Recentemente, a revista The Sunday Times publicou uma grande matéria alegando que os chineses já sabiam da existência de uma doença, causada por um novo coronavírus, pelo menos desde 2013, e especulando sobre alguns cenários para o início da pandemia de COVID-19. A matéria inicia descrevendo casos de pneumonia severa e outros sintomas semelhantes aos da COVID-19 em seis mineiros que haviam trabalhado removendo fezes de morcegos de uma mina de cobre abandonada próxima a Tongguan, província de Yunnan, em 2012, três dos quais morreram. Segundo a matéria, ainda no hospital, os sobreviventes foram testados para febre hemorrágica, dengue, encefalite japonesa, gripe e Síndrome Aguda Respiratória Grave (SARS), mas todos os resultados foram negativos. Amostras de sangue foram então enviadas ao Instituto de Virologia de Wuhan e teriam sido positivas para anticorpos de um coronavírus desconhecido, similar ao SARS-CoV – vírus que causou a pandemia de SARS em 2002/2003.
A possibilidade de emergência de uma nova linhagem de coronavírus teria então levado a equipe do Instituto de Virologia de Wuhan – liderada pela Dra. Zhengli Shi – a coletar centenas de amostras de fezes de centenas de morcegos na caverna para tentar localizar o possível vírus. Os primeiros resultados da investigação foram publicados em 2016, em um artigo científico liderado pela Dra. Shi, revelando que metade dos morcegos que tiveram amostras coletadas carreava diferentes coronavírus, incluindo uma nova linhagem similar ao SARS-CoV, nomeada RaBtCoV/4991.
Entretanto, no artigo científico não foi feita qualquer referência aos casos dos mineiros. Em janeiro deste ano, após o início da pandemia de COVID-19, um novo artigo da mesma equipe revelou que um coronavírus isolado de morcegos, nomeado RaTG13, possui 96,2% de similaridade genômica com o SARS-CoV-2 (Zhou et al. 2020). A matéria do Times sugere então que o RaTG13 seria o RaBtCoV/4991, questiona a troca do nome e o fato de as publicações nunca terem relatado os casos dos mineiros. Além disso, especula sobre uma possível infecção inicial a partir de pesquisas de campo da equipe do Instituto de Virologia de Wuhan.
A matéria do Times é um quebra-cabeças. Como dito acima, a parte sobre os coronavírus RaTG13 e o RaBtCoV/4991 se baseia em dois artigos científicos publicados pela Dra. Shi e sua equipe do Instituto de Virologia de Wuhan. O primeiro relata os resultados de levantamentos de coronavírus em morcegos cavernícolas, enquanto o segundo argumenta que o SARS-CoV-2 provavelmente se originou de morcegos, uma vez que outros coronavírus conhecidos de morcegos, dentre esses o RaTG13, seriam geneticamente bastante similares a ele.
A parte da história sobre os casos dos mineiros acometidos pela pneumonia severa e outros sintomas similares à COVID-19 vem de uma dissertação de mestrado de um jovem médico que foi orientado por outro médico que, na ocasião, trabalhava na emergência do hospital onde os mineiros foram atendidos. Já os possíveis resultados positivos para anticorpos de um novo coronavírus, similar ao SARS-CoV, vêm de uma terceira fonte – um artigo publicado por um aluno de doutorado do diretor do Centro para Prevenção e Controle de Doenças da China.
Esse conjunto de evidências é suficiente para afirmarmos que os pesquisadores chineses já conheciam o vírus causador da COVID-19? Definitivamente, não! Essa é a única resposta possível, com base nas evidências disponíveis. A elevada similaridade genômica entre o SARS-CoV-2 e o RaTG13 (96,2%) não significa que eles sejam o mesmo vírus. Apenas como exemplo, nós humanos, compartilhamos cerca de 98% de nosso genoma com chimpanzés, e ainda assim somos uma espécie de primata muito diferente.
A similaridade genômica entre esses dois vírus também não significa que ambos têm a mesma capacidade de infectar células humanas. O SARS-CoV-2 é capaz de entrar em células humanas se ligando à Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ECA2). O genoma do RaTG13 se distingue do SARS-CoV-2 principalmente na região de ligação ao receptor (RBD) da proteína Spike, que interage com a ECA2, o que indica que ele provavelmente não é capaz, ou tem baixa capacidade, de infectar células humanas, pelo menos via ECA2. Por isso, talvez, não tenha chamado a atenção dos pesquisadores na ocasião de sua descoberta.
Além disso, ainda não se conhecia o SARS-CoV-2 e, na ocasião, procuravam-se coronavírus geneticamente mais próximos ao SARS-CoV, causador da SARS. Tanto o SARS-CoV-2 quanto o RaTG13 são razoavelmente distantes do SARS-CoV, o que também poderia ter desviado a atenção dos pesquisadores. No entanto, a presença de anticorpos para um vírus similar ao SARS-CoV no mineiro testado certamente levantou a suspeita de que um novo tipo de coronavírus havia emergido e estava circulando, sendo a possível causa da morte deste e dos outros mineiros.
Pode-se até especular que o SARS-CoV-2 já estava circulando e causando quadros de síndrome aguda respiratória média a grave (similar aos observados na COVID-19) algum tempo antes de a doença e de seu agente causador serem identificados. Se realmente o vírus foi transferido de morcegos para os mineiros através de fezes, ele já poderia vir circulando, despercebido, por muito tempo, uma vez que fezes de morcegos são largamente usadas como adubo em várias regiões da Ásia. Entretanto, se isso for verdade, ainda assim o SARS-CoV-2 não foi isolado ou detectado em humanos em qualquer pesquisa anterior a 2019.
Com relação às mortes dos mineiros, não é possível afirmar ou negar que tenham morrido por uma doença causada por um coronavírus. O fato de terem anticorpos para coronavírus significa que entraram em contato com algum coronavírus em algum momento de suas vidas. Por outro lado, também não é possível descartar que tenham morrido por alguma infecção causada por fungos e não investigada, uma vez que doenças fúngicas como a histoplasmose – que ocorre em todo o planeta – são muito comuns em frequentadores de ambientes confinados com altas concentrações de fezes e urina, como cavernas.
Por fim, o artigo da Sunday Times sugere que o vírus possa ter sido levado para Wuhan pelo comércio de animais, ou por algum pesquisador que tenha se infectado durante pesquisas de campo para o Instituto de Virologia de Wuhan. Nenhuma dessas hipóteses pode ser descartada.
Ricardo Moratelli é pesquisador da Fiocruz Mata Atlântica, Fundação Oswaldo Cruz
Alessandra Filardy é pesquisadora do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, Universidade Federal do Rio de Janeiro