Pandemia agrava crise de resistência a antimicrobianos

Questão de Fato
11 dez 2021
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Nos quase 100 anos desde que o primeiro antibiótico, a penicilina, foi isolado e passou a ser produzido em escala industrial – como parte do esforço aliado para vencer a 2ª Guerra Mundial –, esse tipo de medicamento provavelmente salvou mais vidas do que todos os métodos terapêuticos usados pela medicina nos milênios anteriores. Mas a eficácia dos antimicrobianos – que incluem, além dos antibióticos, os antiparasitários, os antivirais e os antifúngicos – pode ser um dos seus pontos fracos: porque funcionam bem, são muito usados e muitas vezes de forma inadequada, o que acaba levando ao surgimento de microrganismos resistentes.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 700 mil pessoas morrem a cada ano de infecções causadas por microrganismos resistentes, e que até 2050 haverá cerca de 10 milhões mortes, mais do que as provocadas pelo câncer. É um problema que foi agravado pela pandemia de COVID-19, devido ao uso inadequado de antimicrobianos. Três exemplos eloquentes são a cloroquina e a ivermectina, dois antiparasitários, e a azitromicina, um antibiótico, ou seja, antibacteriano, usados, sem base científica, para tratar uma doença viral, a COVID-19.

As consequências já podem ser notadas. Além de não ser eficaz contra a doença e até poder ser perigoso, o uso abusivo desses três medicamentos estimula o surgimento de microrganismos resistentes. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da OMS nas Américas, vários países da região, entre os quais Argentina, Uruguai, Equador, Guatemala e Paraguai, já notificaram aumento do número de casos de infecções resistentes a antimicrobianos.

 

Números em alta

No Brasil, de acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a detecção de bactérias resistentes triplicou durante a pandemia. Em 2019, o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) registrou pouco mais de mil amostras resistentes, número que passou de dois mil em 2020, primeiro ano da pandemia de COVID-19. Agora, de janeiro a outubro de 2021, elas saltaram para 3,7 mil.

Os dados são ainda mais preocupantes quando se leva em conta que o IOC-Fiocruz recebe amostras dos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) de diversos estados do Brasil, que registram as bactérias resistentes a antibióticos detectadas em casos de infecção hospitalar. Foram recebidas amostras dos estados do Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste e do Paraná, cujo Lacen atua como referência na Região Sul e parte do Centro-Oeste.

O surgimento de bactérias e outros microrganismos resistentes a tratamento é um fenômenos inevitável. Isso sempre ocorrerá quando se usam antimicrobianos. “A resistência bacteriana é um processo de seleção natural darwiniano em tempo real, porque acontece realmente em um período muito curto”, explica o infectologista Alexandre Zavascki, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor de infectologia da Faculdade de Medicina, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), referindo-se a bactérias, mas enunciando um princípio que também vale para parasitas, vírus e fungos.

Esse processo seleciona bactérias que têm genes modificados com mutações, ou que adquiriram outros, que conferem resistência aqueles antibióticos. “Ou seja, quando se usam esses medicamentos a tendência é eliminar aquelas que não têm esses genes, e passam a predominar as que têm os que conferem resistência”, diz Zavascki. “Isso independe de o uso ser abusivo ou não. Sua utilização cria o que chamamos de pressão seletiva”.

Durante a pandemia alguns fatores contribuíram para favorecer e intensificar essa pressão seletiva. Em nota divulgada em agosto, com o objetivo de chamar a atenção para a gravidade do problema e apontar as medidas para controlá-lo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enumera alguns.

Entre eles estão o aumento no número e no tempo de hospitalização das vítimas com COVID-19; pacientes graves com uso prolongado de dispositivos e assistência invasivos; redução do número de profissionais de saúde e aumento da carga de trabalho; e dificuldades para implementação de medidas de prevenção e controle de infecções (falta de recursos humanos, escassez e uso inadequado de Equipamentos de Proteção Individual - EPI).

 

Abusivo

A Anvisa cita ainda entre os fatores que, durante a pandemia, criaram condições que favorecem a disseminação de microrganismos resistentes nos serviços de saúde a utilização excessiva e empírica de antimicrobianos de amplo espectro, em larga escala, para tratamento de infecções secundárias, fúngicas ou bacterianas. Em relação a isso, a Opas relatou que durante a crise sanitária causada pela COVID-19, mais de 90% dos pacientes da doença hospitalizados foram tratados com esses medicamentos, embora apenas 7% realmente precisassem deles para conter infecções secundárias.

