O vírus mutante inglês é mais perigoso que o SARS-CoV-2 "raiz"?

Questão de Fato
20 dez 2020
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O governo britânico anunciou, há poucos dias, um recrudescimento das medidas não-farmacológicas de controle da pandemia, incluindo um “cancelamento do Natal”, dando como justificativa o aparecimento de uma linhagem mutante do vírus SARS-CoV-2 que, segundo dados a que aparentemente só o governo britânico teve acesso, é muito mais infecciosa que as versões anteriores do mesmo parasita.

A linha-dura adotada no Reino Unido poderia ser justificada sem o apelo ao novo mutante: o fato é que o país vive uma explosão de novos casos, explosão que pode ser muito bem explicada pelo comportamento relaxado do público em meio à segunda onda da doença na Europa. Ainda é cedo para afirmar se o novo mutante está também contribuindo para o vagalhão.

Mas, seja inspirado por conveniência política, ou por dados científicos sólidos ainda não publicados, o discurso do primeiro-ministro Boris Johnson e do secretário de saúde Matt Hancock, culpando o “mutante” pelo cancelamento do Natal, gerou ondas de especulação sobre evolução viral e cenários de filmes-catástrofe de ficção científica pelo mundo. Afinal, o que é um vírus mutante? E precisamos nos preocupar com ele – isto é, mais do que já nos preocupamos com o vírus que, até este domingo (20), já havia matado quase 2 milhões de pessoas pelo mundo?

 

O X-Vírus

O termo “mutante” sempre atrai manchetes e preocupações. Mutações são geralmente associadas a eventos prejudiciais – mutações provocadas por exposição à luz solar podem causar câncer, por exemplo – ou a eventos fantasiosos, que ultimamente vão desde se tornar um X-Man até virar um jacaré.

A verdade é que mutações são comuns a todos os organismos, e seus efeitos variam de acordo com a frequência em que ocorrem e a capacidade do organismo de corrigir essas mutações. Mutações podem ser benéficas ou deletérias, ou, em sua maioria, completamente indiferentes. Serão deletérias como estas provocadas por exposição ao Sol, que podem causar câncer. E podem ser benéficas se conferirem alguma vantagem adaptativa ao organismo, que possa ser transmitida para seus descendentes.

 

Seleção dos mais aptos 

Há muita confusão em torno dos conceitos de evolução darwiniana, que muitos confundem com seleção natural. Já explicamos bem essas diferenças aqui. Seleção natural é apenas um componente da evolução darwiniana. Se uma característica realmente conferir vantagem ao organismo, e for passada adiante, ela pode ser fixada na população. Mas uma característica também pode ser fixada totalmente ao acaso, como consequência de fatores ambientais que nada têm a ver com vantagem adaptativa.

Durante a pandemia de COVID-19, alguns eventos relacionados a mutantes foram reportados pela mídia com muito exagero, levantando sempre as mesmas preocupações na população: se o vírus mutou, eu vou pegar de novo? Nenhuma vacina vai funcionar? O vírus ficou mais perigoso ou mais contagioso?

 

Os mutantes até agora

O primeiro mutante que chamou atenção foi reportado em julho. Trata-se de uma variação do vírus “raiz”, de Wuhan, com uma mudança de aminoácido na região da proteína S. Os autores reportaram que esta mutação havia se tornado predominante, e que poderia indicar uma vantagem adaptativa, uma maior “aptidão viral”. Essa aptidão foi confirmada em ensaios de laboratório: o mutante parecia realmente ter maior capacidade de infectar células em cultura.

Resultado semelhante também foi observado em animais, mostrando predominância do mutante 614G no trato respiratório superior (nariz e garganta), mas não nos pulmões, sugerindo que realmente essa variante pode ser mais infecciosa. Não há nenhum indício, no entanto, de que a doença que causa seja mais grave, ou que a variedade possa escapar de vacinas.

Cientistas observaram que os pacientes infectados com esta variante apresentam maior carga viral no nariz, mas não desenvolvem casos mais graves da doença. Ensaios com anticorpos neutralizantes também verificaram que o mutante 614G é mais suscetível à neutralização, mostrando que as vacinas vão dar conta dele tranquilamente. Este caso ilustra bem que mutações nem sempre são ruins – do nosso ponto de vista: esta mutação específica é vantajosa para o vírus e faz pouquíssima diferença para nós, além de ser mais sensível aos nossos anticorpos.

Depois, veio o mutante caracterizado no Norte da Espanha, que também foi associado a uma maior distribuição pela Europa. Neste caso, havia diversos outros fatores epidemiológicos envolvidos que podiam explicar a maior prevalência deste vírus na Europa, entre eles as férias de verão, e o grande número de viagens de jovens pelo continente, ao mesmo tempo em que as medidas de prevenção foram relaxadas. Logo, chegou-se à conclusão de que a segunda onda na Europa era muito mais provavelmente causada por comportamento humano do que por uma mutação do vírus.

E então chegamos ao mutante caracterizado no Reino Unido. Neste caso, não temos quase nenhum dado científico publicado, apenas a observação de um grande número de pessoas infectadas com ele, e a constatação de 17 mudanças em aminoácidos, em locais possivelmente relacionados com infectividade, como o sítio de ligação do vírus às células humanas, e uma proteína acessória. Não foi nem sequer feito um ensaio de competição in vitro, o experimento usado para detectar maior ou menor aptidão viral.

