retratação de um paper ocorre no período pós-publicação, quando é detectado algum tipo de erro, equívoco, violação de ética e integridade científica, má conduta científica, fraude, plágio, dados fabricados, perda de confiança nos dados publicados ou na forma como foram gerados, falta de reprodutibilidade dos resultados ou impossibilidade de garantir a veracidade das fontes de dados primários, no caso de revisões e meta-análises.

Mas a retratação, total ou parcial, de um artigo não leva à sua remoção do site da revista e das bases de dados de citações. “Ele não desaparece totalmente, continua disponível por meio de ferramentas online e nos sites dos periódicos”, conta Dias. “O texto contém um link para uma nota explicativa, normalmente com uma mensagem com uma marca d’água de retratação, adicionada a todas as páginas da versão do arquivo PDF publicado online, ou em um número posterior da versão impressa”.

Algumas vezes, essas medidas não são suficientes para evitar que esse artigo retratado continue a disseminar informações incorretas para a comunidade científica. Um exemplo emblemático é o caso do anestesiologista e pesquisador de dor de renome Scott Reuben, de Massachusetts, nos Estados Unidos, analisado num estudo recente de um grupo da Universidade Médica de Graz, na Áustria, publicado em março.

Seus autores lembram que, em 2009, Reuben foi condenado, por fabricação de dados em larga escala, a seis meses de prisão e mais de US$ 400 mil em multas e restituição. Como consequência, 25 de suas publicações foram retiradas, a maioria de periódicos conceituados em sua área de pesquisa.

Ainda de acordo com os autores do estudo sobre Reuben, na época, esse foi o maior número de retratações por má conduta científica de um único pesquisador. Apesar disso, ele ficou longe do recorde. Em 2011, o alemão Joachim Boldt, também anestesista, perdeu 68 estudos, mas ainda assim ficou longe do campeão da época, o médico japonês Yoshitaku Fujii, ex-professor associado da Universidade Toho, no Japão, que falsificou 172 trabalhos de pesquisa entre 1993 e 2011.

No caso de Reuben, os autores austríacos examinaram quatro bancos de dados e revisaram publicações completas dele para verificar indicações de status de retratação. Eles constataram que papers do anestesiologista foram citados 420 vezes em um período de 10 anos, entre 2009 e 2019. Desse total, 360 citações foram de artigos retratados, que não deveriam ser considerados mais parte da literatura científica. Em 60% das publicações, não havia nenhuma indicação de que o artigo citado havia sido retirado.

 A citação contínua de papers retratados pode influenciar um campo de pesquisa inteiro, distorcer evidências e levar a conclusões erradas que podem causar danos e prejuízos.

Para Germana Barata, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, e membro da diretoria da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), as consequências da citação contínua de artigos retratados são bastantes danosas. “A ciência de má qualidade e fraudulenta tem sido usada para fomentar e dar aval científico para fake news, desinformação e movimentos pseudocientíficos e anticiência”, diz. “É como se a ciência ruim passasse a dar prestígio e legitimar a desinformação”.

Isso por si só já é grave, mas em alguns casos pode levar a danos irreparáveis, colocando, inclusive, vidas humanas em risco. Ele cita como exemplo o artigo publicado em 1998 pelo então médico (sua licença depois foi cassada) Andrew Wakefield, na revista Lancet, que associava, de forma totalmente equivocada, a vacina tríplice viral a casos de autismo em crianças, que foi retratado só depois de 12 anos.

Mas o estrago já estava feito. E continua. Em 2020, o paper de Wakefield ocupava o segundo lugar no ranking de trabalhos retratados mais citados do Retraction Watch, um blog que informa sobre retratações de artigos científicos e temas relacionados, com peculiaridade de ter mais citações depois da retração (867) do que antes dela (642). 

Mas não são apenas pesquisadores negligentes ou com má-fé que citam artigos  fraudulentos ou com dados errados. Um público maior, fora da comunidade científica, também se aproveita deles. “Mesmo os retirados, desde que sirvam para defender teorias dos grupos anticiência e do movimento antivacina, por exemplo, continuam a ser compartilhados e citados nas mídias sociais”, explica Dias. “Esses grupos não se importam com o fato de o paper ter sido retratado. Eles são anticiência, mas se uma ferramenta da ciência servir para defender seus pontos de vista e suas visões de mundo, eles a agarram”.

Nesses casos, até é possível entender. Mas o que leva um cientista a citar e aproveitar dados de um artigo retirado por ser fraudulento ou incorreto? “Acho que a maior parte é por desconhecimento da retratação mesmo”, acredita o médico e doutor em Bioquímica Olavo Amaral, professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade. “O pesquisador pode ter lido ou baixado o artigo antes da retratação ou citar a partir de uma citação indireta, e nesse caso não vai ter como saber que o texto foi retirado”.

Ele não descarta a má-fé, no entanto. “Claro que podem existir os casos em que alguém faça isso deliberadamente, por discordar do motivo da retratação, como, por exemplo, um autor citando o próprio trabalho ou um militante antivacinas convicto fazendo referências a Wakefield”, diz. “Mas esses me parecem casos raros”.

No entender do biólogo Rubens Pasa, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), o maior problema é o fato de que as retratações aparecem “praticamente como notas de rodapé nos sites das revistas científicas”. “Apesar de termos tudo online atualmente, para saber se um artigo foi retirado é necessário acessar o site da revista e verificar no DOI da publicação”, explica. “Não é prático”.

Para Germana, a marcação é muito discreta. “As revistas e os indexadores deveriam ter a obrigação e se empenhar mais em tratá-los de maneira diferente”, diz. “Deveriam marcar os artigos retratados com mais clareza, em vermelho ou com um pop up, dizendo que quem citar aquele artigo sabe que ele foi retratado e deve avisar os leitores do seu próprio texto sobre isso. Algo que dê mais responsabilidade tanto para os distribuidores de informação quanto para as revistas científicas e autores que citam os papers retirados”.

Dias defende uma ação mais radical.Eu penso que os conteúdos das versões online dos artigos retratados deveriam ser totalmente removidos do site da revista e de todos os repositórios digitais que arquivam trabalhos acadêmicos, bem como das bases de dados e de citações”, diz. “Uma opção seria deixar apenas o título, nomes dos autores, afiliações e resumo, colocando o motivo da retratação, com o aviso de que o artigo em questão foi removido. Ele deveria ser identificado pelo mesmo número de DOI, o que permitiria que todos que fossem acessá-lo teriam acesso à informação da retratação. Também é preciso punir severamente quem viola os bons princípios, a ética e os códigos de conduta da pesquisa científica”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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