"Homeopático" coroninum é inútil e pode ser perigoso

Questão de Fato
30 jan 2021
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virus no canto

 

Toda doença que irrompe na consciência do público logo se faz seguir por promessas de preventivos ou terapias mirabolantes, mágicos, milagrosos e (infelizmente) inúteis – quando não perigosos. Com a COVID-19 não foi diferente, e embora muitas das “mágicas” contra essa doença envolvam princípios ativos de verdade – como hidroxicloroquina ou ivermectina –, o mundo dos medicamentos imaginários da homeopatia não ficou para trás (como se vê aqui e aqui).

E agora aparece mais um: o coroninum, um novo preparado, elaborado a partir da secreção de pacientes positivados para COVID-19, que promete evitar o agravamento dos sintomas, sendo “recomendado” especialmente para os grupos de risco, como aqui se anuncia.

Mas não seria perigosa a proposta de oferecer às pessoas um preparado à base de secreção contaminada pelo novo coronavírus? Sim e não.

 

Por que não?

Caso você tenha receio de contrair a doença ao ingerir o produto, fique tranquilo: para os ainda não iniciados nas ideias homeopáticas, esta prática se baseia em oferecer produtos elaborados por diluições sucessivas de um princípio ativo. Porém, as diluições utilizadas corriqueiramente são tais que já não haverá mais qualquer resquício da substância inicial no produto final.

Deixem-nos explicar: imagine que você tenha em mãos um frasco de ácido sulfúrico puro e um copo. Com o auxílio de um conta-gotas, você coloca 99 gotinhas de água dentro do copo e 1 única gotinha de ácido. Depois de chacoalhar para homogeneizar, você terá uma solução de ácido na concentração de 1 parte em 100 (ou, na nomenclatura da homeopatia, “1 CH”, de Centesimal Hahnemanniana).

Para obter uma solução de ácido na concentração 2 CH, você pode, agora, transferir apenas 1 gotinha da solução anterior para um novo copo contendo outras 99 gotinhas de água pura. Depois de homogeneizar, a concentração final desta nova solução estará com ácido na proporção de 1 parte em 10 mil. Repetindo-se o processo várias vezes sucessivas, você obterá as soluções 3 CH (1 parte em 1 milhão), 4 CH (1 parte em 100 milhões), e assim por diante.

O problema bem óbvio desse processo é que ele tem limite. Ou seja, a partir de determinado número de diluições sucessivas, a chance de ainda encontrar alguma molécula da substância inicial na solução final, como dissemos, torna-se praticamente nula. O coroninum está disponível para venda na concentração de 30 CH: para você ter uma noção prática, se fosse acrescentada 1 gota do princípio ativo em um pote de água esférico com o mesmo diâmetro da órbita média de Plutão ao redor do Sol (e se esperássemos pacientemente até homogeneizar), teríamos uma solução ainda mais concentrada que a de 30 CH!

Em outras palavras: supondo que o produto tenha sido preparado corretamente – há casos em que medicamentos homeopáticos, produzidos de forma inadequada, causam problemas graves de saúde, porque o princípio tóxico original não foi diluído o bastante – você pode beber o “remédio” diretamente no gargalo, o conteúdo inteiro do frasco, e nada de mau lhe acontecerá. Curiosamente, uma campanha de conscientização sobre a inutilidade dos homeopáticos propõe que as pessoas façam exatamente isso. Todos os participantes sobreviveram à “overdose de nada”.

 

Por que sim?

Ora, como já sabemos que não há mais resquícios da secreção original contaminada dentro do preparado coroninum (30CH), então se pode afirmar, com tranquilidade, que ele não transmitirá COVID-19 a quem tomar algumas gotas por dia. Porém, exatamente pelo mesmo motivo que nos leva a afirmar que ele não contém nada de perigoso, também sabemos que não há qualquer princípio ativo capaz de fazer bem (para além do efeito placebo): o tal produto não é nada além de água (ou algum outro líquido ou mistura que tenha sido usada nas diluições).

Dessa forma, o perigo associado ao coroninum não é o produto em si, mas as consequências que falsas ilusões podem gerar àqueles que embarcam confiantemente nelas. O coroninum é apenas mais um elemento que ora se apresenta em um cenário nacional já recheado de falsas promessas, como a solução homeopática já usada em Itajaí (SC), a água plasmada, a ozonioterapia e a cloroquina, por exemplo.

Pessoas que se submetem a tratamentos inertes, com promessas de prevenir ou curar a COVID-19, podem adquirir uma falsa sensação de segurança, o que tem chance de fazer com que deixem de atender às medidas sanitárias (estas sim eficazes) que visam evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Além disso, mesmo após contaminadas, podem abdicar de um tratamento mais adequado, capaz de oferecer as melhores chances de sobrevivência, em troca de outros que nada são além de promessas vazias de cura.

No caso específico do coroninum, há um perigo extra a se levar em conta: aquele a que as pessoas envolvidas na preparação do medicamento estão expostas. O vírus SARS-CoV-2 é altamente contagioso, e se transmite, exatamente, a bordo das secreções – saliva, muco nasal – das pessoas contaminadas. Quem quer que esteja manipulando o material base, no início do processo de diluição, corre um risco muito real de contrair a doença. Cientistas e técnicos sérios recusam-se a lidar com esse tipo de contaminante fora de laboratórios biológicos de segurança máxima, dos quais existem poucos no Brasil.

Aliás, um detalhe: embora seja vendido e promovido como “homeopático”, o coroninum é, na verdade, outra coisa: um “isopático”. Samuel Hahnemann (1755-1843), o inventor da homeopatia, dividia a medicina em três braços, o “alopático” (onde os medicamentos são baseados em substâncias com efeito oposto aos sintomas da doença), “homeopático” (onde os medicamentos geram sintomas semelhantes à doença) e o “isopático” (onde os medicamentos são baseados no próprio agente causador da doença).

Hahnemann, aliás, tinha uma péssima opinião da isopatia. Em sua principal obra, o “Organon da Arte de Curar”, escreve que essa modalidade “contradiz todo o entendimento humano”, e dedica uma enorme nota de rodapé, na introdução do livro, a atacá-la como “sistema pouco verossímil e perigoso”. Segundo Hahnemann, o uso de material que causa uma doença em seres humanos para tratar essa mesma doença em outros seres humanos só pode resultar em “complicação e agravamento do mal”.

 

Dupla falsidade

Está circulando, em aplicativos de mensagens, uma postagem onde se tenta convencer o leitor de que o tal preparado foi testado por meio de metodologias adequadas. O texto destaca que o estudo foi “do mais alto grau de evidência científica”, conduzido de modo duplo-cego, randomizado e controlado por placebo (em alusão ao “padrão ouro” de evidência de eficácia de um tratamento, como já abordado anteriormente na Revista Questão de Ciência).

Como já é hábito na disseminação das chamadas fake news, a mensagem que alardeia o produto homeopático/isopático não veio acompanhada de qualquer referência que permita acessar o estudo citado. Nem a base internacional de registro de estudos clínicos clinicaltrials.gov, e nem a base nacional, ensaiosclinicos.gov.br, informam a existência de pesquisa brasileira clínica sobre homeopatia contra COVID-19. O site PubMed, que agrega estudos sobre saúde e medicina de todo o mundo, traz alguns artigos brasileiros sobre homeopatia e pandemia. Encontram-se ali duas perspectivas teóricas e uma análise buscando correlações entre COVID-19, odontologia e homeopatia. Não há resultados de estudos com medicamentos homeopáticos em humanos para a doença.

A afirmação talvez tenha sido acrescentada ao texto apenas para usar palavras "da moda", que vêm sendo repetidas, no âmbito da pandemia, quando se deseja identificar um ensaio clínico de boa qualidade. Tanto é que, ao final, encontra-se o alerta de que o coroninum “não é um medicamento validado para o tratamento ou prevenção do coronavírus e nem uma vacina, no sentido real da palavra”.

É por isso que o alerta se reforça: não é possível confiar em tudo que se encontra ou se compartilha nas redes sociais. Estar atento às fontes é o mínimo que podemos fazer. Se já é inadmissível que se produzam e propaguem notícias falsas de caráter geral, então é ainda mais preocupante que se faça isso no âmbito das pseudociências, quando a falsidade se torna dupla: tanto a própria informação veiculada é incorreta, quanto o corpo de conhecimento que se tenta usar para sustentá-la, na verdade, não tem bases científicas válidas.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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