Com COVID-19, outras doenças acabam "deixadas para trás"

Questão de Fato
6 mai 2021
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Aedes

 

Os estragos da “gripezinha” COVID-19 poderão ser maiores do que os causados diretamente por ela própria – como os mais de três milhões de mortos no mundo – e vão perdurar por muito tempo após o fim da pandemia. O esforço para combater o novo coronavírus levou grande parte dos serviços de saúde de vários países a deixar em segundo plano a luta contra outras doenças infecciosas e crônicas, reduzindo os atendimentos ambulatoriais, o acompanhamento de pacientes e as campanhas de vacinação.

No Brasil a situação não é diferente, e pode ser até pior do que em outros países. “Vivemos uma crise sanitária de proporções assustadoras em todo o mundo”, lembra o médico e doutor em Epidemiologia Paulo Petry, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).“No Brasil, tanto a rede privada quanto o Sistema Único de Saúde (SUS) têm tentado atender dignamente à população, mas, por falta de leitos, insumos e pessoal, foi preciso dedicar todos os esforços à COVID-19. Dessa forma, muitos exames de diagnóstico, intervenções ambulatoriais e cirurgias eletivas foram adiados”.

De acordo com ele, alguns desses procedimentos são efetivamente adiáveis, sem qualquer repercussão. Muitos outros, no entanto, poderão implicar o agravamento de várias doenças, com consequências negativas para os pacientes, bem como para o próprio sistema de saúde.Ou seja, vivemos dois fenômenos”, diz Petry. “Os cancelamentos ou adiamentos de procedimentos não urgentes, como exames, consultas e cirurgias; e a recusa de pacientes com outras doenças ou sintomas em procurar os hospitais ou clínicas, por medo de pegar o coronavírus”.

O pesquisador e doutor em Farmácia Jadel Kratz, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi), uma organização de P&D sem fins lucrativos, lembra de outros aspectos do problema. “A pandemia também trouxe impactos econômicos importantes, levando muitas pessoas de volta para a pobreza extrema e desestabilizando as cadeias de suprimento globais, causando desabastecimento de recursos, e assim contribuindo ainda mais para o impacto global das doenças no mundo”, explica.

 

Foco da pesquisa

Da mesma forma, acrescenta ele, boa parte dos investimentos em pesquisa ficou concentrada em desenvolver novas ferramentas para diagnosticar, prevenir e tratar a COVID-19. Enquanto os estudos envolvendo outras doenças, que também têm impacto importante de saúde pública, possivelmente terão seus recursos drasticamente reduzidos. É o caso das tropicais negligenciadas, que afetam as populações mais vulneráveis principalmente no Brasil e na América Latina, e que já tinham pouca atenção dos grandes financiadores.

Além da diminuição dos investimentos, as próprias condições para a condução de pesquisas foram afetadas. “Por exemplo, os laboratórios envolvidos em projetos de descoberta de medicamentos para a doença de Chagas e leishmaniose com a DNDi tiveram que ficar por vários meses fechados”, conta Kratz. “Importantes estudos de mapeamento de casos e desenvolvimento de tratamentos tiveram (e ainda têm) atrasos importantes. Os hospitais onde são desenvolvidos os estudos clínicos estão muitas vezes completamente voltados para a COVID-19 e se viram obrigados a redirecionar todos os recursos para o atendimento emergencial ou, em alguns casos, para realizar os testes para essa doença”.

Para o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, coordenador do Núcleo de Epidemiologia e Vigilância em Saúde da Fiocruz Brasília, unidade da Fundação Oswaldo Cruz, entre as consequências desse quadro podem-se citar a diminuição das coberturas vacinais, o agravamento de doenças crônicas e atrasos de tratamento que podem levar à perda de oportunidade de cura, ou a sequelas. “Além disso, em muitos casos, a falta de atendimento pode aumentar ou prolongar sofrimento que poderia ser reduzido com tratamento adequado, em especial para problemas que causam dor, como os reumatológicos, neurológicos ou digestivos”, diz.

