O professor de virologia da USP Paolo Zanotto enviou ao site “Brasil Sem Medo” uma lista de cinquenta supostos estudos científicos que estariam na base de sua defesa intransigente do uso da hidroxicloroquina (HCQ) como medicação para casos iniciais da COVID-19.
Uma análise detalhada do conteúdo da lista, no entanto, revela inúmeros problemas, como referências duplicadas (ou triplicadas, ou quadruplicadas), trabalhos irrelevantes – artigos especulativos, peças de opinião, textos de virologia sem nenhuma relação com o vírus SARS-CoV-2, textos sobre moléculas semelhantes à HCQ usadas em contextos que nada têm a ver com a pandemia –, trabalhos sobre o efeito antiviral da hidroxicloroquina em células VERO (de rins de macacos, resultados que não se traduzem automaticamente para doenças respiratórias em seres humanos) e alguns trabalhos que até seriam relevantes para a situação atual, se atendessem a algum critério mínimo de qualidade científica.
Abaixo, a análise da lista dos “50 estudos que comprovam a eficácia da cloroquina”, segundo a que foi apresentada, em forma de vídeo, no canal do YouTube Café e Ciência.
As primeiras quinze referências: todos os estudos apresentados nos itens 1 a 15 da lista publicada pelo “Brasil Sem Medo” são cópias diretas, control+C, control+V, das referências do estudo número 16 – que não é um estudo, mas uma peça de opinião. Desses, o estudo 14 não é estudo, é a página de base de dados “3D Macromolecular Structures”. Parece claro que o processo de “copia e cola” foi uma tentativa de inflar a lista artificialmente.
Passamos agora para a referência 23, que é especialmente relevante – não como trabalho científico, mas como parte do contexto político atual, construído em torno do uso da hidroxicloroquina na pandemia:
23. Van Thuan Hoang, Valérie Giordanengo, Vera Esteves Vieira, Hervé Tissot Dupont, Philippe Colson, Eric Chabriere, Bernard La Scola, Jean-Marc Rolain, Didier Raoult, Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial, International Journal of Antimicrobial Agents (2020), https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920300996?via%3Dihub
Esse foi o estudo que acabou caindo nos ouvidos de Elon Musk e Donald Trump, e popularizou a ideia de que antimaláricos poderiam curar a COVID-19. Foram demonstrados diversos problemas com o trabalho, em várias frentes, de ordem ética, sobre o histórico de um dos autores e na metodologia do artigo.
Começando pela ética em publicação, entre os autores estão o editor-chefe da revista em que o estudo foi publicado, Jean-Marc Rolain, e Didier Raoult, que é chefe de Rolain no instituto que desenvolveu o estudo, o que levanta dúvidas sobre a motivação da publicação tão apressada do artigo pela revista — a revisão por pares foi “feita” em menos de 24 horas, e a versão revisada publicada no dia seguinte.
Quanto à metodologia, o estudo não foi randomizado (os pacientes foram escolhidos a dedo), não foi controlado (os dezesseis pacientes do grupo de controle foram tratados em clínicas distintas) e só foi aprovado pelo comitê de ética depois de começado. Os resultados de alguns pacientes (incluindo um que morreu) foram excluídos, sem explicação, da avaliação final da eficácia desses medicamentos, sendo que estes resultados alterariam a conclusão do estudo, mostrando nenhuma diferença significativa entre o grupo de estudo e o de controle. Além disso, alguns dos pacientes do grupo de controle foram, também sem explicação, testados para COVID-19 de maneira diferente dos demais, o que introduz viés nos resultados.
Demais problemas metodológicos podem ser encontrados na referência [1], que discute o artigo e o Dr. Raoult em detalhe, e na referência [2] que é a página PubPeer (local onde cientistas fazem revisão de artigos após a publicação) do artigo em questão.
Já no que se refere ao currículo do autor: o Dr. Didier Raoult tem um histórico enorme de alteração, enviesamento e/ou falsificação de dados em artigos, chegando a ter sido banido de publicar em uma dúzia de revistas importantes de microbiologia em 2006 por isso. Também tem histórico de cometer e acobertar assédio sexual e abuso psicológico com alunas e alunos de seu laboratório. Além de tudo isso, é negacionista do aquecimento global, da teoria evolucionista de Darwin e da própria COVID-19, chegando a dizer que ela “mata menos que acidentes de patinete”. Essas informações podem ser encontradas todas compiladas (e com fonte) numa sequência de posts no Twitter feita por Leonid Schneider [3].
