A emergência climática é um fenômeno global, mas a percepção e as atitudes de pessoas e governos quanto ao problema variam enormemente. Negacionistas aproveitam a confusão em torno dos efeitos e sinais da mudança no clima para espalhar desinformação, colocando em dúvida não só o consenso científico de que ela existe e resulta da ação humana - em especial pelo acúmulo na atmosfera de gases do efeito estufa - como a própria realidade de seus impactos, mais sentidos justamente pelas parcelas mais pobres e desfavorecidas da população mundial.
Assim, episódios transitórios locais ou regionais, como a onda de frio no último inverno do Hemisfério Norte, em algumas regiões dos EUA e Europa, são usados como falsos argumentos contra a factualidade do aquecimento global, ignorando que tais eventos já são, provavelmente, frutos de alterações no sistema climático ligadas ao aquecimento global – no caso da recente onda de frio, mudanças no padrão de circulação da corrente de jato, hipótese, porém, que ainda não é consenso entre os cientistas climáticos. Enquanto isso, eventos extremos como secas, tempestades e inundações espalham-se e aumentam de frequência, ameaçando a vida e subsistência de bilhões de pessoas que muitas vezes sequer têm conhecimento da existência do fenômeno.
Foi tendo isso em mente que Tim Mendham, executivo e editor da Australian Skeptics, segunda maior revista dedicada ao ceticismo em inglês no mundo, abriu discussão sobre o tema no recém-realizado Congresso Global de Pensamento Científico, promovido pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) e o Aspen Institute entre 17 e 20 de março últimos. Intitulado “Extinguindo o fogo do negacionismo das mudanças climáticas”, o painel público de debate reuniu especialistas com diferentes experiências de uma grande gama de culturas e lugares do mundo, trazendo uma diversidade de vozes no lidar com a questão.
"Na Austrália, por exemplo, começamos muito bem”, contou Mendham. “Em 2007, tivemos uma eleição que foi muito baseada no tema de políticas para as mudanças climáticas, com os progressistas largamente a favor de ações e o governo conservador que estava no poder então, contra. Os progressistas subiram ao poder e o novo primeiro-ministro na época disse que as mudanças climáticas eram o maior desafio moral, econômico e social de nossos tempos”.
As palavras, porém, não se traduziram em muitas ações efetivas, prejudicadas por ambos os lados do espectro político, lembrou Mendham. Segundo ele, se de um lado a oposição conservadora lutava contra qualquer medida argumentando que eram exageradas, ou difíceis de implementar ou disruptivas demais para a economia, do outro o Partido Verde e outras agremiações não ligadas ao governo trabalhista reclamavam que as novas políticas propostas não eram rígidas o bastante.
"Em outras palavras, a oportunidade de termos uma política climática equilibrada foi desperdiçada por ambos os lados, o governo não conseguiu fazer seu trabalho e, no fim, perdeu o poder para os conservadores”, lamentou. “E daí em diante, infelizmente, não progredimos muito. O governo conservador que assumiu depois disso trouxe muitos negacionistas das mudanças climáticas, que basicamente acabaram por desmontar os programas postos em ação pelo governo anterior, e qualquer um ligado ao novo governo que demonstra preocupação com as mudanças climáticas não recebe a atenção e importância que deveria”.
A inação local se torna um problema global, principalmente diante do fato de que a Austrália é um país cuja economia depende em grande parte da mineração, uma atividade altamente poluente, e tem sua matriz energética largamente baseada no carvão, combustível também dos mais poluentes, destacou Mendham.
"Então, hoje na Austrália temos um governo federal que está fazendo muito pouco em termos de política energética e recusa a se comprometer com cortar as emissões líquidas a zero até 2050; governos estaduais que estão fazendo mais, mais ativos no apoio a energias renováveis do jeito que podem, com regulamentações climáticas mais rígidas; o setor privado, que pede uma nova política energética ao governo federal, mas até agora não conseguiu nada; e o público, que em geral é receptivo à ideia das mudanças climáticas, tanto que temos uma alta proporção de casas com painéis solares, 21%, para gerar e ter energia”.
França e a energia nuclear
A seguir, quem deu seu panorama da situação atual em seu país, França, foi François-Marie Bréon, cientista climático presidente da organização cética Associação Francesa para Informação Científica (Afis) e um dos redatores do quinto relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), lançado em 2013. Ao contrário da Austrália, lá o cenário, pelo menos em termos da posição do governo, melhorou nos últimos anos, contou.
