A divulgação de um caso confirmado de COVID-19 no Brasil pode demorar até sete semanas em alguns estados. Esse é o tempo que decorre entre seu registro no sistema de saúde e a efetiva divulgação nos boletins epidemiológicos. Uma discrepância que pode fazer muita diferença para a tomada de decisões de prefeitos, governadores e governo federal, como, por exemplo, determinar as medidas de distanciamento social, ou sua flexibilização.
Esse é o principal resultado de estudo divulgado na nota técnica O tempo dos dados: explorando a cobertura e oportunidade do Sivep-Gripe e o e-SUS, realizado pelo MonitoraCovid-19, sistema criado em março de 2020 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que integra dados sobre o novo coronavírus no Brasil e no mundo com o objetivo de oferecer um cenário em tempo real da epidemia no país, por estados e por municípios.
Segundo o pesquisador Christovam Barcellos, coordenador do MonitoraCovid-19, em cinco estados - Amapá, Maranhão, Paraíba, Rio de Janeiro e Rondônia - os dados oficiais registraram o número máximo de casos de COVID-19 mais de 50 dias depois de ele ter efetivamente acontecido. Há outros estados com grande discrepância entre as datas real e oficial no número máximo de casos. São eles Paraná, onde o intervalo foi de 30 dias, Rio Grande do Norte e Espírito Santo (27), Distrito Federal (26), Goiás (25), Rio Grande do Sul (22), Roraima (21), Santa Catarina (20) e Amazonas (19). A lacuna média entre todos os estados foi de 17 dias.
Uma das principais razões para isso, diz Barcellos, são as mudanças que ocorreram nos sistemas de notificações de doenças do Brasil nos últimos anos. “Anteriormente, as doenças de notificação compulsória eram registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que não deu conta de algumas epidemias mais recentes, como a da zika, por exemplo”, explica. “Em 2009, depois que surgiu a da H1N1, em 2008, o governo criou o Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-Gripe), voltado para esse tipo de doença, que funcionou bastante bem durante muito tempo”.
Quando surgiu a COVID-19, no início do ano, os casos começaram a ser notificados neste sistema. Mas a partir de abril ele também não deu conta. “Então, o Ministério da Saúde passou a incentivar o uso de uma nova plataforma, e-SUS Vigilância Epidemiológica (e-SUS VE). Essa sequência de mudanças dos sistemas de notificação causa uma desorganização nos dados e, às vezes, atrapalha as estatísticas”.
De acordo com Barcellos, a partir daí o Ministério da Saúde induziu as secretarias municipais de saúde usar os dois sistemas, o SIVEP-Gripe e o e-SUS VE, numa transição, e agora está incentivando o uso do segundo. “A pasta deveria estar realizando a tarefa de consolidar os dados que estão chegando de um sistema e de outro, e ver qual o mais próximo da realidade. Durante muito tempo, vamos conviver com este problema de ter dois sistemas funcionando”.
Barcellos diz que o que a equipe do MonitoraCovid-19 mostrou na nota técnica é que usar um sistema ou outro ou dois ao mesmo tempo altera as estatísticas. “Por isso, pode-se estar subestimando o número de casos e óbitos se usar só um sistema”, explica. “Francamente, não sei qual a mágica que estão fazendo no Ministério da Saúde para compatibilizar e ver qual o mais próximo da realidade”.
Ele alerta que essa situação toda, além de influenciar nas estatísticas, altera o timing, a oportunidade dos dados. “Alguns estão chegando muito atrasados, o que dá uma falsa impressão de que nas últimas semanas está caindo o número de casos e de óbitos”, diz. “Não é verdade. Provavelmente, é devido a um atraso na digitação e consolidação de dados que está sendo feito no Ministério, o que é perigoso. Pode levar os governos e gestores públicos a tomar decisões erradas, adotar medidas inadequadas, prejudicando o combate à epidemia”.
Mas a discrepância nas datas não foi a única detectada pela equipe do MonitoraCovid-19. Os pesquisadores também perceberam diferenças significativas nos registros dos números de infectados e mortes. Os dados do e-SUS VE, por exemplo, apresentam uma variação de 10% em relação aos boletins das Secretarias Estaduais. Se somados os casos registrados no Sivep-Gripe, no entanto, ela cai para 4%.
Nas conclusões da nota técnica, os pesquisadores recomendam que não seja modificada a forma de divulgação dos registros, mas que as divergências apontadas sejam levadas em conta pelos gestores públicos: “Esta análise não busca sugerir ou recomendar que os dados sejam alterados para divulgação, pois a população já se habituou a essa lógica, e alterar as datas neste momento do processo epidêmico traria mais desinformação do que ganho na comunicação”, diz o texto. “Contudo, as defasagens apresentadas devem ser consideradas pelos gestores públicos, sobretudo para tomada de decisão e orientação das intervenções”.
Para Barcellos, seria importante um esforço nacional, liderado pelas autoridades de saúde, para melhorar confiabilidade das informações. “Realizar uma busca coletiva pela padronização na forma como são lançados os dados de saúde em todos os níveis, começando pela ponta, ou seja, nos postos e hospitais públicos dos municípios”, diz. “De qualquer maneira, é importante reforçar a necessidade de se registrar todos os casos, sejam eles suspeitos ou confirmados, para se ter uma ideia mais precisa e oportuna sobre o estágio da pandemia em cada cidade”.
Evanildo da Silveira é jornalista