Não bastando tudo isso, a própria revista onde o estudo foi publicado criticou duramente o trabalho, dizendo que não está à altura de seus padrões de publicação [4]. Aí, para levantar ainda mais dúvidas sobre as motivações do estudo, o instituto que o produziu tem parceria/patrocínio da Sanofi [5], que produz a cloroquina para venda sob os nomes Plaquenil e Plaquinol.
REFERÊNCIAS:
[2] https://pubpeer.com/publications/B4044A446F35DF81789F6F20F8E0EE
[3] https://twitter.com/schneiderleonid/status/1242889208651448322
[4] https://www.isac.world/news-and-publications/official-isac-statement
[5] https://www.mediterranee-infection.com/en/institute/partners/
Prosseguindo...
E agora, passamos para a referência de número vinte e cinco.
25. Elisabeth Mahase. Covid-19: what treatments are being investigated? BMJ 2020;368:m1252 doi: 10.1136/bmj.m1252 (Published 26 March 2020). https://www.bmj.com/content/368/bmj.m1252
Vamos olhar alguns trechos do próprio artigo:
“While [chloroquine] has previously been tested in vitro against a number of viruses, including SARS, and found to inhibit growth, no benefit has been seen in animal models. In a limited way, the drug has been tested against SARS-CoV-2—the cause of covid-19—and has reportedly been found ‘highly effective,’ although the evidence is still limited, with much of the data unpublished.”
“Apesar de a cloroquina ter sido anteriormente testada in vitro contra diversos vírus, incluindo o da SARS, e ter sido descoberto que ela inibia o crescimento deles, nenhum benefício foi observado em modelos com animais. De modo limitado, o medicamento foi testado contra o SARS-CoV-2 — a causa da covid-19 — e chegou a ser relatado que ela é ‘altamente eficaz’, apesar de que a evidência ainda é limitada, com a maior parte dos dados ainda não publicados.”
Aí, mais um pouco pra frente, tem:
“[...] while the early results are ‘promising’ they have ‘yet to be fully scrutinised, and, of course, it is essential to conduct other, larger controlled trials to determine accurately the effectiveness of chloroquine as a treatment for covid-19.’ [...]”
“[...] apesar de os resultados preliminares serem ‘promissores’ eles ‘ainda precisam ser avaliados detalhadamente, e, claro, é essencial conduzir outros ensaios controlados maiores para determinar precisamente a eficácia da cloroquina como tratamento para a covid-19.’ [...]”
E AINDA TEM MAIS!!!
“[...] Paul Garner, from the Liverpool School of Tropical Medicine, warned that there is currently ‘absolutely no evidence that chloroquine is effective in people infected with coronavirus’ and said it should ‘not be given outside the context of a randomised controlled trial.’”
“[...] Paul Garner, da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, avisou que não há atualmente ‘absolutamente nenhuma evidência de que a cloroquina é eficaz em pessoas infectadas com coronavírus’ e disse que ela ‘não deve ser administrada fora do contexto de um ensaio controlado randomizado.’”
Ou seja: O PRÓPRIO ARTIGO LISTADO fala que não existem provas concretas que a cloroquina funciona contra a COVID-19!
Mais erros e duplicações
26. Chloroquine and hydroxychloroquine: Current evidence for their effectiveness in treating COVID-19
Provavelmente, as referências deste artigo de revisão da literatura foram copiadas e coladas para inflar um pouco mais a lista dos 50 estudos publicados no “Brasil Sem Medo”. A referência número três da revisão virou a 27 do “Brasil Sem Medo”. E o método segue:
Referência quatro da revisão virou referência 28 no “Brasil Sem Medo”. Referência cinco da revisão virou referência 29 no “Brasil Sem Medo”. Referência seis da revisão virou referência 30 no “Brasil Sem Medo”. Referência sete da revisão virou referência 31 no “Brasil Sem Medo”. Foram reproduzidas exatamente na mesma ordem!
A lista publicada no site também canibaliza a si mesma:
Referência 1 É A MESMA QUE A Referência 32
Referência 8 É A MESMA QUE A Referência 30
Referência 18 É A MESMA QUE A Referência 33
Referência 21 É A MESMA QUE A Referência 38
Referência 23 É A MESMA QUE A Referência 34
Este artigo 34 é o “clássico” de Didier Raoult que já vimos como referência 23, só que os autores aparecem em uma ordem diferente, o que evidencia, mais uma vez, que quem organizou a lista sequer se deu ao trabalho de ler os títulos do que ia catando.
