De acordo com os dicionários, é fácil definir autor: é aquele que cria, inventa, causa ou dá origem a alguma coisa, como uma obra literária, artística ou científica. Mas na prática, especialmente nesta última área, não é tarefa assim tão trivial. Principalmente quando envolve aspectos éticos, a questão da autoria de projetos, artigos e livros, por exemplo, é uma das mais controversas entre pesquisadores.
Tanto que um estudo, publicado na revista Plos One, mostrou que existe uma grande diversidade de visões e conceitos sobre autoria científica e que muitas vezes as decisões a respeito não seguem as normas usualmente aceitas pela comunidade acadêmica. De acordo com as responsáveis pelo trabalho, três pesquisadoras da Universidade de Split, na Croácia, cerca de 29% dos cientistas relataram experiência própria ou de colegas com uso indevido de critérios de autoria.
Justamente para evitar esse tipo de problema, o International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), criado em 1978 em Vancouver, Canadá, estabelece critérios comuns para a publicação de artigos científicos na área da saúde, mas que podem ser válidos para outras ciências. Em geral, define que cada autor, individualmente, deve ter participação suficiente no trabalho para se responsabilizar publicamente por todo seu conteúdo.
De acordo com o ICMJE, só pode assinar um artigo quem deu contribuições fundamentais para concepção, planejamento, análise ou interpretação dos dados, redação do texto ou sua revisão intelectual crítica, e tem responsabilidade pela aprovação final para publicação. Quem apenas conseguiu verba para a pesquisa ou participou da coleta de dados, por exemplo, não tem direito ao crédito.
Apesar desses critérios, as controvérsias estão longe de acabar. “O problema é complicado pelo fato de que as práticas variam grandemente conforme as disciplinas, países e até laboratórios”, diz o engenheiro eletrônico Renan Moritz Almeida, do programa de Engenharia Biomédica do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As regras mais utilizadas são as do ICMJE mesmo”.
Em relação ao artigo das pesquisadoras croatas, Almeida, que foi coordenador do braço brasileiro do projeto Authors without borders (“Autores sem fronteiras”), financiado pela National Science Foundation (NSF) dos Estados Unidos, e que visava justamente caracterizar essas práticas em vários países, um ponto interessante sobre o trabalho é que 29% dos pesquisadores testemunharam problemas com autoria científica. “Isso me surpreende – como um número baixo”, revela.
Segundo ele, isso provavelmente se deve ao fato de que as “regras consensuais” em uso não são do conhecimento de todos. “Por exemplo, pensando no caso brasileiro, é provável que ainda existam casos de pesquisadores recebendo crédito simplesmente por ocuparem chefia de laboratório”, imagina. “Ou a inclusão do nome de quem prestou zero colaboração em um trabalho. Ou alunos de mestrado e doutorado que não são primeiros autores nos trabalhos oriundos de suas dissertações e teses – como deveriam ser, conforme as normas – também não saberem que essa é a regra. Resolver isso já seria uma grande coisa.”
Definição incerta
De acordo com o biólogo Filipe Victoria, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), a definição de autoria de um artigo cientifico continua sendo muito controversa, em especial no Brasil, onde ainda se mantém uma antiga cultura da hierarquia. Aos poucos isso vem mudando, no entanto. Já há muitos grupos de pesquisa jovens que adotam critérios mais responsáveis e que garantem o crédito a quem é devido. “Esses critérios são conhecidos também como CRediT (Contributor Roles Taxonomy), que, além de facilitar a representação do mérito individual de cada coautor, acabam por reduzir disputas e facilitar as contribuições entre os autores de determinado trabalho”, explica.
Mas há ainda vários problemas de fundo ético na atribuição de autoria. A farmacêutica, Rosane Gomez, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, lembra que às vezes são considerados coautores alguns pesquisadores que são responsáveis ou proprietários de algum equipamento que foi utilizado para obter os resultados. “Mas a pessoa nem sabe do que se trata o artigo”, diz. “Também é complicado colocar alguém que fez a tradução ou a revisão do artigo. Isso não caracteriza autoria, mas serviço técnico, e o nome poderia aparecer nos agradecimentos”.
Além disso, alguns pesquisadores têm seus nomes colocados nos artigos e só descobrem depois, quando recebem mensagem de que ele foi aceito para publicação. Segundo Rosane, isso era mais comum antigamente. Hoje, as revistas mandam mensagem no momento que o artigo é enviado online. A revista pede ao autor para confirmar se é ou não coautor. Caso a pessoa se sinta desconfortável, pode pedir para retirar o nome. “Não tive essa experiência, pois não publico tanto assim, mas ouvi do professor Ivan Izquierdo [médico e neurocientista argentino naturalizado brasileiro – 1937-2021] que disse uma vez que todos queriam colocar o nome dele nos artigos como coautor e ele teve que, várias vezes, pedir ao editor para retirar, pois às vezes nem conhecia essas pessoas que estavam enviando o artigo”.
