Pesquisadores temem interferência em estudos sobre famílias

Questão de Fato
15 abr 2021
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família feliz

 

No dia 7 de janeiro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) lançou o Edital 02/2021 “Pesquisas em Família e Políticas no Brasil”, para o qual serão destinados R$ 2.416.800,00 para financiar até 50 bolsas de mestrado e pós-doutorado. Até aí tudo bem, pois este é o papel da Capes. O problema é que ele não agradou à comunidade científica, que vê na chamada um viés político conservador na percepção da família, limitada ao modelo tradicional (pai, mãe, ou um ou outro, e filhos), que não reflete os diversos arranjos familiares existentes na vida real. Por isso, especialistas temem que o edital coloque em risco as pesquisas científicas sobre o tema.

Do total da Edital, cujas inscrições se encerraram em 15 de março, R$ 1.058.400,00 serão investidos pela Capes e R$ 1.358.400,00 pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), por meio da Secretaria Nacional da Família (SNF). São seis áreas temáticas contempladas pela chamada: Políticas Familiares, Dinâmica Demográfica e Família, Equilíbrio Trabalho-Família, Tecnologia e Relações Familiares, Saúde Mental nas Relações Familiares, e Projeção Econômica das Famílias. Segundo a Capes, será aprovado um projeto em cada, “após análises técnica, de mérito e de priorização”.

A comunidade científica teme, no entanto, o viés político e ideológico implícito no edital. A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Anna Paula Uziel, afirma que esse viés aparece de forma clara em uma live da titular do MMFDH com a deputada Bia Kicis (PSL-DF), intitulada “Ministra Damares e a nova política de bolsas de pesquisa”. “Nela, é possível ouvir a ministra determinar sua opção pela valorização de uma concepção conservadora de família, afirmando ser um projeto de governo, que pretende transformar em um projeto de Estado, o que atenta contra um princípio fundamental que nos rege, que é o Estado Democrático de Direito”, critica.

Por isso, Anna diz que a chamada da Capes não representa propriamente um edital para fomento de pesquisa. “O formato e a redação sugerem ser uma busca de legitimação de assessoria para um trabalho que deve ser do governo”, critica. “Os dados que se pretendem gerar são comumente fornecidos pela PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE], pelo próprio IBGE e pelo IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]”.

Anna diz que os órgãos que normalmente geram esses dados têm uma expertise única. “Não são substituíveis”, diz. “E nota-se um movimento do governo federal no sentido de desacreditá-los. Um exemplo é o que tem sido feito com o censo”. 

Outro aspecto preocupa a pesquisadora da UERJ. “Com uma capa acadêmica, embora não acredite na ciência – frase difícil de entender, porque não se trata de uma questão de fé –, o governo federal busca a legitimidade de um órgão como a Capes para distribuir dinheiro público a fim de fomentar uma política traçada previamente, decidida no interior de uma gestão que não se sente obrigada a cumprir a legislação”.

A coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relação de Gênero e Sexualidade (LEFAM) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Belinda Mandelbaum, por sua vez, observa que o edital implica uma parceria entre a Capes e o MMFDH, o que por si só, segundo ela, traz à tona uma questão estrutural preocupante. “Isso porque sabemos que o Ministério faz parte do núcleo ideológico do governo federal e tem tido claramente, por meio da ministra Damares, posições bastante tendenciosas, no sentido de uma concepção ultraconservadora da família, que de alguma maneira exclui a diversidade e pluralidade de arranjos familiares no Brasil, que estariam fora desse modelo apregoado por sua pasta”, explica.

Para ela, é claro, então, que, se uma parte significativa das verbas vem do MMFDH, pode-se ficar bastante preocupado sobre que tipo de pesquisa vai ser financiada e que tipo de seleção vai ser feita entre os projetos apresentados. “Outra preocupação também é sobre quais os usos vão ser feitos dos resultados dessas pesquisas”, diz. “Tudo isso deve deixar a comunidade científica muito atenta”.

Na avaliação de Miriam Pillar Grossi, co-coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o edital da Capes é extremamente fechado em alguns temas, e traz em sua formulação um direcionamento dos dados a serem produzidos, algo que não deveria pautar chamadas de apoio à pesquisa científica. “Em princípio, um edital específico sobre a temática das famílias brasileiras, visando o apoio teórico à formulação de políticas públicas na área, é muito bem-vindo”, diz. “Mas, tal como formulado, ele parece desconsiderar esse campo de estudos, que tem uma longa tradição”.