Preprints
Um monte de artigos dessa lista é preprint, ou seja, não passou pela revisão por pares.
Referência 22
Referência 24
Referência 37
Referência 39
Referência 43
Referência 44
Referência 45 (Os próprios autores do estudo removeram-no do Medrxiv e pediram que não fossem citados!)
Referência 46
Referência 48
Referência 49
Referência 50
Tudo preprint, sem revisão. Nenhuma conclusão forte pode ser tirada de nenhum desses estudos.
O que dá para tirar dessa lista? Sobre a eficácia (ou não) da cloroquina/hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, nada. Trata-se apenas de um amontoado desconexo e desorganizado de referências, com inúmeras repetições, construído de forma desleixada e, provavelmente, na esperança de que ninguém fosse se dar ao trabalho de conferir os detalhes.
Este é o panonara geral, e já dá para encerrar a leitura por aqui. Quem quiser os resumos e comentários mais específicos sobre cada artigo, pode seguir para a próxima seção.
Os artigos, em detalhes
1. Savarino A, Boelaert JR, Cassone A, Majori G, Cauda R. Effects of chloroquine on viral infections: an old drug against today’s diseases? Lancet Infect Dis 2003; 3: 722–27.
Para começo de conversa, esse não é um artigo científico, é um “Personal View”. No The Lancet, onde foi publicado, “Personal View” é descrito como “revisões mais curtas contendo informação mais baseada em opiniões”. Ou seja, é conteúdo que tem sua importância, mas não é conteúdo científico que se leva como prova da eficácia de um medicamento.
Esse artigo é de 2003 e, portanto, sequer tem relação com a COVID-19, que surgiu em, como o nome indica, 2019. De qualquer modo, ele trata de possíveis propriedades antivirais da cloroquina, “inibindo [...] a replicação de diversos vírus, incluindo membros dos flavivírus, retrovírus e coronavírus”. Contudo, isso não significa que, por consequência, há atividade antiviral contra o SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19.
O artigo trata, principalmente, da possibilidade de inibição do HIV, vírus causador da Aids. O texto sequer produz resultados de ensaios clínicos, demonstrando apenas a inibição in vitro do HIV.
No final, o artigo propõe uma hipótese (mas não a testa) do uso da cloroquina como tratamento clínico da SARS, doença que teve um surto entre 2002 e 2004 e era causada pelo SARS-CoV ou SARS-CoV-1, “precursor” do SARS-CoV-2 que causa a COVID-19 — isso é o mais próximo que esse estudo chega (e poderia chegar) de falar sobre a COVID-19.
Na seção em que trata desta hipótese, o estudo descreve que ela foi apenas proposta a partir do conhecimento de certos efeitos da cloroquina em alguns vírus e sobre a resposta imunológica, propondo que o medicamento pode ajudar, principalmente por meio de propriedades anti-inflamatórias, em uma tentativa de proteger o paciente de uma resposta imunológica exagerada que provoca dano aos pulmões (tempestade de citocina). Ou seja, o artigo propunha a cloroquina como uma medida contra um dos sintomas da SARS, com pouca ação direta contra o vírus. De qualquer modo, como foi mencionado, essa hipótese sequer foi testada nesta publicação.
2. Joshi SR, Butala N, Patwardhan MR, Daver NG, Kelkar D. Low cost anti-retroviral options: chloroquine based ARV regimen combined with hydroxyurea and lamivudine: a new economical triple therapy. J Assoc Phys India 2004; 52: 597–598. https://www.japi.org/july2004/Correspondence.pdf
Assim como o anterior, esse estudo pré-data a COVID-19 e não é artigo científico, é uma correspondência à revista. Foi publicado em 2004 em um jornal indiano, buscando um tratamento eficaz e mais economicamente acessível para o HIV, tendo em vista que o coquetel antiaids mais comum tinha preço inacessível para a maioria da população indiana na época. Novamente, esse estudo não tem nem como comprovar a eficácia da (H)CQ contra a COVID-19, e sequer menciona a família dos coronavírus.
3. Lori F, Foli A, Groff A, et al. Optimal suppression of HIV replication by low- dose hydroxyurea through the combination of antiviral and cytostatic (‘virostatic’) mechanisms. AIDS 2005; 19: 1173–81.
Do mesmo modo que a referência 2, esse artigo pré-data a COVID-19 e, na verdade, fala de tratamento do HIV. Mas para piorar, esse artigo nem fala de cloroquina! Uma simples busca pelo artigo (Ctrl+F) não encontra qualquer referência à cloroquina.
4. Paton NI, Aboulhab J. Hydroxychloroquine, hydroxyurea and didanosine as initial therapy for HIV-infected patients with low viral load: safety, efficacy and resistance profile after 144 weeks. HIV Med 2005; 6: 13–20.
Mais um artigo que pré-data a COVID-19 e na verdade fala de tratamento contra a Aids. O texto diz que a (H)CQ possui atividade antirretroviral, inibindo a modificação de uma proteína durante o ciclo de replicação do vírus e, deste modo, desativando partículas virais novas. Contudo, o SARS-CoV-2 não é da família dos retrovírus, não exibindo qualquer atividade retroviral, tornando este artigo completamente irrelevante para a discussão da (H)CQ contra a pandemia atual.
5. Luchters SMF, Veldhuijzen NJ, Nsanzabera D, et al. A phase I/II randomised placebo controlled study to evaluate chloroquine administration to reduce HIV-1 RNA in breast milk in an HIV-1 infected breastfeeding population: the CHARGE Study. XV International Conference on AIDS; Bangkok, Thailand; July 11–16, 2004. Abstract TuPeB4499.
Este estudo parece ter sido uma apresentação em uma conferência, não sendo possível encontrar o texto ou conteúdo dele. Foram encontrados apenas outros artigos referenciando-o. Mas, mais uma vez, com base no título, é um estudo de mais de uma década antes da pandemia e que fala sobre a (H)CQ contra o HIV, sem nem a mais remota das relações com os coronavírus ou com a COVID-19. Um artigo (referência [1] abaixo) possui uma tabela compilando o resultado de vários outros estudos, incluindo este, sobre a eficácia da (hidroxi)cloroquina contra diversas infecções virais. A linha desta tabela referente a esse estudo diz que o ensaio clínico nele apresentado não mostrou eficácia contra o HIV.
REFERÊNCIA:
[1] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/cbf.3182
6. Savarino A, Lucia MB, Rastrelli E, et al. Anti-HIV effects of chloroquine: inhibition of viral particle glycosylation and synergism with protease inhibitors. J Acquir Immune Defic Syndr 1996; 35: 223–32.
Este estudo aqui foi publicado em 2004, não em 1996, como consta na referência. De uma forma ou de outra, nenhuma correlação com a COVID-19 ou com qualquer coronavírus. O estudo mais uma vez verifica a eficácia da cloroquina contra o HIV in vitro, constatando que há ação contra o HIV de maneira correlacionada à dose, funcionando também em sinergia com inibidores da protease viral (indinavir, ritonavir, saquinavir) em concentração semelhante à encontrada no plasma sanguíneo de quem toma CQ contra malária.
7. Keyaerts E, Vijgen L, Maes P, Neyts J, Van Ranst M. In vitro inhibition of severe acute respiratory syndrome coronavirus by chloroquine. Biochem Biophys Res Commun 2004; 323: 264–68.
Mais uma vez, artigo de 2004 que não trata da COVID-19. O estudo avalia a inibição por meio da cloroquina do SARS-CoV-1, vírus que provocou o surto de SARS em 2002–2004. A semelhança desse vírus com o SARS-CoV-2 da pandemia atual faz este estudo parecer promissor para a CQ, mas algumas observações têm que ser feitas.
Primeiro, mesmo levando em conta a semelhança entre os vírus, não se pode simplesmente extrapolar os resultados de um para o outro. Os vírus são semelhantes, porém ainda diferentes o suficiente para que o que funciona para um não necessariamente funcionar para o outro.
Segundo, os testes foram efetuados in vitro. Estudos in vitro possuem sim sua validade, mas não se pode diretamente extrapolar as conclusões in vitro para in vivo sem que antes seja feito um estudo como um ensaio clínico.
Por fim, os ensaios foram feitos com células do tipo Vero E6. As células da linhagem Vero foram isoladas do epitélio renal de um macaco verde africano (Chlorocebus sp.), não de humanos, e nem de pulmões. Mais uma vez, por mais que haja semelhanças entre as espécies, a extrapolação dos dados não é possível sem um estudo mais específico.