O fato de hoje a pesquisa científica não ser realizada apenas por uma pessoa e poucos colaboradores, mas por grandes equipes, também gera problemas. De acordo com o químico Luiz Carlos Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as cada vez mais frequentes colaborações entre grupos de pesquisas, de áreas diferentes e complementares, trazem uma série de questionamentos sobre a contribuição efetiva de cada coautor para um trabalho científico. “Ser coautor de uma publicação científica deve ser uma questão de reconhecimento sobre as contribuições individuais”, defende.
Mas como saber e avaliar a contribuição de um determinado pesquisador que assina um artigo junto com outros milhares de colegas? Recentemente, segundo as pesquisadores croatas, o PubMed – a maior base de dados bibliográficos em biomedicina – bateu um novo recorde no número de assinaturas em um artigo indexado: 2.080. Seus nomes ocuparam 165 linhas no site PubMed.
O artigo era da área de física de altas energias e esse número provavelmente não surpreendeu nenhum físico. É muito provável também que não tenha surpreendido os envolvidos em ensaios clínicos, onde o número dos que assinam um artigo também pode chegar a milhares. Como um artigo pode ter tantos autores? Há algum problema nisso? Qual a contribuição real de cada um deles?
O biólogo Rubens Pasa, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), confessa sua perplexidade diante do fenômeno. “Pode ser obtuso de minha parte, pela minha experiência, mas não consigo entender esse número”, admite. “Mesmo em trabalhos de colaboração internacional, em que cientistas de diversas partes do mundo contribuem, essa quantidade de autores é absurda. Só quem consegue responder sobre a real contribuição de cada um são eles próprios”.
Para o engenheiro eletrônico Edson Hirokazu Watanabe, colega de Almeida na COPPE-UFRJ, o primeiro problema nesse caso é definir o que seria um autor. “Se tomarmos o exemplo de um automóvel que está no mercado, quem seriam os seus criadores?”, indaga. “Uma vez ouvi um técnico da linha de montagem dizendo ‘eu faço esse carro’, quando passou um pela rua. Deve ter apertado alguns parafusos. Seria autor? Em geral, não, mas parece que algumas áreas colocam como se fosse. Em um trabalho científico, parece acontecer algo similar”.
Microcosmo
Por isso, Watanabe diz que a questão da autoria precisa de maior discussão e vê dois problemas. “O primeiro são os que colocam vários nomes para agradar aos amigos e aumentar a produção mutuamente (ainda não vi ninguém confessar que faz isso); e o segundo é por alguns nomes famosos para facilitar a aceitação (também não vi ninguém confessando isso)”, afirma. “Agora, quando essa prática ainda afeta a qualidade do artigo, deve haver alguma sanção”.
Mas também existem aqueles que, dado o contexto correto, não veem problema em artigos com número tão grande de autores. É o caso do físico Piotr Trzesniak, professor titular aposentado da Universidade Federal de Itajubá e secretário-geral da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC Brasil). Ele lembra que a física de altas energias, com seus potentes aceleradores de partículas, cria um microcosmo em que a temperatura é de milhões de milhões de graus Celsius. “Esse microcosmo existe por apenas uma fração de segundo, decai de modo extremamente rápido, e tudo que acontece nesse decaimento é informação relevante, não pode ser perdido”, explica.
Para evitar isso, são necessários centenas de detectores e computadores, gerando uma quantidade enorme de dados a analisar. “Isso exige mesmo muita gente”, diz. Fora os desenvolvedores de software, os engenheiros que projetam os aceleradores e as câmaras de colisão (onde o microcosmo é criado). “Então, são mesmo muitas pessoas envolvidas, sendo necessário um grande esforço coletivo para alcançar o avanço do conhecimento. Os textos nem são muito longos, mas a retaguarda que levou à descoberta envolve, sim, muita, muita gente”.
Diante desse quadro, Dias diz que é preciso seguir as melhores práticas éticas nas publicações científicas. “A inclusão de autores nas publicações deve considerar fatores como a contribuição intelectual efetiva no desenho do estudo, na realização dos experimentos e aquisição de dados, na análise dos resultados, na redação e correção de linguagem do manuscrito a ser submetido para publicação, no armazenamento dos dados, manuseio de equipamentos essenciais para coleta dos dados e interpretação de resultados, que não seja meramente um trabalho técnico, realização de experimentos adicionais solicitados pelos referees e editor”, defende.
Evanildo da Silveira é jornalista