 

Ações prejudicadas

O médico epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), cita, entre as doenças mais afetadas, aquelas que dependem de ação sistemática, que impliquem em contato com serviços de saúde ou atividades de campo (visitas domiciliares ou ação de controle de vetores). “Assim, doenças como tuberculose e hanseníase, que têm tratamento longo e necessitam de acompanhamento sistemático, tendem a ser muito afetadas”, diz.

O câncer é outro exemplo. “Dados da Sociedade Brasileira de Patologia mostram uma redução bastante significativa do número de biópsias realizadas”, diz Petry. “Desde o início da pandemia, estima-se que milhares de pessoas deixaram de ser diagnosticadas com a doença. Outros, já com o tumor diagnosticado, foram obrigados a suspender ou adiar seus tratamentos. Suspeita-se que aproximadamente 70% das cirurgias foram postergadas.”

Da mesma forma, doenças crônicas como hipertensão arterial e diabetes, que necessitam de avaliação periódica, também podem ser atingidas, levando à piora desses quadros. “Há ainda as enfermidades transmitidas por insetos (vetores), como malária e dengue, devido à diminuição das ações externas de controle de vetores”, acrescenta. “Por fim, a cobertura vacinal e a atenção pré-natal podem ser prejudicadas pela redução do contato com os serviços”.

Entre as doenças citadas por Werneck, a tuberculose – a maior causa de morte entre todas as doenças infecciosas, principalmente entre os pobres e marginalizadas – é um dos casos mais emblemáticos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, em todo o mundo, 21% menos gente recebeu tratamento para ela em 2020 em relação a 2019, o que significa queda de 1,4 milhão de pessoas. A estimativa é de que mais 500.000 pessoas morreram do mal.

No Brasil, segundo Ministério da Saúde, os dados registrados em 2020 demonstram um comportamento diferente em relação à série histórica da doença, com uma queda acentuada da incidência e uma piora de indicadores tais como aumento do abandono, queda das notificações e redução no consumo de cartuchos de teste molecular para tuberculose (TRM-TB) – 44% em maio, na comparação com o mesmo mês de 2019.

Em números, no ano passado, houve queda de 16% na notificação de casos novos de tuberculose em comparação com 2019. Essa redução foi mais pronunciada a partir do mês de abril, sendo que em maio verificou-se a maior variação do período (-34%) em relação aos casos notificados.

 

Sarampo

Em relação à vacinação, uma das doenças mais afetadas foi o sarampo. Apesar de ter atingido o pico de 870 mil casos e 210 mortos em 2019 em todo o mundo, em março de 2020 a OMS recomendou aos países que suspendessem temporariamente todas as campanhas de vacinação em massa. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a situação vinha bem até 2017. Os últimos casos haviam sido registrados em 2015 e, em 2016, o país recebeu certificação da eliminação do vírus.

O sarampo voltou com tudo, no entanto, em 2018, quando foram confirmados 10.346 casos da doença. Em 2019, após um ano de franca circulação do vírus, o país perdeu a certificação de país livre dele. Também foi a partir de então que começaram a surgir novos surtos, com a confirmação de 20.901 casos. Em 2020 foram registrados 8.448 infectados, e em 2021, até o dia 6 de março, 235.

O surto mais intenso neste ano, até agora, ocorreu no Amapá, com 224 (95,3% do total do país) casos confirmados de sarampo, em 10 municípios, e a maior incidência (36,36 casos por 100 mil habitantes), dentre as unidades da Federação em que a doença foi registrada. Para comparar, entre todos os locais com ocorrência de casos no Brasil, o coeficiente de incidência é de 1,24 por 100 mil habitantes.