8. Vincent MJ, Bergeron E, Benjannet S, et al. Chloroquine is a potent inhibitor of SARS coronavirus infection and spread. Virol J 2005; 2: 69. https://virologyj.biomedcentral.com/articles/10.1186/1743-422X-2-69
Quase exatamente a mesma coisa do anterior. Artigo, publicado em 2005, avaliando a CQ contra o SARS-CoV-1 do surto de 2002–2004. Este estudo também faz essa avaliação por meio de testes in vitro com células Vero E6, e confirma eficácia nestas condições. Os autores vão além e também testam o cloreto de amônio (NH4Cl) nas mesmas condições e verificam efeito semelhante, sendo observada grande redução na replicação do vírus nestas células. Em suma, esta referência possui exatamente os mesmos problemas para extrapolação de seus resultados que a anterior.
9. Miller DK, Lenard J. Antihistaminics, local anesthetics, and other amines as antiviral agents. Proc Natl Acad Sci USA 1981; 78: 3605–09.
Esse estudo aqui é de 1981 (38 anos antes da COVID-19) e trata da comparação da atividade antiviral entre anti-histamínicos, anestésicos locais e cloroquina. No entanto, uma simples busca no estudo mostra que não há sequer menção a coronavírus ou qualquer coisa do tipo.
O contexto em que a cloroquina se encaixa nesse estudo tem relação às semelhanças entre ela e os outros dois agentes citados na inibição da infecção de células BHK (de hamsters) pelo vírus da estomatite vesicular, por uma linhagem do vírus da gripe e por outros dois vírus completamente distintos dos coronavírus.
10. Shibata M, Aoki H, Tsurumi T, et al. Mechanism of uncoating of inuenza B virus in MDCK cells: action of chloroquine. J Gen Virol 1983; 64: 1149–56.
Este é um estudo de 1983 em que se discute um mecanismo de uncoating, processo em que o capsídeo (cápsula proteica que envolve o núcleo do vírus) é removido, relacionando esse mecanismo com a ação da cloroquina. O estudo fala sobre a exposição das células MDCK (de cães) infectadas pelo vírus Influenza B à cloroquina no momento da infecção e discute cenários distintos, como depois de mais de 15 minutos após a infecção.
Novamente, uma simples busca pelo artigo mostra que as palavras coronavirus, COVID-19 e SARS nem são mencionadas. Não há NENHUMA relação com a pandemia que está ocorrendo agora. Isto é, embora possa servir de estudo para efeitos da cloroquina, não podemos inferir nada de forma direta no sentido desse estudo sobre Influenza B e cloroquina “provar” a eficácia da cloroquina para a COVID-19.
11. Donatelli I, Campitelli L, Di Trani L, et al. Characterization of H5N2 influenza viruses from Italian poultry. J Gen Virol 2001; 82: 623–30. https://www.microbiologyresearch.org/content/journal/jgv/10.1099/0022-1317-82-3-623
Este estudo é de 2001, e discute a caracterização dos vírus influenza H5N2 na Itália. O assunto tem relação com a gripe aviária e com as aves de capoeira — aves domesticadas, mantidas por humanos por seus ovos, carne ou penas. O artigo trata de investigações sobre a possível origem do vírus H5N2. Não tem absolutamente nenhuma relação com cloroquina.
12. Jones G, Willett P, Glen RC, Leach AR, Taylor R. Development and validation of a genetic algorithm for flexible docking. J Mol Biol 1997; 267: 727–48.
Esse estudo não tem relação com cloroquina nem coronavírus. O estudo é voltado a um problema denominado docking problem, que se refere à ligação de pequenas moléculas a macromoléculas de estrutura tridimensional. O artigo discute algoritmo genético, reconhecimento molecular e design de medicamentos com um programa desenvolvido chamado GOLD (Genetic Optimisation for Ligand Docking).
13. Kwiek JJ, Haystead TA, Rudolph J. Kinetic mechanism of quinone oxidoreductase 2 and its inhibition by the antimalarial quinolines. Biochemistry 2004; 43: 4538–47.