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Sobre essa questão, o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, da Fiocruz Brasília, e presidente da Anvisa de 2003 a 2005, lembra que nesta pandemia está sendo prescrito e estimulado no Brasil o uso de antimicrobianos de forma abusiva, com indicações que não correspondem às preconizadas para eles. “O aumento do uso desse tipo de medicamento, em especial sem orientação e controle, cria pressão sobre espécies de microrganismos, aumentando a chance de seleção e predomínio de cepas resistentes”, diz.

Henriques, que também é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), diz ainda que, além de atitudes isoladas de profissionais que não se guiam pela ciência, tem havido o estímulo à disseminação de tratamentos ineficazes por autoridades de Estado, começando pelo próprio presidente da República. “O fornecimento tem sido amplo, bem como o estímulo à automedicação, acompanhado de ampla divulgação de que essas drogas serviriam para tratamento precoce ou prevenção”, critica.

De acordo com a infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), consultora de biossegurança, controle de infecções e riscos da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), com a pandemia o consumo de antimicrobianos exacerbou-se, principalmente pelas dúvidas, tanto de médicos como de pacientes, e pela automedicação. “Os profissionais muitas vezes ficavam confusos para fazer diagnóstico diferencial, principalmente sabendo que já existem poucas drogas para tratar os microrganismos e, especialmente, pela falta de laboratórios de microbiologia em muitas cidades, em muitos locais, não só no Brasil, mas no mundo todo”, explica.

A nota da Anvisa vai ao encontro das afirmações de Sylvia. Apesar da natureza viral da COVID-19, estudos iniciais indicam que antibióticos têm sido prescritos para pacientes da doença, frequentemente diagnosticados com síndrome respiratória aguda grave, que recebem empiricamente tratamento antimicrobiano para pneumonia bacteriana. Os médicos fazem isso baseados na experiência prévia com a infecção pelo vírus da influenza, que é frequentemente associada à infecção bacteriana por Streptococcus pneumoniae e Staphylococcus aureus.

Além disso, continua a Anvisa, antimicrobianos têm sido prescritos inadvertidamente com a intenção de profilaxia, uma vez que infecções secundárias, bacterianas ou fúngicas, são as principais responsáveis pela alta mortalidade em pacientes com COVID-19. Entretanto, a prevalência de coinfecção bacteriana e infecção secundária em pacientes hospitalizados com COVID-19, de acordo com estudos já realizados, é relativamente baixa, 4,9% e 16%, respectivamente.

 

Causas

A farmacêutica Mirian Parente Monteiro, da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que há duas razões principais pelas quais pacientes com COVID-19 podem receber terapia antimicrobiana. “A primeira é porque os sintomas da doença podem se assemelhar aos da pneumonia bacteriana”, diz. “E os diagnósticos usados ​​para distinguir esse tipo daquela de origem viral podem ser ineficazes ou levar um tempo de horas ou dias, quando o tratamento deve ser imediato. Em segundo lugar, as pessoas com a doença podem adquirir coinfecções secundárias, que requerem tratamento antimicrobiano. Diversas revisões de evidências científicas sugerem, no entanto, que as taxas delas são baixas, menos de 20%”.

Além disso, a orientação de tratamento de cada hospital ou cidade, muitas vezes feita com base em dados de susceptibilidade antimicrobiana local, influencia a escolha de um clínico por um dado antimicrobiano para seus pacientes. “O tratamento empírico pretende cobrir uma ampla gama de organismos suspeitos”, explica Miriam. “Portanto, o conhecimento prévio do padrão de resistência antimicrobiana influenciará a escolha de antimicrobianos prescritos para aqueles com COVID-19”.

De acordo com ela, os médicos são, portanto, desafiados com duas prioridades contraditórias: prescrever um antimicrobiano de espectro amplo o suficiente para garantir que o microrganismo seja sensível, enquanto se evita o uso desnecessário desse tipo de medicamento, principalmente os de último recurso, quando a utilização de um dos mais comuns ou de espectro mais estreito seria suficiente. “O tratamento impróprio em qualquer direção tem sido associado a aumento do risco de morte”, diz.

À medida que novos estudos são realizados e as evidências sobre a falta de eficácia da cloroquina, ivermectina e azitromicina para o tratamento de COVID-19 aumentam, seu uso inicial agora foi desaconselhado e interrompido em alguns locais. “A desinformação, a falta de outro tratamento, aliada à gravidade da doença, e o desejo de experimentar diferentes caminhos terapêuticos têm levado, no entanto, a vários contextos onde ainda há a continuidade do uso desses medicamentos”, informa Miriam.