Apesar da recomendação da OMS de interromper a vacinação, o número de casos no mundo foi surpreendentemente baixo em 2020, tendo caído para 89 mil. Há algumas explicações possíveis para isso, citadas pela revista Nature. Uma delas é que a vigilância prejudicada pode ter levado a subnotificações. Outra pode ser consequência do que ocorreu em 2019. Com tantas crianças contaminadas naquele ano, os níveis de imunidade natural estão altos.

Mas o maior fator, segundo a Nature, é que, de acordo com os cientistas que estudam sarampo, os confinamentos, as restrições de viagens e o distanciamento físico reduziram o contato populacional que impulsiona a propagação do vírus do sarampo. Eles temem, no entanto, que seja uma calmaria antes da tempestade. As campanhas atrasadas deixaram um grupo enorme e crescente de crianças suscetível. Quando o vírus encontrá-las, à medida que as restrições da COVID-19 permitirem, ele ressurgirá com força entre a população desprotegida.

 

Legado

Embora a COVID-19 tenha causado um grande número de mortes e danos enormes, seu enfrentamento pode deixar um legado positivo, com lições e ensinamentos, principalmente em nível mundial. “No Brasil, talvez seja mais limitado, no entanto”, lamenta Werneck. “Nosso enfrentamento foi muito precário, em decorrência fundamentalmente de uma inação deliberada do governo federal. Mas em vários outros países, houve uma estruturação de programas de vigilância epidemiológica para o enfrentamento de síndromes respiratórias, que servirão de base para a luta contra futuras epidemias ou pandemias dessas doenças.”

Nesse caso, ele destaca as inovações nas ações de monitoramento de contatos, como a ideia de rastreamento retroativo, implementado no Japão, e o reconhecimento da necessidade de ampliação da estrutura de sequenciamento de DNA, visando à vigilância genômica. Também há, de acordo com Werneck, experiências muito importantes de incorporação de ações na atenção primária em saúde de ferramentas de telessaúde, que podem e devem ser maximizadas, mesmo fora da epidemia.

No campo da pesquisa científica, ele diz que houve um grande avanço e muitas conquistas, com o aumento da colaboração internacional e “um rápido desenvolvimento de técnicas, produtos e processos que poderão também contribuir para o desenvolvimento de vacinas, medicamentos e testes diagnósticos inovadores para outras doenças”.

Para Petry, o grande ensinamento “desta terrível pandemia é o quanto negligenciamos nosso SUS e como deixamos de investir em ciência e tecnologia”.

“Embora de forma trágica, o novo coronavírus foi competente em escancarar algumas situações, dentre as quais, duas se destacam”, diz. “A primeira lição é o reconhecimento do valor do SUS, que alicerçado nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, evidencia a questão da saúde como um direito de cidadania. Infelizmente, estamos pagando com vidas a imprevidência do descaso a um dos sistemas de atenção à saúde mais bem arquitetados do mundo”.

A segunda lição, acrescenta ele, é “o verdadeiro crime representado pela falta de investimento em pesquisas, ciência, tecnologia e inovação, que têm seu futuro ameaçado no Brasil, além das repetidas tentativas de sucateamento das universidades públicas, que respondem por mais de 90% da produção científica do país. Por fim, o vírus descortinou também a leviandade da alocação de recursos para construção de estádios em cidades que hoje choram milhares de mortes por falta leitos, insumos hospitalares e profissionais bem equipados”, diz.

Mas dada disso muda a face da tragédia. “Entre tantos possíveis legados positivos, é preciso também salientar o legado ‘negativo’, decorrente do enfraquecimento das instituições multilaterais, disputas geopolíticas, aumento da xenofobia e populismo e o advento, com maior força, do papel das redes de desinformação e o descrédito de vacinas e do próprio conhecimento científico”, diz Petry. “Infelizmente, o Brasil é exemplo mundial de como não se deve enfrentar uma pandemia, mesmo tendo todas as condições estruturais, técnicas e científicas para adequadamente fazer isso”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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