"Na verdade, hoje a situação está bem boa”, disse Bréon. “Se você me perguntasse uns 15 anos atrás eu diria que era bem ruim, similar à que você tem hoje na Austrália. Tínhamos um ministro que era um cético do clima e disse mentiras horrorosas sobre o assunto. Mas isso acabou. Não há uma única organização política (na França) que negue as mudanças climáticas, o governo de hoje leva as mudanças climáticas muito a sério, temos um plano de reduzir todas as emissões de carbono”.
Isso não quer dizer, porém, que o cenário seja confortável e perfeito, ressaltou: "Temos indivíduos que alegam que as mudanças climáticas são um boato, ou algo que não se deve dar importância, mas é algo marginal”.
Diante disso, uma das grandes discussões envolvendo os temas de meio ambiente e clima na França, hoje, é o uso da energia nuclear, que responde por grande parcela da geração de eletricidade do país, destacou Bréon. Isso porque, do ponto de vista das emissões de carbono, as usinas nucleares são mais limpas do que as baseadas em combustíveis fósseis, como a gás e carvão, e por isso consideradas uma importante opção para abastecimento de sistemas elétricos.
"Temos um debate real se devemos continuar a investir em energia nuclear porque ela é boa para o clima ou, como a maioria acha, que devemos diminuir a participação da energia nuclear na matriz energética, pois ela envolve outras questões”, relatou.
Bréon lamentou, no entanto, que tal discussão acabe por desviar o foco do fato que a França pode fazer muito mais pelo clima em outras áreas, já que 80% da energia total usada na França (conta que inclui transportes e outros usos) provém de combustíveis fósseis.
O cientista francês também contou sua experiência como participante dos grupos de trabalho do IPCC e destacou como os relatórios periódicos do painel, produzidos com a colaboração de centenas de cientistas de diversas áreas espalhados pelo mundo, são uma importante arma na luta contra o negacionismo climático, algo que gostaria de ver aplicado em outros temas importantes alvo de desinformação e notícias falsas, como as vacinas.
"Os relatórios do IPCC são extremamente úteis para lutar contra o negacionismo climático porque você sempre pode se referir a eles, apontar e dizer: ‘isso é o que o consenso científico, praticamente todos os cientistas climáticos se uniram e concluíram’”, resumiu. “E eles são importantes não só para o público, como para cientistas como eu. Claro, tenho conhecimentos sobre o clima, mas não sou especialista em tudo. Por exemplo, não sei muito sobre o clima no passado, mas se quiser saber mais sobre isso, sei onde achar a informação. Já com os negacionistas, quando eles vêm com uma questão específica, posso ir para o relatório e ver qual o consenso científico sobre aquele assunto. Talvez eu seja tendencioso, e todos nós temos que ter cuidado quanto a sermos tendenciosos, mas acho que estes relatórios são muito úteis para a comunicação sobre as mudanças climáticas, e costumo dizer que gostaria de ver o equivalente aos relatórios do IPCC sobre outros temas. Deveríamos ter o equivalente a um relatório do IPCC também sobre vacinas, sobre os impactos dos pesticidas na saúde, sobre medicina alternativa”.
Perspectivas da África
Mas enquanto Bréon batalha com os negacionistas das mudanças climáticas, a panelista seguinte, a sudanesa Lina Yassin, ativista climática e gerente de projeto da organização Climate Tracker no Oriente Médio e Norte da África, trabalha para levar informação e conhecimento sobre o tema a populações que tendem a ignorá-lo por completo, desenvolvendo atividades educacionais e materiais para comunicadores na área.
"Mudanças climáticas são uma questão complicada no Sudão. Antes de 2019, o Sudão não estava de fato no cenário internacional. Tínhamos um mesmo governo corrupto há 30 anos que não se importava com muita coisa, a não ser ganhar dinheiro explorando os recursos básicos do país”, frisou. “Então, as mudanças climáticas não eram exatamente uma prioridade. O país enfrentava muitos desafios econômicos, problemas com a mídia, crescentes conflitos sociais a ponto de explodir. Assim, quando comecei a trabalhar com ativismo climático em 2016, era muito difícil mobilizar as pessoas em torno do tema. Elas respondiam ‘tudo bem, é uma questão importante, mas preciso me preocupar com meu sustento. E se isso não afeta meu sustento, não vou me preocupar com isso’”.
E apesar de o novo governo sudanês que assumiu o poder em 2019 ter colocado as mudanças climáticas na agenda, o cenário não mudou muito. Quando, em setembro do ano passado, inundações atingiram mais de meio milhão de pessoas no país, nada foi dito sobre o assunto, nem discutidas medidas de mitigação dos impactos das mudanças climáticas no Sudão, país que, embora pouco tenha contribuído ou contribua para causar o fenômeno, é vítima dele da mesma forma. Diante disso, Lina busca conscientizar as pessoas, adaptando o discurso para os diferentes interesses e níveis de entendimento das audiências.
"Uma dos principais elementos do jornalismo sobre o clima é identificar sua audiência, entendê-la bem, no que ela está interessada”, recomendou. “Por exemplo, se eu for escrever uma história no Sudão sobre como as mudanças climáticas são a razão por trás das inundações que afetaram meio milhão de pessoas no ano passado, e seu título for assim, tenho certeza que poucas pessoas vão lê-la, porque ela, de cara, soa como algo muito técnico. As pessoas no Sudão não têm uma forte educação científica, portanto não ficarão interessadas no artigo. Então, se você quer realmente aumentar a conscientização do público sobre o tema, é preciso tentar apelar para os sentimentos, olhar para o lado humano das mudanças climáticas. Fazer uma história sobre uma família que perdeu a casa por causa da inundação. Isso fará as pessoas se conectarem com a história, porque aquela família pode ser a delas na próxima enchente, e então você pode entrar com a informação científica, porque agora você tem a atenção delas”.
Neste processo, porém, é preciso dosar o tom, evitando transformar a conscientização em alarmismo e alimentar o pessimismo e o conformismo, paralisando o público com medo ou pela sensação de impotência, alerta Lina.
"Precisamos que as pessoas entendam que as mudanças climáticas são reais, mas também temos que ser muitos cuidadosos com a maneira como fazemos isso, e este é um dos desafios na comunicação”, comentou.
“Já vi isso muitas vezes na mídia global, jornalistas tentando fazer as pessoas se preocuparam com as mudanças climáticas assuntando-as, usando os dados científicos para mostrar que estamos condenados e que o mundo vai acabar em alguns anos, pois as emissões estão subindo e não vamos cumprir as metas de cortes. Esta não é uma boa maneira de atrair as pessoas porque se elas ficarem muito assustadas com as mudanças climáticas e virem aí um assunto deprimente, elas vão evitá-lo no futuro, pois pensam ‘por que ler sobre algo que me entristece?’ ou ‘se estamos condenados de qualquer jeito, vou seguir com minha vida’. Então, no meu trabalho, costumo tentar deixar as pessoas preocupadas, mas não assustadas, e então oferecer soluções. Dizer ‘sim, estas são as mudanças climáticas, elas estão acontecendo, e precisamos fazer algo sobre isso’. É assim que realmente alcançamos as pessoas”.
A importância do mensageiro
Outra profissional que batalha para aumentar a conscientização e ação sobre mudanças climáticas na África e que tomou parte no painel é Hajar Khamlichi, presidente e cofundadora da Rede Jovem Mediterrânea para o Clima, e integrante do conselho da Aliança Marroquina para o Clima e o Desenvolvimento Sustentável. Para Hajar, além de formatar e adaptar o discurso científico à audiência, deve-se buscar um mensageiro próximo à comunidade e que transmita confiança nos dados, previsões e alertas provenientes da ciência em torno do assunto.
"A comunicação das mudanças climáticas precisa educar, informar, aprender, persuadir, mobilizar e resolver esta emergência global”, considerou Hajar. “Mas, num nível mais profundo, a comunicação sobre mudanças climáticas deve ser moldada às nossas diferentes experiências, nosso modelo cultural, valores subjacentes e visões de mundo", apontou.
"Para muitas pessoas, as mudanças climáticas são uma mera conjectura, sem muito significado. Uma das razões para isso envolve questões de confiança pública na ciência, mas também a percepção de que as mudanças climáticas são apenas um interesse empresarial. Aí entra o papel da linguagem que usamos. Metáforas, palavras, estratégias de enquadramento das narrativas devem ser moldadas para levar as questões relativas às mudanças climáticas a diferentes atores, seja do público ou tomadores de decisão. E temos que combinar estas narrativas diretas com imagens vívidas recheadas de informação científica com uma entrega por mensageiros confiáveis no ambiente do grupo. Pensar que o mensageiro é tão importante quanto a própria mensagem”.
Segundo Hajar, diferentemente do que acontece nas nações desenvolvidas, as pessoas no mundo em desenvolvimento em geral não precisa ser convencidas da realidade das mudanças climáticas, pois já estão sofrendo com elas, e sim entender o que são, suas consequências e o que podem fazer.
