Videntes acertam 11%, erram 53% e enrolam no resto

Questão de Fato
9 mar 2022
Autor
constelações

 

O australiano Richard Saunders escreveu software pedagógico para os primeiros computadores da Apple, foi figurante em filmes de super-herói e construiu uma carreira de renome internacional no origami: ensina as dobraduras japonesas em programas de TV e em mais de quinze livros.

Nesse meio-tempo, seu fascínio de infância por ufologia e fenômenos paranormais o levou a se tornar um dos maiores ativistas do movimento cético racionalista: foi duas vezes presidente da principal união australiana de combate ao charlatanismo e às pseudociências, chamada Australian Skeptics (“Céticos Australianos”). 

No começo de 2010, Saunders deu início a um novo projeto: catalogar, na medida do possível, cada profecia proferida por videntes australianos entre 2000 e 2020.

Esse levantamento de abrangência inédita gerou uma planilha com mais de 3.800 falas, proferidas por 207 adivinhos, profetas, astrólogos e outros supostos leitores do futuro. Figuras que se arrogam esse tipo de capacidade são conhecidas em inglês pela expressão genérica psychics – “psíquicos” , ainda que nem todos reivindiquem possuir poderes paranormais. Alguns, por exemplo, lançam mão da astrologia, que se baseia na análise do movimento dos astros. As conclusões foram publicadas numa longa matéria de capa na edição de dezembro de 2021 da revista australiana The Skeptic.

Nas últimas etapas do projeto, um grupo de céticos voluntários de vários países anglófonos passou a se reunir semanalmente com Saunders, por videoconferência, para apurar quais profecias se concretizaram, quais fracassaram e quais eram vagas demais para que fosse possível enquadrá-las como verdadeiras ou falsas.

Resultado: os videntes acertaram, coletivamente, apenas 11% de seus prognósticos e erraram em 53% dos casos. As afirmações vagas, por sua vez, ocupam 19% do gráfico de pizza.

 

pizza

 

Por fim, 15% das falas acabaram se enquadrando em uma quarta classificação, que denominaremos “esperadas”. Isso significa que estavam tecnicamente corretas, mas são tão óbvias que não contam realmente como previsões. Por exemplo: pode-se afirmar com segurança absoluta que haverá um terremoto no Japão em 2030, pois 160 tremores de magnitude superior a 5.0 ocorrem no arquipélago todos os anos.

Um pequeno número de previsões, correspondente a 2% do total, não pôde ser verificado porque dizia respeito a acontecimentos que estavam fora do alcance dos responsáveis por apurar os desfechos. Saunders cita, como exemplo, um palpite publicado pela vidente de nome artístico Ann Ann na revista Woman's Day em 2003: “Nicole Kidman fará uma pequena cirurgia”. É impossível verificar a veracidade dessa alegação sem consultar a atriz.

Embora Saunders e seus colegas não possam garantir que listaram todas as previsões publicadas na imprensa australiana nos últimos 21 anos, o espaço amostral na casa dos milhares gera dados com grande significância estatística, e é pouco provável que a adição de algumas de dezenas de profecias à base dados alterasse de maneira sensível as porcentagens obtidas. De fato, ao analisar as duas décadas separadamente, a média de cada uma permanece em 11%:

 

medias

 

A pesquisa incluiu um grupo de controle: sete pessoas comuns, que não alegavam ter quaisquer capacidades sobrenaturais ou conhecimentos esotéricos, fizeram ao todo 162 previsões com base apenas no próprio bom senso. Resultado: a taxa de acerto desse grupo foi de 27,5%, quase três vezes maior que os 11% dos profissionais da divinação.

O próprio Saunders, porém, reforça que esse “controle” foi um exercício meramente ilustrativo, já que o tamanho da amostra é pequeno demais para gerar conclusões significativas do ponto de vista estatístico – e que os voluntários todos se identificavam como céticos racionalistas, uma posição intelectual que pode gerar um viés a favor de previsões mais assertivas e verificáveis.