Como exemplo, ela cita os estudos do Grupo de Trabalho sobre Famílias no Brasil, que desde o início dos anos 1980, e por mais de 20 anos, se reunia nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). “Desse grupo se consolidaram pesquisas que levaram à formulação de uma série de conceitos e teorias sobre as famílias brasileiras”, conta.

É desse trabalho, segundo Miriam, que surgiu o conceito de ‘mulheres chefes de família’, que hoje é central para as principais políticas públicas sociais brasileiras, como é o caso do Bolsa Família. “Hoje se sabe que a maioria das famílias do país tem mulheres como provedoras e responsáveis por crianças e idosos, mas isto não era entendido assim até o censo de 1980, no qual se esperava que houvesse um homem ‘chefe da família’”, diz. 

Os estudos sobre famílias de pessoas LGBT, que hoje são conhecidas como “homoparentais”, são mais exemplos. “Além disso, são importantes os estudos no campo das violências contra meninas e crianças que têm revelado que, por detrás da ‘tradicional família brasileira’, há parentes (em geral homens) estupradores e violentadores”, acrescenta. “Os conceitos e teorias formulados nestas pesquisas não aparecem no edital”.

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A pesquisadora Mariana Prioli Cordeiro aponta outros problemas no edital da Capes, entre eles a “culpabilização” e a “patologização” das famílias, ao sugerir que podem ser as responsáveis por uma série de questões que, na verdade, são bastante complexas e envolvem toda a sociedade. “Um dos eixos da chamada relacionados à saúde mental é exemplar disso”, afirma. “O edital diz que contemplará estudos que investiguem ‘potenciais relações da ocorrência de práticas de automutilação e suicídio com outros aspectos demográficos, tais como: composição da família, quantidade de membros da unidade familiar, renda familiar, distribuição no território (regional, rural/urbano) e identificação do(s) responsável(is) pela formação dos filhos’”.

Mas em momento algum, diz Mariana, é considerada a possibilidade de que fatores que extrapolem o domicílio – como a pobreza, o desemprego, a falta de acesso à educação formal, a escassez de equipamentos culturais e esportivos, a violência urbana, por exemplo – tenham o potencial de contribuir para essas formas de sofrimento mental. “Essa culpabilização da família está intimamente relacionada à sua responsabilização pela superação de suas dificuldades e, consequentemente, à desresponsabilização do Estado – indo novamente na contramão do que preconizam várias políticas sociais e a própria Constituição Federal”, critica.

De acordo com Mariana, tal desresponsabilização do Estado é explicitada no item 4.1 do edital, que define políticas familiares como “políticas públicas desenhadas e executadas com o objetivo de sustentar as relações e os vínculos familiares, fortalecendo as famílias e tornando-as mais capazes de agir com autonomia e responsabilidade diante das próprias circunstâncias de vida. Nesse sentido, em suas especificidades, as políticas familiares em sentido estrito distinguem-se de outras políticas públicas que elegem a família como parceira e/ou público-alvo de seus projetos”.

A comunidade científica também se preocupa com a forma de avaliação dos projetos apresentados para concorrer ao edital. “Tradicionalmente quem avalia são pesquisadores/as especialistas de reconhecido saber na área em pauta”, diz Miriam. “Esperamos que o edital siga o modelo tradicional da Capes, de avaliação por pares e escolha por parâmetros de excelência científica”.

De acordo com ela, caso os projetos sejam avaliados por pessoas sem formação teórica e produção reconhecida na área e, sobretudo, que seja utilizado como suporte ideológico das atuais políticas públicas do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, há risco de que não sejam financiadas as propostas mais pertinentes, críticas e inovadoras. “Se isso vier a ocorrer, certamente poderá haver resultados negativos para o vibrante campo de estudos sobre família e gênero no Brasil”, alerta.

Diante deste quadro, Belinda diz que o edital da Capes coloca em risco as pesquisas científicas sobre a família no Brasil. “O trabalho feito no campo das políticas públicas nas áreas da saúde, educação e da assistência social, que sempre está vinculando políticas públicas e pesquisa, e todos os desdobramentos e as maneiras como se pensou as famílias nessas áreas, está sendo desconsiderado”, critica. “Além do que, coloca, de fato, o investimento em pesquisa no Brasil a serviço de uma certa concepção de família. E quando a ideologia entra com essa força na ciência é muito provável que a gente não tenha de fato um espaço de liberdade para pesquisar”.

