Uma das coisas curiosas revelada nesta época de pandemia foi o aparecimento de diversos especialistas em análise de dados para fazer previsões sobre a doença. A fascinação da descoberta de que programas de ajuste de dados possuem diversas facilidades não teria maiores implicações, se não resultasse em análises equivocadas que são utilizadas para tomadas de decisão em políticas públicas.
Quando o governo divulgava os dados da COVID-19, sem a intenção explícita de tentar mascarar os números, era possível verificar no portal do Ministério da Saúde alguns gráficos sobre a evolução dos óbitos ao longo do tempo onde o procedimento para construção da curva era, no mínimo, estranho. As mortes eram colocadas de acordo com a data em que o exame PCR, que detecta a presença do vírus, era informado. Por exemplo, se os resultados dos exames de duas pessoas fossem liberados no mesmo dia, mas elas morressem em dias diferentes, as mortes eram contabilizadas no mesmo dia.
Existem diversos problemas ao se contabilizar as mortes dessa maneira. É difícil estabelecer alguma estratégia de ação se as curvas precisam ser constantemente corrigidas por causa dos óbitos que aconteceram após os resultados dos exames, ou pelo atraso na obtenção do resultado dos testes. O número reduzido de testes realizados também subestima consideravelmente o total de óbitos. É claro que a utilização de uma curva ruim para a tomada de decisões tem grande chance de resultar em decisões ruins - um exemplo disso é a decisão, errada, da flexibilização do isolamento social ainda na fase de crescimento da curva de óbitos e contaminados.
Em meio a essa avalanche de políticas públicas e análises ruins, temos o excelente artigo do Prof. Carlos Henrique de Brito Cruz, aceito para publicação na Revista Brasileira de Epidemiologia. O artigo "Distanciamento Social no estado de São Paulo: uso de série temporal dos óbitos devidos à COVID-19 para demonstrar a redução de casos" (PDF) aponta claramente a necessidade e a eficiência do distanciamento social na redução do número de óbitos.
A análise proposta pelo Prof. Brito utiliza a data da morte e não a data do teste PCR. Os dados foram acessados a partir da base da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Na construção do gráfico foram incluídas as mortes atribuídas à COVID (suspeitas e confirmadas) e o excesso de mortes em decorrência de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em comparação com 2019. A figura para o estado de São Paulo demonstra a eficiência do efeito do isolamento social na diminuição das mortes. A curva do número de mortes ao longo dos dias mostra uma diminuição drástica na taxa de crescimento de óbitos, em torno de 17 dias após o início do isolamento.
O primeiro gráfico, acima, mostra os dados do estado de São Paulo (mortes por COVID-19 e excesso de mortes por síndrome respiratória) lançados na data real de óbito; o segundo, os dados estaduais tal como apresentados atualmente. Fonte: DOI: 10.1590/1980-549720200056
A importância do isolamento verificada no artigo não fica clara quando a contabilização das mortes é feita levando-se em conta a data em que o resultado do teste PCR foi informado (método utilizado pelo governo). Isso mostra que os gestores estão analisando os dados da maneira errada para deliberar sobre as questões do isolamento social e demais assuntos relacionados à pandemia.
A diferença das curvas feitas utilizando-se os dados da Arpen e dos testes PCR não se reflete apenas na visualização do patamar que mostra a interrupção no crescimento do número de mortos, mas também no total absoluto do número de mortos. O número total de mortos entre os dias 17 de março e 27 de abril proveniente dos cartórios dá um total de 3.293, enquanto a conta do governo retorna 1.825 mortes.
A mesma conclusão a respeito da importância do distanciamento social reflete-se nas curvas para a cidade de São Paulo. Se a análise for feita considerando-se todo o Brasil, a curva apresenta um comportamento ligeiramente diferente - o plateau decorrente da quarentena apresenta-se mais estreito. Isso mostra, provavelmente, que a avaliação da situação do isolamento deve ser feita considerando-se cada estado e cidade separadamente.
É preocupante que em pleno crescimento dos casos e mortes os governantes estejam iniciando um afrouxamento da quarentena com base em indicadores inadequados, com problemas de transparência e provavelmente analisados de maneira incorreta. A maneira proposta pelo Prof. Brito para analisar a evolução das mortes deveria ser adotada o mais rápido possível pelos governantes para o estabelecimento de políticas públicas.
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência