O que aconteceu com a ética médica?

Questão de Fato
7 out 2021
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A se julgar pelo que muitos médicos têm feito no Brasil durante a pandemia, como defender publicamente e receitar medicamentos ineficazes e que podem até colocar em risco de vida os pacientes, ou usar pacientes como cobaias em experimentos não autorizados, pode-se concluir que há algum problema com o ensino de ética nas escolas de Medicina. A atitude do Conselho Federal de Medicina (CFM), de liberar a categoria para receitar cloroquina a pessoas com COVID-19, desde que “elucidando que não existe benefício comprovado no tratamento farmacológico dessa doença, e obtendo o consentimento livre e esclarecido” do doente, é outro sintoma de falha nas aulas da disciplina.

O médico Mauro Brandão, vice-diretor de Ensino do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), lembra que, de fato, entre os princípios do código de ética da profissão está a autonomia, que é o direito de decidir livremente sobre a conduta médica a ser adotada, ou quanto à participação ou não em uma pesquisa.

Mas também estão entre esses princípios a beneficência (obrigatoriedade de maximizar os possíveis benefícios, com o mínimo de riscos), a não maleficência (compromisso de realizar todos os esforços para não causar danos, e de adotar medidas que contribuam para minimizá-los ou preveni-los), e justiça (a garantia de igualdade de acesso aos melhores métodos diagnósticos e terapêuticos, disponíveis a todos os pacientes). Quando um ou todos eles não são seguidos, não há dúvida de que, no mínimo, a ética foi violada ou, no limite, um crime foi cometido.

No caso da autonomia do médico, tão defendida pelo CFM, Brandão diz que ela é fundamental e indispensável na busca do perfeito desempenho ético da Medicina, mas sem perder o objetivo maior da profissão. “O alvo de toda a atenção do profissional é a saúde do ser humano”, explica. “Quando o exercício da sua autonomia põe em risco a saúde e a vida do paciente, ela não se justifica e deve ser suprimida”.

Por isso, o uso de medicamentos sem eficácia comprovada não é exercício da autonomia, mas violação ao Código de Ética. “A diretriz emanada do CFM já foi criticada por muitos médicos e ex-conselheiros inclusive, tratando-se de clara deturpação do código que precisa ser revogada”, defende.

 

 

A regra é clara. Clara?

Mas ela ainda está valendo. No Parecer 04/2020, emitido em 16 de abril do ano passado, o Conselho recomenda à categoria “considerar o uso [de cloroquina e hidroxicloroquina] em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de COVID-19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.

O CFM acrescenta que nenhum profissional será punido por prescrever um tratamento sabidamente ineficaz e que pode ser perigoso. Diz o texto do parecer: “Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19”.

Para a médica de Família e Comunidade Magda Moura de Almeida Porto, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC) e vice-presidente Associação Cearense de Medicina de Família, no endosso da direção do CFM ao “tratamento precoce” houve manipulação político-ideológica do conceito de autonomia médica, associada ao interesse mercantil de empresas. “O princípio foi utilizado contraditoriamente, para constranger profissionais e arriscar a vida de pacientes”, explica. “Isso mostra uma grave crise, não somente no ensino da ética, mas na sua prática. É uma crise na categoria médica, na sua representatividade e no sistema de saúde brasileiro”.

O médico infectologista Marcus Lacerda, do Centro de Pesquisas Leônidas Maria Deane da Fiocruz Amazonas, também vê na atitude dos profissionais que defenderam o tal de “tratamento precoce” escolhas individuais e políticas. Para ele, alguém que continua prescrevendo uma medicação que todas as sociedades científicas e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomendam faz isso exclusivamente para demonstrar uma posição política. “Ela pode ser demonstrada fora do consultório, mas nunca dentro de uma relação de permanente confiança”, diz. “Paciente espera que o médico seja a pessoa que vai oferecer para ele aquilo que há de melhor e mais reconhecido na prática da Medicina. Eles não estão preparados para alguém que prescreve uma medicação porque ele quer apoiar um governo de extrema direita”.

Segundo Lacerda, não foram apenas os médicos que agiram por motivações políticas e ideológicas. O próprio CFM fez a mesma coisa. “É preciso lembrar que o Conselho frontalmente apoiou a eleição do presidente, porque ele se comprometeu publicamente a eliminar o programa Mais Médicos, que havia sido criado na gestão Dilma Rousseff”, explica. “O CFM nunca foi a favor de pessoas estrangeiras vindo exercer Medicina aqui e levantou isso como uma bandeira, por não entender que esses profissionais atuariam em áreas aonde os colegas brasileiros não têm interesse. Em função desse disso, o CFM agora tem retribuído de forma exemplar o apoio ao presidente, quando ele mais precisou”.

 

Ensino

Para muitos pesquisadores e professores em escolas de Medicina, essa postura de vários profissionais e do próprio órgão regulador indica falhas no ensino da ética para a categoria. E não é por culpa das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina.

De acordo com Magda, elas traçam o perfil que os formados devem ter: “Médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano”. Na teoria, perfeito.

Mas a prática tem deixado a desejar. O médico Flávio César de Sá, professor da Área de Ética e Saúde da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, diz que a formação da categoria atualmente é muito heterogênea. Alguns cursos e faculdades têm uma preocupação maior com a formação de uma identidade profissional mais ligada à questão ética e aos aspectos humanísticos da profissão, outras não. “Vivemos uma fase de transição”, diz.

