Além de causar cerca de 2,5 milhões de mortes e do caos social e econômico que espalhou pelo mundo, a pandemia de COVID-19 escancarou uma situação que poucos brasileiros conheciam: a dependência que o país tem da importação de insumos para fabricação de medicamentos e vacinas. No geral, o país compra fora 95% do que necessita em termos de medicamentos, e 100% para os imunizantes contra o novo coronavírus. Mas nem sempre foi assim. Na metade dos anos 1980, a produção nacional atendia 55% da demanda interna.
A história da indústria farmacêutica no Brasil é antiga. Assim como em outros países, até o fim do século 19, vivia da manipulação de produtos naturais em boticas.
“No final do século 19, foi estabelecida uma articulação maior entre a pesquisa, a produção e estratégias de mercado para os produtos”, conta o médico Jorge Bermudez, chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “A Segunda Guerra Mundial trouxe uma expansão internacional de empresas transnacionais e até uma associação com nacionais, mas nitidamente levando a um processo de desnacionalização no Brasil”.
Durante as décadas de 1940 e 1950, houve uma política desenvolvimentista e com diminuição de importações, mas a produção nacional ainda se dava predominantemente por empresas transnacionais, caracterizando um processo de dependência externa. Só nos anos 1960 começaram a surgir mudanças. “Nessa época, houve um movimento importante, com iniciativas da sociedade civil organizada, propondo uma empresa estatal forte, atrelada à luta pela soberania nacional”, lembra Bermudez. “Ela foi denominada de Farmoquímica Brasileira S.A (Farmobrás S.A.), mas nunca chegou a ser efetivamente priorizada pelo governo”, acrescenta o médico.
Ainda de acordo Bermudez, nessa mesma década foi criado o Conselho de Desenvolvimento Industrial e seus grupos executivos (Indústria Farmacêutica e Indústria Farmoquímica). “Em 1971, surgiu a Central de Medicamentos (CEME), que durante vários anos, trabalhando conjuntamente com a Secretaria de Tecnologia Industrial, organizou propostas, parcialmente implementadas, de subsistemas de Informação, de Produção, de Distribuição, de Pesquisa Científica e de Avaliação e Controle”, diz. “A CEME teve diversas iniciativas de fortalecimento dos laboratórios oficiais de produção farmacêutica, contidas no seu Plano Diretor”. A empresa foi extinta em 1997.
Antes disso, conta o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), durante a Guerra das Malvinas (1982) uma das estratégias usadas pela Inglaterra e pelos Estados Unidos foi o bloqueio de medicamentos, fármacos e insumos para produção dessas substâncias na Argentina. “O Brasil não apoiou esse bloqueio completamente, mas o país vizinho se enfraqueceu significativamente”, explica. “Como consequência, o governo militar brasileiro fez um programa de apoio à nascente indústria de fármacos e seus insumos. Com isso, ela, que era promissora, subsistiu”.
Por meio de engenharia reversa, vários produtos que eram importados até então, passaram a ser fabricados no Brasil. “Uma única empresa envolvida neste programa, a CODETEC, desenvolveu a tecnologia de produção de 80 dos 300 princípios ativos da farmácia básica brasileira”, conta. “Vinte desses produtos chegaram a ser licenciados e produzidos no país. Era, obviamente, o começo da capacitação brasileira no setor de química fina, que envolve fármacos”.
Um pouco mais tarde, as coisas começaram a desandar. Segundo Paulo Roberto Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA), entre o final dos anos 1980 e hoje, o Brasil passou por um processo “violento de desindustrialização”. A indústria de manufatura, que na década de 80 chegou a quase 30% do PIB, hoje representa apenas 9%. “Essa desindustrialização aconteceu em quase toda América Latina, pois esta região embarcou no ‘Consenso de Washington’ (CW), surgido em 1989, que era um conjunto de medidas criado pelas importantes instituições sediadas em Washington, como FMI e o Banco Mundial e outras, que pregava a ideologia neoliberal”, explica.
“Os países que seguiam a cartilha do CW, ou seja, eram ‘bonzinhos’, obtinham muitas facilidades junto ao FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (OMC)”, acrescenta. “A cartilha rezava pela implantação do Estado mínimo, fim dos planos e políticas industriais e das reservas de mercado, privatização de tudo, absoluto respeito às leis de propriedade intelectual e, principalmente, abertura irrestrita das importações. Ela dizia que cada país só deveria produzir aquilo no qual tivesse vantagem comparativa, ou seja, a América Latina deveria focar na agricultura”.
Algumas medidas na área farmacêutica, adotadas nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, demonstram a adesão do Brasil ao Consenso de Washington. “Empresas que produziam insumos para medicamentos, como a Companhia Brasileira de Antibióticos (Cibran), a Microbiológica, a Nortec/Norquisa e a Biobrás foram impactadas negativamente com a política de abertura de fronteiras e mercados do governo Collor, em 1991, reduzindo alíquotas de importação para produtos que eram fabricados nacionalmente”, diz Bermudez.
No governo Fernando Henrique Cardoso, uma das medidas mais impactantes foi a adesão do Brasil ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês de Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), um tratado internacional, parte do conjunto de acordos assinados em 1994, que encerrou a Rodada Uruguai – que na verdade terminou em Marrakesh – e criou a OMC. Dois anos depois, o Congresso Nacional aprovou a Lei 9.279/1996, pela qual o Brasil se obrigava a respeitar patentes e a propriedade intelectual de outros países.
Para muitos, essa lei é a principal responsável pelo fato de o Brasil depender quase que totalmente da importação de insumos para a produção de medicamentos e vacinas. Para outros, há mais fatores envolvidos, no entanto. Entre os primeiros, está o economista Fernando Sarti, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT), da Unicamp. “A adesão do Brasil ao TRIPS certamente não favoreceu o desenvolvimento tecnológico aqui dentro”, diz. “Com certeza, faz sentido dizer que a política [adotada pelo governo], deste ponto de vista, foi inadequada”.
O pesquisador Paulo Lee Ho, do Centro Bioindustrial, do Instituto Butantan, lembra que o Brasil aderiu ao TRIPs dois anos depois da sua assinatura, obrigando o país a respeitar as patentes, enquanto outros países tiveram prazo de 10 anos, renovável até 2016, para então ratificar o acordo. “Em vez de tratar a questão como de soberania nacional na preparação da nossa indústria, o Estado legislou a favor dos impérios industriais”, diz. “Falta política de Estado. Só temos, quando temos, política de governo”.
Também existem aqueles que são mais incisivos nas críticas à Lei 9.279/1996. É o caso de Cerqueira Leite. “O Brasil criou esta legislação, claramente nociva aos interesses nacionais, para agradar o governo dos Estados Unidos”, diz. “Foi uma concessão do súdito submisso ao patrão. Não havia nenhum interesse econômico para o Brasil. Essa lei, adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, não somente aniquilou com a nascente indústria nacional de fármacos como também inibiu a pesquisa no setor. Com isso, o Brasil se viu obrigado a importar fármacos e insumos para produzi-los”.
Para ele, a administração Fernando Henrique “é inequivocamente responsável pelo atraso em que se encontra hoje o Brasil no setor de fármacos e outras áreas industriais da química”. A China e a Rússia, por exemplo, se negaram a assinar o acordo de propriedade intelectual num primeiro momento, enquanto a Índia aceitou, mas manteve uma quarentena por dez anos, o que lhe permitiu consolidar a sua indústria nascente de fármacos.
Hoje, de acordo com Cerqueira Leite, esses três países não são apenas produtores de vacinas, mas também de grande parte de princípios ativos dos medicamentos que o mundo consome hoje. “Não é possível afirmar cientificamente que o Brasil estaria no mesmo nível de desenvolvimento tecnológico em fármacos e biofármacos que eles, mas certamente não estaria nesta situação de mendicância científica que está hoje, se não tivesse aceitado a legislação patentária atualmente em vigência”.
Do lado dos que não colocam toda a culpa no acordo de propriedade intelectual pela dependência do Brasil de insumos importados está Jorge Costa, assessor da Vice-presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Isso é um processo histórico que é multifatorial”, diz. “O primeiro fator, talvez o principal, foi a concorrência com os países asiáticos, que conseguem produzir por um preço muito competitivo”, explica. “Com isso, o mercado nacional ficou à mercê de importações, porque é mais barato comprar fora do que produzir localmente”.
Um outro fator que contribuiu foi a interrupção paulatina da produção das empresas que fabricavam insumos farmacêuticos ativos (IFAs). “Era mais vantajoso comprar esses produtos no exterior, como na China, por exemplo, do que produzir aqui”, explica. “Por isso, muitas empresas desativaram suas plantas de produção de IFAs”.
O médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP-USP) Gonzalo Vecina Neto, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também debita da conta dos países asiáticos parte da culpa pela necessidade de o Brasil ter de importar a quase totalidade dos insumos para medicamentos e vacinas. “A Índia e a China, como têm uma escala de utilização muito elevada, acabam colocando o produto no mercado por um preço de dumping”, explica.
Além disso, acrescenta, os dois países têm políticas de proteção da saúde dos trabalhadores muito menos impactantes [nos custos de produção] do que o Brasil. “As medidas de preservação ambiental deles também são muito débeis”, diz. “Essa área de insumos farmacêuticos, do ponto de vista de produção industrial, é muito suja. Como as duas nações têm pouco controle sobre isso, elas acabam tendo uma vantagem muito grande em relação a um país como o Brasil, que, embora não o suficiente, já progrediu um pouco nessa questão”.
Em relação à propriedade intelectual, Vecina diz que o Brasil sempre a respeitou, tendo D. Pedro II como um dos pioneiros. “Acontece que, com a ditadura, algumas áreas foram alvos mais importantes da política de substituição das importações que os militares implantaram no país, e a de medicamentos foi uma delas”, conta. “Assim a partir dos anos 70, o Brasil deixou de respeitar patentes na área de medicamento, mas foi uma exceção”.
Isso durou até o governo Fernando Henrique, quando houve uma pressão muito grande das multinacionais farmacêuticas para que país respeitasse a propriedade intelectual e as patentes. “Com isso, elas conseguiram muitas concessões exclusivas do Brasil”, diz Vecina. “A China, a Índia e a Rússia, por exemplo, e vários outros países do terceiro mundo tentaram, estenderam o prazo o máximo possível para não reconhecer isso. Mas é óbvio que qualquer país que não faça parte do TRIPs, cujos signatários são aqueles que respeitam a propriedade intelectual, está fora da OMC e do comércio mundial”.
Por isso, diz Vecina, os países que não aceitaram as regras só o fizeram por um período, porque não têm como ficar à margem do comércio internacional, ainda mais um país do tamanho do Brasil. “As consequências para o país de ter aderido quase de imediato ao TRIPs são que a indústria farmacêutica multinacional continua se beneficiando”, diz. “O que a Índia, a Rússia e a China fizeram foi fazer valer o que o acordo permitia. O Brasil abdicou disso e o Congresso foi ‘vendido’ para a indústria farmacêutica multinacional e fez a lei como ela queria”.
Evanildo da Silveira é jornalista