O engessamento burocrático da universidade brasileira

Questão de Fato
28 set 2021
coruja

 

Burocráticas, engessadas, com ensino conservador e com uma extensão que existe, principalmente, para suprir carências sociais, ocupando vácuos deixados por outras instâncias estatais. Esse é um retrato ligeiro das universidades públicas do Brasil, mas que não está muito longe da realidade. Por isso, muitos pesquisadores defendem mudanças no modelo, em especial no ensino e na extensão e no papel de cada instituição, conforme sua vocação, público-alvo e fatores regionais.

Um deles é o filósofo Ivan Domingues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que tem estudado e debatido o tema na sua e em outras instituições e em eventos que promove e de que participa. Seu foco é o presente e o passado das universidades, com o objetivo de tentar compreender novos caminhos para elas. De acordo com ele, as universidades, principalmente as brasileiras, “estão massificadas, burocráticas e confusas, com uma carga de atividades que deixa os docentes extenuados e distantes do ensino inovador e da pesquisa avançada”.

Segundo Domingues, sintetizando suas posições, a graduação é engessada e cartorial, tem muita aula – é muito “aulista” – e pouca pesquisa. No caso da inovação, o tripé que ela deveria formar com o ensino e a pesquisa não se consolidou do Brasil, e a extensão “tem um sentido diferente do que tem em outros países, inclusive para suprir certas carências sociais”.

O físico Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pensa de maneira semelhante e concorda que a graduação brasileira é completamente “aulista”. “É como se os estudantes só aprendessem a partir do que falam seus mestres iluminados”, critica. “Isso vem de uma concepção equivocada do que é formação superior, ou do que é uma universidade. A sociedade brasileira ainda acha que ‘saber’ é memorizar”.

Ressalvando que há 198 universidades no país, entre públicas e privadas, o que deixa o sistema muito heterogêneo, a cientista social Helena Sampaio, da Faculdade de Educação, da mesma universidade, tem avaliação semelhante. Para ela, que é mestre em Antropologia Social e doutora em Ciência Política, os cursos de graduação – em universidades e em qualquer outro tipo de instituição de ensino superior – estão muito baseados no modelo de “aula professor/alunos”. “Os estudantes têm que cumprir uma quantidade enorme de créditos, ficar horas e horas na semana em sala de aula e por aí vai”, critica.

 

Olhar cartorial 

Para Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC), doutorando na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o ensino é um dos problemas mais sérios das universidades brasileiras. A área tem um engessamento natural, porque o país adotou um modelo de criar legislação para categorias profissionais específicas. “Não só aquelas mais de risco, como medicina e engenharia, mas também física, por exemplo”, explica ele, que estuda a governança de instituições de ensino superior público no Brasil. “É algo que não faz o menor sentido. Parte do engessamento profissional está relacionada a isso”.

Outra parte relaciona-se à cultura acadêmica brasileira que, nas universidades públicas, é voltada a formar mais acadêmicos e pouco olha para o mercado profissional. “É um tipo de formação que na maioria das vezes é boa”, reconhece Almeida. “Mas o direcionamento é muito voltado para o lado acadêmico e pouco para o de capacitação técnica”. Por conta disso, os profissionais formados, quando vão para o mercado de trabalho, precisam de um tempo de adaptação maior do que a média mundial.

Em relação à pesquisa, Almeida diz que é o que o Brasil tem de melhor nas universidades públicas. “Fizemos relativamente bem e em volume de publicação estamos bem colocados no ranking mundial”, explica. “O problema é que o impacto não acompanha essa quantidade. Não é algo que dê para ser considerado de primeira linha no mundo. Não estamos entre os 10 ou 15 melhores países em impacto de publicação científica”. Além disso, diz, embora haja polos de excelência, com publicações em revistas internacionais de grande impacto, a capacidade intelectual é pouco transformada em política pública, e não há integração com o processo produtivo.

Um problema mais recente que as pesquisas vêm enfrentando no país é o corte de verbas realizado pelo atual governo. “Estamos em uma fase crítica de total falta de investimentos”, lamenta a engenheira química Simone Hickmann Flôres, diretora do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos (ICTA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Temos ótimos pesquisadores, que se esforçam para continuarem seus trabalhos, muitas vezes com verba do próprio bolso. Pesquisas de ponta poderiam ser realizadas, mas a maioria dos cientistas é desestimulada pela falta de fomento, e acabamos perdendo os melhores para outros países que valorizam a ciência”.

Para o biólogo Filipe Victoria, do campus de São Gabriel (RS) da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), essa fuga de cérebros é uma das piores consequências dos cortes de recursos para a ciência. Os que têm mais destaque na comunidade internacional estão recebendo e aceitando propostas para ocupar posições em instituições de pesquisa no exterior. “Além da perda para o país, é triste ver colegas com tanto talento desistirem de suas atividades aqui, por não encontrarem as condições para continuar seu trabalho”, diz.

 

Inovação, extensão

Assim como no ensino e na pesquisa, as universidades brasileiras apresentam alguns problemas na área de inovação. Para Domingues, o tripé ensino-pesquisa-inovação nunca se consolidou. “Não se trata de resgatar alguma coisa, uma ideia original de universidade”, disse ele, numa entrevista. “O tempo da universidade medieval já passou. Significa, no meu modo de ver, relançar o projeto da instituição neo-humboldtiana, baseada no tripé”.

De forma sucinta, o modelo humboldtiano de universidade, proposto pelo geógrafo, naturalista e explorador Alexander von Humboldt (1769-1859), prega a unidade entre o ensino e pesquisa, a interdisciplinaridade, a autonomia e a liberdade da administração da instituição e da ciência que ela produz.

Domingues explicou que usou o prefixo “neo” por conta das mudanças. De acordo com ele, a fundação do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) foi um marco, por causa da introdução da tecnologia. “Se com Humboldt há a associação entre humanidades e ciência, no MIT as engenharias e a tecnologia passam a ocupar lugar central na universidade”, explicou, na mesma entrevista. “A agenda da inovação tecnológica ganha relevância em muitas instituições, e um novo modelo passa a imperar”.

Há quem pense diferente. O cientista social e doutor em Sociologia Alípio de Sousa Filho, do Instituto Humanitas de Estudos Integrados da Universidade Federal do Grande do Norte (UFRN), por exemplo, critica o excesso de valorização da inovação. “Eis uma palavra que hoje se usa como varinha de condão, com a pretensão de diversas mágicas em diversos ambientes e instituições”, critica. “A universidade também passou a ser cobrada de inovação, e levou para seu interior o termo”.

Mas por que razão inovações devem interessar, ele indaga. “Apenas porque a ‘novidade’ (da inovação) chega como uma promessa de ‘solução’ de problemas ou de ‘melhoria’ do que não está a contento?”, questiona. “O que assegura que a novidade que se pretende introduzir seja realmente a que é adequada? Um exame mais crítico do discurso da inovação deixa ver que se trata muito mais da tentativa de emprego de tecnologias de informática (e consequente venda de seus artefatos) numa época dominada pela ilusão dos benefícios das máquinas em substituição ao trabalho de pessoas, o que é um desastre em educação”.

Por fim, a extensão também não está bem das pernas na academia brasileira. De acordo com Domingues, há nela muito “business”, assistência e prestação de serviço. Um exemplo deste último caso são os hospitais universitários, que ultrapassam a dimensão de hospital-escola e “passam a prestar um serviço à comunidade, que adquire uma dinâmica própria e ocupa o primeiro plano”.

Tessler vai na mesma linha. Para ele, a extensão sempre foi o patinho feio nas universidades intensivas em pesquisa no Brasil. “É muito confundida com assistencialismo”, explica. “Em instituições americanas e canadenses, atividades de extensão envolvem buscar soluções inovadoras para problemas do mundo. Pode até envolver trabalho solidário, mas sempre focado em inovação de verdade. Coisas disruptivas”.

 

Diversidade

Diante desse cenário, muitos pesquisadores veem necessidade de mudanças. Para Helena, da Unicamp, por exemplo, a existência de um modelo único de universidade, orientada pelo tripé ensino-pesquisa-extensão, já demonstrou ser um equívoco. “Primeiro, porque impede reconhecer que o nosso sistema de ensino superior tem uma diversidade muito grande de instituições, e que mesmo entre as reconhecidas como universidades há muita heterogeneidade”, explica.

Mas como existe esse modelo único, acrescenta, todas acabam sendo avaliadas segundo o seu grau – maior ou menor – de adequação a ele, acarretando uma grande estratificação. “No topo, uma meia dúzia, e o ‘resto’”, resume. “É isso que precisamos superar. As universidades podem ser diversas, ter missões diferentes, o que se pode exigir é que façam com muita qualidade o que elas se propõem desenvolver”.

O glaciólogo Jefferson Cardia Simões, vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também defende um modelo em que diferentes universidades tenham diferentes papéis. “Ora por discurso corporativista, ora por indecisão política, não se discute que elas devem ter diferentes papéis, conforme sua vocação, público-alvo, fatores regionais”, explica. “Ou seja, temos que ter instituições de pesquisa (30% de ensino) e outras de ensino (60% a 70% do tempo dedicado a essa atividade). Nem todos têm vocação para a pesquisa, nem todos para ensino, nem todos para extensão. Alguns levantamentos mostram que temos menos do que 20 universidades de pesquisa no Brasil, mas todas dizem que a praticam como atividade principal. Isso é interessante? Creio que não”.

Nem todos têm esperança de que a situação atual vá mudar – pelo menos no curto prazo. Para Tessler, por exemplo, o modelo de universidade depende do meio em que ela está inserida. Ou seja, não se pode esperar uma instituição muito diferente da sociedade da qual ela faz parte. De acordo com ele, o Brasil é uma sociedade de títulos, atualmente conferidos pelas universidades. “É um país de desigualdades, com uma elite que faz um enorme esforço para manter as coisas como estão”, diz.

Por isso, todas as iniciativas de implantar projetos realmente inovadores foram engolidas ou banalizadas. “Na minha universidade ideal, as pessoas teriam uma formação básica interdisciplinar e sólida”, defende. “Aprenderiam a conviver com a diferença. Passariam o menor tempo possível em salas de aula e seriam estimuladas a encontrar soluções criativas para problemas reais”. Para quando é isso, ninguém sabe.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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