E mesmo que o experimento aconteça e se confirme que o novo mutante é capaz de, num vidro de laboratório, tomar o lugar do vírus comum, a questão de se ele consegue fazer o mesmo no mundo real segue em aberto. É preciso distinguir claramente dois conceitos: aptidão viral e aptidão epidemiológica.

 

Aptidões

Aptidão viral é a capacidade do vírus de se replicar em um determinado ambiente. Aptidão epidemiológica é a capacidade do vírus de se tornar dominante em uma determinada região ou população.

Quando fazemos estudos em laboratório, medindo a capacidade do parasita de se multiplicar em células, estamos medindo a aptidão viral. Apesar de na maioria das vezes, a aptidão viral se transformar em aptidão epidemiológica – como ocorreu com uma mutação no vírus da chicungunha, que aumentou a capacidade de replicação no mosquito em quase cem vezes e se disseminou pelo mundo –, um mutante pode ganhar a briga com outra versão do vírus no laboratório e isso não se traduzir automaticamente numa vantagem epidemiológica. Treino é treino, jogo é jogo.

Quando a competição é para valer, em uma população, vários outros fatores entram em campo. Um deles, já falamos aqui, é o acaso. Nem tudo que é selecionado tem vantagem evolutiva. Às vezes é só estar no lugar certo na hora certa. Um evento de super-espalhadores, uma festa com 500 pessoas, tudo isso pode fazer com que um mutante se dissemine mais do que outro.

Um de nós – Maurício Nogueira – estuda aptidão viral e epidemiológica há muitos anos, e publicou um artigo muito ilustrativo sobre a competição entre duas linhagens de um sorotipo do vírus da dengue, que estavam circulando na cidade de São José do Rio Preto.

Nesse estudo, a linhagem L1 apresentava aptidão viral muito maior, ganhando todos os ensaios de competição em diversos tipos de células, e no mosquito que serve como vetor. No entanto, perdeu a competição para a linhagem L6, aparentemente muito menos apta, que se tornou prevalente na população da cidade, até que a L1 praticamente sumiu. Descobriu-se que, apesar de todas as vantagens de replicação que a linhagem L1 tinha sobre a L6, a linhagem L6 era menos imunogênica, ou seja, provocava uma resposta imune menos robusta. Com isso, acabava conseguindo ganhar em número dentro do hospedeiro humano, o que fazia com que fosse “capturada” também com mais frequência pelo mosquito.

Assim, uma linhagem supostamente “menos apta” ganhou a competição e se tornou prevalente, eliminando a outra por completo.

Pode ser que esta linhagem encontrada no Reino Unido realmente tenha mais aptidão epidemiológica. Mas, no momento, nem estudos de aptidão viral foram feitos, e o que temos são correlações que sugerem uma prevalência desta linhagem na população, o que, como vimos aqui, pode ocorrer por diversos motivos. A nova linhagem parece estar atrapalhando um pouco os testes diagnósticos também, mas isso precisa ser mais investigado.

 

E as vacinas?

Como para os outros mutantes, não temos dados suficientes para dizer se essa mutação vai afetar a efetividade de uma vacina. Mas temos motivos para acreditar que não. Os outros mutantes não afetaram: um estudo conduzido pelo grupo da Pfizer mostrou a capacidade dos anticorpos gerados pela vacina de neutralizar diversos mutantes de proteína S. As vacinas foram desenhadas para gerar anticorpos para regiões grandes da proteína S, ou a proteína inteira, e algumas mudanças não devem ser problema. No entanto, isso precisa ser investigado.

Se for o caso, e a mutação prejudicar o reconhecimento do vírus por anticorpos, cabe lembrar que esta não é nossa única resposta imune, talvez nem a mais importante, e que vacinas como a da Pfizer, da Moderna, e as vetorizadas, provocam uma boa resposta celular, que é outro braço do sistema imune, menos suscetível a esse tipo de engano.

Vacinas como a Coronavac, de vírus inativados, também dependem menos de detalhes muito específicos do vírus: não é uma mudança pontual numa proteína que vai esconder o SARS-CoV-2 delas.

O que a situação no Reino Unido mostra é a importância da vigilância epidemiológica para detectar rapidamente mutantes que possam ser causa de preocupação. O que não se deve fazer, no entanto, são afirmações para as quais ainda não temos dados, que podem assustar a população e causar um pânico desnecessário.

 

Transparência

A comunicação da ciência deve prezar pela transparência, sempre. Precisamos urgentemente aprender a comunicar incertezas, fazendo da sociedade parceira no processo de geração do conhecimento, e não refém do que os doutores de jaleco branco afirmam sem apresentar razões. Quando queremos que a população acredite em nós “porque sim”, outros cabides de jaleco branco farão exatamente o mesmo, como temos observado na disseminação de notícias falsas e perigosas.

Além disso, a própria comunidade científica não pode ficar no escuro. Assim, se o governo britânico afirma que um novo mutante é 70% mais contagioso, queremos ver os dados.

Enquanto estudamos a aptidão viral e epidemiológica deste mutante, e como ele pode afetar a população, convém lembrar que para qualquer linhagem do vírus, os cuidados de prevenção permanecem os mesmos. E que, quanto mais o vírus circula, mais linhagens surgem. A maneira de prevenir isso é com distanciamento social, uso de máscaras, evitando aglomerações – e vacinando-se.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, "fellow" do Comitê para Investigação Cética (CSI) dos Estados Unidos e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Mauricio L. Nogueira é médico e doutor em virologia, e foi presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Atualmente é professor adjunto da Faculdade de  Medicina de São José do Rio Preto

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