 

Capes e MMFDH

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Capes disse que “no edital não há nenhuma frase ou afirmação de conotação política. Como pode ser verificado, o documento de seleção de projetos é focado em estudos científicos” e que “no texto do edital não se verifica a imposição de exclusão de nenhuma linha de pesquisa. A crítica extrapola o escopo do edital. Todas as linhas temáticas consideradas são amplas e permitem estudos científicos sem conotação ideológica”. 

O texto acrescenta que “a Capes sempre primou pelo rigor científico e pelo compromisso com o desenvolvimento de políticas que atendam aos anseios da sociedade brasileira. Os projetos selecionados pelos editais da Agência são avaliados pelos pares, a partir de seleção no Cadastro de Consultores – CadCons da Capes, que leva em conta, além da área de atuação do consultor, a sua colaboração como avaliador da Capes e o tempo de experiência”.

Também por intermédio de sua assessoria de imprensa, o MMFDH disse que “os critérios de seleção dos projetos não incluem viés político de nenhuma natureza, mas a adequação às áreas de pesquisa específicas e a qualificação das equipes proponentes dos projetos” e que “as áreas de pesquisa contempladas no Edital abrangem temas e desafios centrais para a vida das famílias brasileiras na atualidade, incluindo questões de trabalho, saúde e promoção econômica, e deverão ser tratadas com rigor científico e acadêmico”.

“Por fim”, segue o Ministério, “sendo deficitária a gama de estudos sobre políticas públicas familiares na bibliografia nacional, consideramos bastante conveniente convocar a comunidade acadêmica para oferecer material mais abundante, para embasar as políticas públicas baseadas em evidências que desejamos realizar”.

A nota diz ainda que “o Edital não ignora a diversidade de arranjos familiares no Brasil. Ao contrário, entre as áreas temáticas inclui-se a investigação da ‘estrutura demográfica familiar no Brasil’ (área temática 4.2), que deve revelar exatamente a atual configuração dessa diversidade. Ademais, o Edital não define, delimita ou privilegia nenhum tipo específico de arranjo familiar no Brasil. Os pesquisadores interessados poderão se orientar, por exemplo, pelos tipos de arranjos familiares utilizados pelos levantamentos demográficos realizados pelo IBGE, que incluem ‘arranjos unipessoais’, ‘casais com filhos’, ‘mulheres com filhos’, ‘outros tipos’, ‘sem parentesco’, entre outros”.

O MMFDH continua: “Não há nada no Edital que ‘assuma de forma crítica e naturalizada’ que as famílias brasileiras não enfrentam desafios externos e internos, de várias naturezas. Pelo contrário: como eixos de pesquisa das áreas temáticas definidas para envio de projetos de pesquisa, encontra-se o estudo de desafios importantes das famílias brasileiras, tais como: o equilíbrio entre trabalho e família (área temática 4.3), os impactos negativos do uso da tecnologia da informação para as relações familiares (área temática 4.4) e a ocorrência de automutilação e suicídio nas famílias (área temática 4.5)”.

“Além disso, os critérios de seleção dos projetos previstos no Edital não incluem a preferência de nenhum ‘modelo singular’ de família, baseado em qualquer doutrina ética ou religiosa. Antes disto, os critérios consistem na aderência dos projetos de pesquisa às áreas temáticas e aos eixos de pesquisa definidos no Edital, bem como na qualidade, produtividade e experiência das equipes de pesquisa proponentes (vide item 9 do Edital: ‘Da Análise de Mérito’)”.

“Serão aprovados os projetos que melhor se adequem às áreas temáticas e eixos de pesquisa propostos no Edital, respondendo às questões definidas no mesmo da forma mais abrangente e qualificada possível. Desta forma, pode-se dizer que quanto mais abrangente e inclusivo for o olhar dos projetos sobre a realidade das famílias brasileiras, inclusive no tocante à diversidade de arranjos familiares e a sua relação com as questões investigadas, maior será a chance de o projeto ser selecionado”.

“Vale notar que a seleção de projetos será feita notadamente na fase da Análise de Mérito, por consultores ad hoc, ou seja, ‘membros da comunidade acadêmica, com reconhecido conhecimento em sua área’ (Edital, item 9.1.1), indicados pela Capes, cuja identidade será mantida em sigilo. Mais ainda, toda a fase de análise de mérito e de priorização (Edital, itens 9 e 10) será  conduzida sob a responsabilidade da Diretoria de Programas e Bolsas no País (DPB) da Capes sem nenhuma participação da SNF e, como já dito, seguindo tão somente os critérios especificados no edital.”

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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