Especialistas condenam “kit contra COVID-19” de SC

Questão de Fato
8 jul 2020
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Organizações e grupos de pesquisa científica e prática médica de Santa Catarina, e nacionais, divulgaram nesta terça-feira, 7, carta aberta em que condenam a distribuição de um suposto “kit contra a COVID-19” contendo o vermífugo ivermectina, cloroquina e vitaminas, por algumas prefeituras do estado. O hipotético “protocolo de tratamento precoce” da doença - sem qualquer comprovação de eficácia e com riscos à saúde dos pacientes e ao controle da pandemia - foi defendido por um grupo de cerca de 300 médicos catarinenses também em carta enviada, nesta semana, ao governador Carlos Moisés (PSL) e ao secretário de Saúde, André Motta Ribeiro, com o objetivo de pressionar pela adoção em todo estado. Eleito em 2018 pelo mesmo partido em que estava o presidente Jair Bolsonaro, Moisés enfrenta o recrudescimento da pandemia de COVID-19 em Santa Catarina, com ameaça de colapso do sistema de saúde.

 “À medida em que a capacidade das UTIs de Santa Catarina chega ao limite para tratamento da COVID-19, duas importantes cidades do estado, Itajaí e Balneário Camboriú, e um grupo de médicos e médicas catarinenses apoiam supostos ‘protocolos de tratamento precoce’ desprovidos de fundamentos científicos”, diz o texto dos especialistas. “Tais iniciativas estimulam a aplicação de recursos de forma equivocada, geram falsas expectativas, falsa sensação de segurança na população, impactam negativamente na adesão às medidas reconhecidamente eficazes de proteção e prevenção do SARS-CoV-2, e, ainda, podem causar efeitos colaterais significativos”.

Na carta, encabeçada pela Secretaria Regional de SC da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-SC) e direcionada às autoridades públicas, profissionais de saúde e população catarinenses, os especialistas destacam mais uma vez a falta de evidências científicas de benefícios aos pacientes deste suposto tratamento precoce. No caso da ivermectina, por exemplo, eles lembram que até agora apenas um estudo realizado em laboratório (in vitro) indicou que o vermífugo pode inibir a replicação do vírus SARS-CoV-2, mas, mesmo assim, em doses muito superiores às aprovadas e seguras para uso em humanos.

“Além disso, na carta (os médicos catarinenses) mencionam ‘tratamento precoce da COVID-19’ com vitaminas C e D, oligominerais como o zinco e outros medicamentos, tais como cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, que têm ações comprovadas contra outras doenças, mas não contra a COVID-19”, continuam. “Os signatários da carta não apontam sequer um estudo de qualidade que embase tais proposições. O conteúdo da carta e as ações das prefeituras citadas vão na contramão dos órgãos reguladores de medicamentos do Brasil e do mundo, os quais pautam-se em critérios científicos para garantir a segurança dos pacientes e o bem-estar da população”.

Assim, embora reconheçam que o reposicionamento de medicamentos existentes para uso no tratamento da COVID-19 é uma estratégia importantíssima, os especialistas ressaltam que isso só é viável quando há comprovação de eficácia e segurança, por meio de estudos controlados, de forma a garantir maior benefício em comparação à não utilização. Eles citam como exemplo disso a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de alimentos e remédios dos EUA, que em 15 de junho revogou autorização de uso emergencial da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratamento da COVID-19 fora de contextos de pesquisa, e não indica o uso da ivermectina para prevenção ou tratamento da doença.

“A própria FDA aponta alguns dos efeitos colaterais que podem estar associados à ivermectina, os quais incluem erupção cutânea, náusea, vômito, diarreia, dor de estômago, edema facial ou dos membros, eventos adversos neurológicos (tonturas, convulsões, confusão), queda súbita da pressão arterial, erupção cutânea grave potencialmente exigindo hospitalização e lesão hepática (hepatite)”, complementam.

Outro problema da carta endereçada ao governador pelos profissionais de saúde defendendo o "kit", apontam os especialistas, é seu apelo à autonomia médica para sustentar a adoção do hipotético protocolo. Segundo eles, apesar de não ser proibido que os médicos prescrevam as vitaminas e medicamentos citados, “o que não se pode é assumir que estes são tratamentos precoces eficazes contra a COVID-19”.

“Neste caso, a autonomia que está em risco é a dos pacientes, que tomariam decisões sobre seu tratamento baseadas em opiniões, e não em fatos comprovados cientificamente”, frisam. “Ao serem estabelecidos protocolos municipais, estaduais ou nacionais sem comprovação científica, contraria-se a lógica da medicina baseada em evidências e os próprios princípios da ética médica, tais como primum non nocere (em primeiro lugar, não cause dano) e in dubio abstino (na dúvida, abstenha-se de tratar). Portanto, além de imprudente, o referido apoio ao protocolo é antiético e irresponsável”.

Assim, diante do cenário preocupante que Santa Catarina atravessa com a pandemia de COVID-19, a iniciativa do grupo de médicos e prefeituras do estado arrisca também minar a adoção de medidas sabidamente úteis e eficazes para conter a disseminação da doença, acusam os especialistas.

“Chama a atenção que em nenhum momento os médicos e médicas mencionam na carta, e os prefeitos em seus comunicados, ao menos uma medida eficaz para o controle da COVID-19, tais como testagem em massa e contact-tracing para isolamento e quarentena, distanciamento social e uso de máscaras por toda a população”, apontam. “Até o momento, essas são as únicas medidas com evidências científicas e aplicadas em diferentes países que possibilitaram reduzir o número de infecções, de internações hospitalares, de óbitos e a reabertura de setores da economia. Concordamos com os médicos e médicas que assinam a carta que ‘esse momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências disponíveis até então’. Mais uma vez, e exatamente por isso, devemos fazer uso de medidas que de fato irão ajudar no enfrentamento da COVID-19”.

Por fim, a carta dos especialistas salienta que a distribuição dos kits pelas prefeituras e a proposta de ampliação de seu uso pelo grupo de médicos representam um desperdício de recursos públicos com iniciativas ineficazes no combate à doença, tirando dinheiro de investimentos na ampliação das ações que comprovadamente auxiliam no controle da epidemia.

“Acabam, assim, por potencializar e agravar a crise sanitária que vivemos, causar efeitos colaterais indesejados em quem se submeter ao suposto ‘protocolo profilático’, além de retardar o controle da epidemia e, consequentemente, o retorno pleno dos setores econômicos e da vida social”, concluem. “O esforço de cientistas de todo o mundo tem permitido a contínua produção de novos conhecimentos. Protocolos e condutas clínicas devem ser reavaliados continuamente, mas sempre com ética e responsabilidade, baseando-se nas melhores evidências científicas disponíveis no momento”.  

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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