É o que vem ocorrendo, por exemplo, em muitos países africanos e em muitas partes do Brasil. “Apesar das recomendações da OMS, hidroxicloroquina, cloroquina e azitromicina ainda estavam sendo recomendadas para uso no verão de 2020 e podem ainda estar sendo usadas fora de indicação correta na África”, diz a infectologista. “Na Índia, parece ainda haver orientação para o uso de hidroxicloroquina como profilático para trabalhadores da saúde”.

 

Azitromicina

No caso específico dos antibióticos, o chefe da Infectologia da Unesp e consultor para COVID-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Médica Brasileira, Alexandre Barbosa, diz que eles foram usados incorretamente, o que levou ao surgimentos de bactérias resistentes. “A azitromicina, por exemplo, foi indevidamente utilizada para muitos pacientes com COVID-19 leve”, explica. “Mas não há indicação de antibióticos esses casos, que devem ser tratados ambulatorialmente”.

Em relação aos pacientes com COVID-19 grave, que precisam de internação, Barbosa diz que o erro foi terem sido tratados indevidamente com antibióticos de largo espectro, como as cefalosporinas. “O exemplo mais clássico é a Rocefin e outras cefalosporinas de terceira geração, que acabaram dando problemas em relação ao aumento de resistência antimicrobiana e hospitalar”, diz Barbosa.

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O mais grave em relação da azitromicina é que, como lembra Miriam, não há evidências relatadas de que tenha qualquer efeito contra a COVID‐19. “Seu uso irracional em pacientes com COVID-19 pode levar ao aumento da resistência bacteriana e eventos adversos”, alerta. “Seu uso generalizado leva a um dilema do risco de resistência bacteriana que não se limita aos indivíduos que a utilizam, e afeta toda comunidade em primeiro lugar. Além disso, o risco está realmente além da resistência apenas contra azitromicina, e se estende a outras classes de antibióticos, levando à resistência contra múltiplos fármacos”.

De acordo Miriam, o estresse pandêmico nos sistemas de saúde pode comprometer programas de administração de antibióticos projetados para ajudar hospitais a reduzirem os riscos de resistência a antimicrobianos. “Ela é atualmente considerada um dos maiores problemas para a saúde pública global”, diz. “Estima-se que aproximadamente quatro milhões de pessoas adquiram, anualmente, infecções associadas a cuidados de saúde na União Europeia, e que cerca de 37.000 indivíduos morrem em decorrência de infecções resistentes, adquiridas em ambientes hospitalares”.

 

Invasivos

O aumento dos números de internações durante a pandemia também tem papel importante no crescimento da resistência antimicrobiana. “Houve uma precarização das condições gerais dos hospitais”, explica Zavascki. “Isso ocorreu em relação à limpeza, a medidas de prevenção de infecção, como cuidado com os procedimentos invasivos (tubos, cateteres)  e, principalmente, com a higiene dos profissionais, em especial das mãos. Em um momento, havia um profissional cuidando de dois pacientes na emergência da COVID-19, por exemplo. Depois, com UTIs superlotadas, ele passou a cuidar de oito. Com isso, diminui seu tempo para medidas de prevenção”.

O infectologista Antonio Carlos Bandeira, da Universidade de Tecnologia e Ciências (UNI-FTC) de Salvador e membro diretor da SBI, acrescenta que a higienização das mãos do pessoal do atendimento médico é muito importante para evitar a transmissão de uma bactéria resistente de um paciente para outro. “Durante a pandemia se priorizou muito o uso de luva, de máscara e de avental”, diz. “A higienização das mãos acabou ficando em segundo plano. Isso facilitou a transmissão de patógenos multirresistentes de uma pessoa para outra na pandemia”.

Por fim, o uso de procedimentos invasivos, como tubo orotraqueal para fazer ventilação mecânica, sondas vesicais e cateteres venosos centrais, que invadem a corrente sanguínea, também facilitou o surgimento de resistência antimicrobiana durante a pandemia. “Isso levou os microrganismos resistentes para dentro do corpo dos pacientes”, explica Bandeira, que também é coordenador do Serviço de Infecção do Hospital Aeroporto, de Salvador. “Esse conjunto de fatores levou à emergência de bactérias multirresistentes”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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