Pandemia prejudica mais produtividade de cientistas mães e negras

Questão de Fato
3 ago 2020
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Não há como negar que a pandemia da COVID-19 afeta, de uma forma ou de outra, a maioria dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta. Do ponto vista profissional, no entanto, nem todos sentem os efeitos com a mesma intensidade. Um exemplo é o grupo específico dos cientistas – pelo menos no Brasil. Um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) constatou que as pesquisadoras negras (independentemente de terem filhos ou não) e brancas com filhos (especialmente, crianças com idade até 12 anos) são os grupos mais impactados pela pandemia em termos de produtividade acadêmica. Em contrapartida, a produção masculina (principalmente de homens que não são pais) tem sido a menos prejudicada neste período.

A pesquisa foi realizada pelo grupo Parent in Science, composto por pesquisadores da UFRGS e de outras universidades, e investigou como os fatores “gênero” e “raça” afetam a produção de cientistas brasileiros durante a pandemia de COVID-19. “Mulheres negras, com e sem filhos, e brancas com filhos têm sido as mais impactadas no trabalho remoto”, diz a pesquisadora Rossana Soletti, da UFRGS, que participou do estudo.

De acordo com ela, esses grupos também são os que menos têm conseguido submeter seus artigos científicos já planejados para publicação. “Enquanto somente 50% das mulheres conseguiram fazer isso, para os homens esse índice foi de 70%”, aponta. “A idade dos filhos também é um fator muito importante: somente 28,8% das pesquisadoras que são mães têm conseguido fazer isso, enquanto entre os homens com filhos da mesma idade, esse índice é de 52,4%”.

A coordenadora do Parent in Science, Fernanda Stanisçuaski, também da UFRGS, diz que o grupo surgiu a partir da sua experiência pessoal, depois de se tornar mãe. “Comecei a enfrentar uma série de dificuldades, principalmente em relação ao tempo de dedicação para o laboratório, mesmo após a licença maternidade”, conta. “E não ouvia ninguém falando sobre isso. O máximo que diziam é que ‘é difícil, mas dá’. Comecei a me questionar sobre ser capaz de conciliar ser mãe e cientista. Aí, um dia, fiz um post em uma rede social, sobre como estava pagando um preço alto (principalmente em relação a conseguir recursos para o laboratório) pela escolha de me dedicar aos meus filhos. E muitas outras pessoas começaram a comentar que estavam passando pela mesma situação”.

Então, junto a algumas destas pessoas, ela fundou o Parent in Science. “Nosso objetivo inicial era, de alguma maneira, buscar recursos para criar um fundo de pesquisa específico para cientistas mães”, lembra. “Mas nos deparamos com um obstáculo: não tínhamos dados, principalmente quantitativos, sobre o impacto da maternidade na carreira científica no Brasil. Mesmo em termos mundiais, a quantidade de dados era limitada”.

Por isso, segundo Fernanda, o Parent in Science virou um projeto de pesquisa, que visa entender o impacto da chegada dos filhos, em termos de produção científica e obtenção de financiamento, na carreira de cientistas no Brasil. “Nosso grupo sempre foi focado em ações”, destaca. “Buscamos, junto às nossas agências de fomento e instituições, o desenvolvimento de políticas de apoio para cientistas mães. Hoje, o grupo é formado por 16 cientistas (15 mulheres e um homem) de diferentes instituições brasileiras”.

No caso específico do estudo atual, Rossana diz que a ideia surgiu logo no início da pandemia, quando começou o isolamento social. “No grupo, ficamos muito sobrecarregadas com a rotina de trabalho remoto, cuidados com as crianças e aulas online da escola”, relata. “Além disso, logo começaram a surgir declarações de alguns editores de revistas científicas, a respeito da baixa submissão de artigos científicos por mulheres”.

Fernanda complementa: “Quando iniciou o período de isolamento social, começamos (nós do grupo do Parent) a ter problemas em finalizar nossas tarefas relacionadas ao trabalho, pois estávamos com as crianças em casa o dia todo, tendo que auxiliar em tarefas escolares e tudo mais”, explica. “A primeira preocupação que tivemos foi com nossas alunas de pós-graduação, e a cobrança para cumprir prazos de defesa. Como escrever uma tese ou dissertação com crianças pequenas em casa?”

A pesquisa foi feita por meio de um formulário online, disponibilizado no site do grupo e cujo link foi compartilhado em mídias sociais e no Whatsapp. “Tivemos três tipos de questionários: para alunos de pós-graduação; pós-doutorandas e pós-doutorandos; e para docentes/pesquisadores”, explica Rossana. “Ao todo, tivemos mais de 14 mil respostas”.

Os resultados do levantamento apontam para a desigualdade de gênero. De maneira geral, as pesquisadoras disseram ter mais dificuldade de trabalhar em regime de home office. No caso de pós-doutorandos, por exemplo, apenas 13,9% das mulheres e 27,9% dos homens afirmaram estar conseguindo fazer isso. Essa desigualdade se repete nos outros grupos pesquisados: nos docentes, esse índice é de 8% delas e 18,3% deles; e nos alunos de pós-graduação, o índice não passa de 27% no caso das mulheres e de 36,4% dos homens.

Além do gênero, o fato de ser mãe ou pai influencia na produtividade dos cientistas. Entre os pós-doutorandos, apenas 2,2% das mães estão conseguindo trabalhar de casa. No caso das pesquisadoras sem filhos, o índice sobe para 25,1%. Mesmo para os homens, o fato de ter ou não filhos é uma variável relevante: 37,6% dos pós-doutorandos sem filhos conseguem realizar trabalho remoto, contra 4,2% dos homens com filhos.

Quanto às cientistas, outro ponto que parece influenciar na produtividade é a idade das crianças. O estudo mostrou que, entre elas, o índice de submissão de artigos é menor em relação ao planejado antes do isolamento social quando a pesquisadora tem filhos com menos de um ano de idade (32%) ou entre um e seis anos (28,8%). No caso dos homens com filhos, a submissão de artigos não varia tanto em razão da faixa etária das crianças.

 “Algo que chamou atenção foi o fato de não existir uma diferença, em relação a submissão de artigos, entre as cientistas negras com ou sem filhos, como vimos para as mulheres brancas, com ou sem crianças”, disse Fernanda. “Uma maior porcentagem de mulheres brancas não mães conseguiu submeter artigos durante a pandemia, quando comparadas às brancas mães. No entanto, para negras, não há esta diferença”.

Para ela, isso mostra que o racismo é um problema central na academia, com um peso muito grande para as mulheres. “Redes de colaboração são muito importantes no fazer ciência, especialmente neste momento da pandemia”, diz. “E, apesar de não avaliarmos isto diretamente neste levantamento, acreditamos que seja uma parte da razão desse cenário que vimos, em relação às submissões durante a pandemia. Esperamos, com nossos dados, fomentar a discussão de como diminuir estes impactos do isolamento social na carreira das cientistas”.

Em termos de políticas públicas, é necessário, segundo ela, que as agências de fomento prorroguem prazos. Em todos os aspectos, para editais de bolsas, de financiamento, para prestação de contas e entrega de relatórios. “Isso é fundamental para que aqueles que estejam envolvidos com cuidado neste momento não percam a chance de concorrer nesses editais”, diz Fernanda. “Além disso, a implementação das ações em relação à avaliação diferencial de currículos neles será mais necessária do que nunca”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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