Videntes “reais”, com frequência, fazem o oposto como uma estratégia deliberada: lançam mão de afirmações vagas para gerar ilusão de acerto em seus leitores. Por exemplo: dizer que “tempos difíceis se aproximam” em vez de “um avião vai cair em dezembro” garante que qualquer acontecimento triste e que se estende ao longo do tempo, da invasão da Ucrânia a um aumento nas taxas de divórcio, se enquadrará na fala. Isso explica por que 15% das 3.800 previsões acabaram consideradas vagas demais para uma avaliação objetiva.

 

Paradoxos

De modo a realmente realizar seu trabalho da maneira como alegam, videntes precisariam ter acesso a informações vindas do futuro. E o problema é que nada no Universo nem matéria, nem energia, nem informação, que são os ingredientes básicos do Cosmos jamais foi observado dando ré na seta do tempo. 

As equações da Relatividade Geral permitem descrever contextos em que a geometria do espaço-tempo autoriza viajar para o passado. O problema é que esses são cenários que se obtêm manipulando parâmetros matemáticos, mas para os quais jamais se obteve qualquer evidência empírica.

Videntes verdadeiros cairiam constantemente em paradoxos. Saunders exemplifica da seguinte maneira: imagine que a informação de um incêndio ocorrido no futuro alcance a mente de uma pessoa no presente. Essa pessoa sonha com a tragédia e informa o proprietário da casa que será queimada. O proprietário decide investigar e encontra um fio desencapado. Então, manda refazer a fiação, evitando o incêndio. Problema: se o incêndio não ocorre, a informação que voltou no tempo e gerou a previsão deixa de existir.

Com ou sem impossibilidades lógicas, o método científico não permite descartar a existência de um fenômeno qualquer apenas com base nos conhecimentos existentes hoje. Um vidente poderia alegar que a força misteriosa responsável por lhe dar vislumbres do porvir ainda não foi descrita pela Física, mas um dia será.

A pesquisa de Saunders, evidentemente, não é capaz de dizer nada sobre o que possibilitou os 11% de acertos. Na letra fria do método científico, nada garante que pelo menos um dos acertos não seja produto de um fenômeno sobrenatural genuíno.

Porém, a baixíssima taxa de acerto dos videntes é uma evidência bastante sólida a favor da hipótese de que os acertos são meramente aleatórios. E aqui entra o argumento do ônus da prova: não cabe ao cético demonstrar que um fenômeno (no caso, visões reais do futuro) não existe, já que para fazer isso seria preciso vasculhar todo o Universo seguidas vezes, numa espécie de jogo de esconde-esconde infinito. E se o único vidente legítimo que já existiu tiver vivido muito tempo atrás, numa galáxia muito distante?

Por isso, cabe ao vidente fornecer evidências de que suas capacidades existem. Se uma pessoa diz que tem um certo livro raro em sua biblioteca, espera-se que ela o apresente, não que desafie quem duvida disso a vasculhar exaustivamente as estantes até não achá-lo. Afinal, se um único místico fornecer um único conjunto de evidências irrefutável a favor de seus poderes, a ciência será obrigada a levar as alegações a sério e tentar replicar o efeito. Nada similar jamais ocorreu, mas isso não impede os místicos de insistirem em suas crenças.

Pergunto a Saunders se não desanimou diante da enormidade da tarefa: duas décadas de coleta para encontrar a mesma resistência de sempre ao revelar os dados. Ele explicou que, embora alguns fãs ferrenhos de adivinhação sejam incapazes de largar o osso mesmo diante das evidências, a maior parte dos leitores que consomem conteúdo “psíquico” fazem-no de maneira passiva, sem realmente refletir a respeito (nem checar o desfecho das previsões posteriormente). E esse público foi atingido com sucesso:

“O projeto foi bom, porque gerou visibilidade na mídia aqui na Austrália. Dei quase dez entrevistas em rádios, e a notícia apareceu na home de sites de jornais grandes. Funcionou em termos de levar a mensagem cética para a população”.

O problema, ressalta, é outro: prever o futuro é lucrativo, mesmo que todos os envolvidos saibam que não é possível. “Eu não acho que a TV, o rádio e as revistas vão parar de contratar videntes, porque esse é um modelo de negócio”.

Bruno Vaiano é jornalista

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