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De acordo com ele, nos últimos 40 a 50 anos toda a educação na área de saúde privilegiou excessivamente o que se pode chamar de técnica. O médico bom era – e, de certa forma, ainda é – aquele que sabia tudo de ciência biomédica, que conhecia profundamente as questões ligadas à biologia, à anatomia e à bioquímica, por exemplo. “Entendíamos que o bom era aquele que era bom de diagnóstico e tratamento de doenças”, acrescenta Sá. “Ser médico é saber diagnosticar direito uma doença, e tratá-la adequadamente”.

Essa percepção nasceu do avanço extraordinário que houve na capacidade de diagnosticar e tratar doenças, impulsionado pelo surgimento de novas técnicas e equipamentos, como os aparelhos de raio-X, de ultrassom e, mais recentemente, de tomografia, por exemplo. Isso meio que ofuscou os demais cuidados, que ficaram em segundo plano. “A parte da formação do profissional sobre legislação, ética e humanismo era secundária”, diz Sá. “Os médicos não tiveram uma boa formação nesses campos e nem nas áreas da comunicação e da relação interpessoal”.

De acordo com Magda, muitas vezes a abordagem das questões éticas nos cursos se resume a algumas disciplinas ou situações simuladas, em um contexto completamente desvinculado da prática. “O ensino acaba por se restringir ao estudo de atos administrativos e normas jurídicas, sem promover a reflexão e a capacitação para o raciocínio crítico”, diz. “Para desenvolver a formação humanística do futuro médico, não é suficiente inserir no currículo temas relacionados às Humanidades, como se fossem disciplinas isoladas no curso. É preciso integrá-las na prática. A ética permeia toda a prática da medicina, que começa com o exemplo dos docentes, e a relação professor-aluno e professor-paciente é capaz de gerar impacto muito maior que a discussão meramente cognitiva de aspectos deontológicos”.

Para Lacerda, o ensino da ética nos cursos de medicina é muito individualizado pelos professores. Cada um tenta transmitir, dentro das suas disciplinas, aquilo que considera ético. Não há propriamente uma discussão aprofundada sobre a prática da ética no dia a dia, que envolve essa relação médico-paciente. “Existe uma disciplina no curso de Medicina, por exemplo, dentro da área da saúde que é da semiologia, onde a gente aprende a conversar com o paciente, extrair dele os sinais, os sintomas que ele sente, e examinar”, conta. “A ética médica acaba sendo, nesse processo todo, uma discussão periférica”.

Magda acrescenta que a grande questão da ética não é somente ser ensinada. Tem que ser aplicada. Precisa transcender os livros e chegar aos processos de trabalho e relações na prática médica. “Todos nós sofremos influências do ambiente em que vivemos, sejam elas históricas, culturais ou sociais”, explica. “Para construirmos uma reflexão bioética adequada, devemos primeiramente nos autoconhecer e entender essas influências”.

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Ela diz que esse é um processo que deve continuar mesmo depois da graduação. Os dilemas continuam a surgir, e a médica e o médico precisarão refletir e escolher que atitude tomar. “Além disso, o ensino da ética é dinâmico, não estático”, diz. “O paternalismo hipocrático e o cartesianismo têm um papel fundamental na discussão da formação médica, porém trazem conceitos que não se ajustam mais à sociedade contemporânea. Precisamos superar esse modelo”.

Para atingir esse objetivo, Sá propõe que a ética seja ensinada durante todo o curso e não somente em um ou dois anos. “A maioria das escolas oferece apenas um treinamento no código de ética médica”, explica. “A preocupação é apenas com a ética profissional, que é uma questão importante e relevante, mas o comportamento do médico vai muito além do código da categoria, e é isso que falta. Assim como discutir o compromisso com o paciente, responsabilização, até mesmo a legislação que regula a profissão. Tem muito colega que não a conhece”.

 

Todo o tempo

Por isso, Sá e colegas da FCM da Unicamp vinham lutando, havia cerca de 20 anos, para que a ética fosse ensinada nos seis anos do curso de Medicina, e não apenas no quarto. Recentemente conseguiram. Eles foram ampliando aos poucos o leque de temas abordados na disciplina. Hoje, tratam no primeiro ano do curso da ética de forma mais geral, discutindo grandes temas relativos a ela, que envolvem a população e o médico, falando de discriminação, racismo, homofobia, tolerância, desigualdade. No segundo ano, os professores começam a abordar questões mais próprias ligadas a saúde, a bioética. São discutidos temas como morte, criminalidade, aborto e genocídio, por exemplo.

De acordo com Sá, é uma visão muito mais aberta do que é ética médica, e não só sobre o código da categoria. “Obviamente, falamos também de ética em pesquisa, mostrando a legislação existente, como é feita, como se faz um projeto científico e quais são os aspectos que têm que ser obrigatoriamente observados”, conta. “Vamos construindo um conhecimento que esperamos que ajude o desenvolvimento de uma personalidade profissional, para que o aluno, quando chegue no quinto e sexto ano e comece a praticar, tenha isso incorporado.”

Lacerda, por sua vez, já está pensando no futuro. Para ele, os cursos de Medicina vão precisar repensar muita coisa depois da pandemia. “Vamos ter que discutir os casos que aconteceram durante a sua ocorrência”, diz. “Essa reflexão deve, certamente, gerar algum impacto positivo, imagino eu, para os futuros médicos. Ficou muito claro que não temos um código propriamente de ética, que seja discutido com o aluno de medicina. Ele existe no Conselho Federal de Medicina, está disponível para quem quiser ler, mas não é amplamente debatido”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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