"Elas veem as mudanças climáticas em frente aos seus olhos, na ondas de calor, inundações de áreas costeiras, perda de safras”, lembrou. “O que estas audiências precisam é entender o que estão vendo. E entender é viver a experiência num contexto científico, saber o que o futuro que as mudanças climáticas podem trazer e decidir o que devem fazer sobre isso. Fazer a conexão entre o quadro geral e suas vidas, unindo conhecimento científico e sabedoria local”.
Ataque ao consenso
Fechando o debate, John Cook, pesquisador e até recentemente professor do Centro para Comunicação das Mudanças Climáticas da Universidade George Mason, EUA, fez um panorama do negacionismo sobre o assunto no mundo e os desafios para combatê-lo. Cook, agora de volta à Austrália para lecionar na Universidade Monash, é um dos responsáveis por estudo de 2013 que ganhou notoriedade por mostrar que 97% das pesquisas relacionadas às mudanças climáticas publicadas entre 1991 e 2011, cujos autores expressam alguma posição sobre o assunto, endossam a noção de que essas mudanças têm como principal causa a ação humana.
"A ironia é que nosso trabalho ganhou muita atenção, mesmo não sendo o primeiro estudo nem o segundo a mostrar este consenso, porque sofreu muitos ataques de pessoas que se opõem às ações relativas ao clima, determinadas em manter o público confuso sobre este consenso para que elas também continuem confusas sobre as mudanças climáticas em si, e não apoiem medidas para atacar o problema”, contou.
De olho nos argumentos usados pelos chamados “céticos do clima”, nos últimos anos Cook trabalhou com aprendizado de máquina, uma tecnologia de desenvolvimento de inteligência artificial, treinando um algoritmo para identificar e categorizar desinformação sobre mudanças climáticas e construir um histórico do discurso negacionista. Segundo ele, a pesquisa revelou que os argumentos mais usados envolviam ataques aos cientistas climáticos e à própria ciência climática.
"Não era argumentar se tínhamos os fatos ou os dados reais de que o aquecimento global está acontecendo, mas envolvia mais minar a confiança do público na ciência climática e nos cientistas”, comentou. “E uma das coisas mais difíceis de responder na desinformação sobre o clima é justamente isso. Uma das razões é que temos muito poucas pesquisas sobre como devemos responder a ataques à integridade da ciência e ataques ad hominem aos cientistas. Queria ter uma boa resposta para isso, mas infelizmente não temos”.
Cook supõe dois grandes motores para a disseminação de desinformação o negacionismo em torno das mudanças climáticas. Segundo ele, os países onde o negacionismo é maior, como os EUA, Austrália, Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia, tendem a ser países onde a News Corp - empresa de mídia do bilionário australiano Rupert Murdoch, dona da Fox News e jornais como o americano Wall Street Journal e o britânico The Times, entre outros - é dominante.
"Isso me faz suspeitar que toda a desinformação que sai da mídia tradicional contribui para o negacionismo”, considerou.
Já o outro motor seria a polarização em torno das mudanças climáticas, que seria estimulada justamente por um dos setores da economia que mais teria a perder com a descarbonização: a indústria dos combustíveis fósseis. Segundo Cook, um estudo da Universidade de Queensland, na Austrália, analisou o grau de polarização sobre o tema em diversos países e verificou que ela é maior naqueles onde a matriz energética tem maior participação destes combustíveis.
"A conclusão desta relação é que desinformação baseada nos combustíveis fósseis é um dos maiores estimuladores da polarização nos diferentes países”, explicou.
Para combater a desinformação, Cook sugere educar o público para identificar as ferramentas usadas pelo discurso negacionista, tal qual sua máquina de inteligência artificial.
"Assim, quando você encontrar argumentos como que temos que escolher entre a economia ou o meio ambiente, ou, como está sendo muito usado nos últimos 12 meses durante a pandemia de COVID-19, que temos que escolher entre a economia ou a saúde pública, saber que estes argumentos trazem a falácia da falsa dicotomia ou da falsa escolha”, ilustrou.
“Porquê temos que escolher um ou outro? Na verdade não podemos ter uma economia saudável sem um ambiente saudável, da mesma forma que não podemos ter uma economia saudável sem uma população saudável. Então, a melhor forma que temos para combater a desinformação é expôr e explicar as técnicas usadas para enganar. Quando as pessoas estão conscientes das técnicas usadas para enganá-las sobre as mudanças climáticas e suas soluções, isso aumenta sua resiliência e elas têm menos chances de serem enganadas”.
A íntegra do painel público sobre mudanças climáticas no Congresso Global de Pensamento Científico está disponível no canal do Aspen Institute no YouTube, aqui.
Cesar Baima é jornalista e editor assistente da Revista Questão de Ciência