Relaxamento de restrições aumenta pressão sobre sistemas de saúde

Questão de Fato
22 jun 2020
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mapa transito

Nas últimas semanas de maio e início de junho, o trânsito aumentou cerca de 20% em cinco grandes cidades do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Manaus e Porto Alegre), todas com alto número de contaminados e mortos pela COVID-19. Isso indica que a população começou a circular antes mesmo de o relaxamento das medidas de isolamento ser efetivamente adotado por alguns municípios e estados. A constatação é de uma equipe de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que usou dados da intensidade do trânsito de veículos a partir do aplicativo Waze.

Os pesquisadores usaram sinais de localização do Global Positioning System, o popular GPS, de telefones celulares para medir a velocidade do trânsito e a ocorrência de engarrafamentos. Constaram que, desde meados de março (quando começou o isolamento social), houve uma grande redução do trânsito em todas as cinco metrópoles. Nas últimas semanas, no entanto, foi verificado um aumento médio de 20% nos engarrafamentos, principalmente em Manaus e Porto Alegre. Ocorreram principalmente de segunda a sexta-feira, mas nessas duas capitais foi constatado que o trânsito cresceu também nos fins de semana. 

Segundo o epidemiologista Diego Xavier, da Fiocruz, a equipe destacou as cinco capitais, mas tem dados para as regiões metropolitanas de todo o Brasil. “Esses dados consideram a questão do engarrafamento a partir de uma linha de base criada pelos desenvolvedores do Waze antes da epidemia”, explica. “Eles têm uma estimativa de congestionamento antes da pandemia, e depois observam se vai diminuindo ou aumentando. Nós constatamos que, nessas cidades, houve um aumento desse nível de engarrafamento antes mesmo do processo de reabertura, ou seja, antes de os governantes adotarem medidas de relaxamento”.

De acordo com Xavier, que faz parte do MonitoraCovid-19, um sistema criado por pesquisadores da Fiocruz e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que integra dados sobre o novo coronavírus no Brasil e no mundo, com o aumento no fluxo no trânsito o vírus também pode estar circulando com mais intensidade nas regiões metropolitanas, e se espalhando a partir delas para o interior. “Essas capitais podem exportar o vírus e importar doentes graves nas próximas semanas, devido ao relaxamento no isolamento social, como mostram os mapas de fluxo de internação”, explica.

Isso, na verdade, já está acontecendo, de acordo com os dados levantados pelos pesquisadores. Considerando os casos com registro de informações de município de residência e cidade de internação, foram 28.639 pacientes que tiveram que se deslocar, de um total de 126.037 registros, o que representa 22,8% do total de hospitalizações por síndrome respiratória aguda grave (SRAG).

De acordo com a nota técnica que a equipe do MonitoraCovid-19, esse aumento se verificou principalmente nos dias úteis da semana, “o que pode indicar retorno parcial de atividades laborais”. No entanto, em Regiões Metropolitanas como Porto Alegre e Manaus se observou também a ocorrência de engarrafamentos nos fins de semana, “quando a atividade laboral é bem menor”.

Xavier lembra que o aumento da circulação de veículos ocorre justamente num momento em que essas cidades apresentaram um padrão de crescimento tanto dos casos como das mortes. “Nesse sentido, o principal problema que identificamos é que a doença se interiorizou para os municípios menores, onde os casos estão aumentando muito”, diz. “Eles dependem das estruturas de saúde das cidades maiores, porque não há condições, e nem seria racional do ponto de vista econômico, colocar UTI em todos os municípios do Brasil. Então, para um serviço mais complexo, as pessoas têm que se deslocar para atendimento nos maiores”.

Segundo Xavier, a curva de casos ainda é ascendente nos municípios maiores, mas mesmo assim foram adotadas medidas de relaxamento do isolamento social. “A população já estava bastante cansada de estar em quarentena e acabou saindo mais”, diz.

“Com os serviços não essenciais sendo liberados, as pessoas estão circulando mais nas ruas nessas cidades maiores. O cenário que observamos, mas torcemos para que não se realize, é um aumento dos casos nas grandes cidades, num momento que a doença chega com força ao interior. Então os municípios maiores, as capitais, vão precisar atender, além dos seus residentes, a população que vai se deslocar dos pequenos em busca de atendimento. Se confirmada essa situação, a probabilidade que haja colapso do sistema de saúde nas capitais aumenta significativamente”.

Na nota técnica, os pesquisadores dizem que nos próximos meses, em virtude do relaxamento das medidas de isolamento social, haverá um aumento de fluxo de veículos e pessoas nas ruas, o que deve ser monitorado por meio de tecnologias e fontes de dados apropriadas. “Além disso, esses estudos permitirão traçar estratégias seletivas de contenção da circulação de pessoas e veículos”, dizem eles.

A equipe do MonitoraCovid-19 alerta ainda que, à medida que aumenta a circulação das pessoas nas grandes cidades e áreas metropolitanas, é provável que os casos graves da doença demandem cuidados intensivos para populações dessas áreas. “Esse cenário, somado ao processo de interiorização e consequentemente o aumento do envio de pacientes para cidades maiores, configura um panorama preocupante quanto ao limite da capacidade dos sistemas de saúde”, escrevem.

Para Xavier, antes do relaxamento das medidas de isolamento seria necessária uma diretriz nacional. “Mas não tem havido uma conversa entre as esferas governamentais para traçar essas estratégias de forma clara, elaborar protocolos e criar uma rotina para esse novo problema de saúde que estamos tendo que enfrentar”, diz. “E o mais importante: temos um volume de testes muito baixo. O Brasil testa muito pouco, por isso não sabemos o tamanho do problema. Então, não se sabe nem o ritmo real de crescimento dos casos. No básico, estamos testando mais os casos mais graves. Para se ter uma ideia, no Brasil, 37% dos testes que o país realiza dão positivo, e isso não é esperado nos outros países. Por quê? Porque estamos testando casos graves. Se testamos somente casos graves, a probabilidade de achar a doença é muito maior”.

Por isso, Xavier diz que o Brasil precisa aumentar o número de testes para depois pensar em alguma medida de relaxamento. “Estamos observando exatamente o contrário, no entanto. A população circulando mais, sem os devidos cuidados”, lamenta. “Há problemas estruturais históricos no Brasil, como o transporte público, por exemplo, que a doença está tornando ainda mais evidentes. Não é razoável que se peça que as pessoas relaxem o isolamento e voltam a trabalhar se o transporte público é precário e elas inevitavelmente se aglomeram nele. Nas próximas semanas e meses talvez o cenário se complique”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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