Este estudo, de 2004, tem relação com a cloroquina, mas no contexto de se estudar diferentes quinolinas antimalariais — a cloroquina é um molécula da classe das quinolinas — e seu efeito inibidor de uma enzima específica. Lendo o estudo, vê-se que sempre se fala sobre cloroquina, quinacrina (mepacrina) e primaquina, diferentes antimalariais estudados ao longo do tempo. Não há relação alguma com coronavírus, COVID-19 e, aliás, a palavra vírus sequer aparece no estudo.
14. National Center for Biotechnology Information. MMDB—Entrez’s Structure Database. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/Structure/MMDB/mmdb.shtml (accessed Dec 14, 2005).
Esse 14 chega a ser piada. O link é apenas a Base de Dados de Modelagem Molecular do Centro Nacional para Informação em Biotecnologia americano. Ou seja, foi colocado na lista só para encher espaço.
15. Olofsson S, Kumlin U, Dimock K, Arnberg N. Avian influenza and sialic acid receptors: more than meets the eye? Lancet Infect Dis 2005; 5: 184–88.
Assim como a primeira referência, não é artigo científico, é um “Personal View”. Mais uma vez, não significa que não possui valor, uma vez que está numa revista científica de prestígio reconhecido, e essas publicações são interessantes para estimular uma possível pesquisa e discutir possíveis hipóteses, mas não podem ser encaradas como “prova da eficácia” de um medicamento. De qualquer maneira, a publicação não contém nada sobre cloroquina. Este texto discute infecções oculares e respiratórias por uma gama de vírus Influenza aviários.
O estranho é que o link original do DOI (http://doi.org/10.1016/s1473-3099(05)01311-3) não funciona. Leva a uma página com erro 404, como se tivesse sido apagado da revista.
16. Savarino A, Di Trani L, Donatelli I, Cauda R, Cassone A. New insights into the antiviral effects of chloroquine. The Lancet Infectious Diseases Vol. 6 February 2006.
Primeiramente, não é artigo científico. É um “Reflection”. De acordo com The Lancet, esses textos podem ser, por exemplo, várias peças que abordam a saúde e a medicina na sociedade, incluindo resenhas de livros, filmes, peças de teatro e exibições, além de peças escritas por pacientes. Essas peças são encomendadas pelos editores da revista.
De qualquer maneira, o texto faz referência a outros estudos que mostraram a eficácia da inibição da replicação do vírus da SARS (SARS-CoV-1) in vitro pela cloroquina, mas nele mesmo consta que “se estudos em animais comprovarem estes resultados, a cloroquina pode se tornar uma opção viável”.
17. Browning D.J. Pharmacology of Chloroquine 2 and Hydroxychloroquine. Chapter 2 in D.J. Browning, Hydroxychloroquine and Chloroquine Retinopathy, 35 DOI 10.1007/978-1-4939-0597-3_2, © Springer Science+Business Media New York 2014.
Isso é capítulo de um livro de 2014, sem relação com a COVID-19. Ele chega a mencionar a atividade antiviral da cloroquina e fala da SARS e do SARS-CoV-1, mas só menciona que “as 4-aminoquinolinas inibem a replicação do HIV, do coronavírus da SARS e do Influenza” e coloca referências que descrevem esse mecanismo in vitro.
18. Yao et al., 2020. In Vitro Antiviral Activity and Projection of Optimized Dosing Design of Hydroxychloroquine for the Treatment of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2). https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32150618
Em nosso vídeo, esse estudo foi mencionado como sendo duplicado na referência 33, mas acabou não sendo discutido.
Este, finalmente, é de fato um estudo que fala sobre a hidroxicloroquina e a COVID-19, mas mais uma vez é um estudo in vitro com células Vero E6. É um bom e importante estudo, mas não serve de prova para a eficácia em humanos sem ensaios clínicos adequados.
19. Colson et al. Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. International Journal of Antimicrobial Agents. Journal homepage: https://www.journals.elsevier.com/international-journal-of-antimicrobialagents https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920300820?via%3Dihub
O que esse “et al.” esconde aqui é que é outro artigo do Didier Raoult e sua equipe. Mas ignorando isso, vemos também que esse não é um artigo científico rigoroso do qual se tira essas conclusões. É um “Hot Topic”, que são papers mais simples, sem abstract, sem palavras-chave e sem divisão por seções.
Fora isso, o artigo sequer faz testes ou algo do tipo, apenas faz uma revisão de papers já existentes que testaram (H)CQ em outros coronavírus e termina dizendo, basicamente, que seria interessante também fazer estes testes no SARS-CoV-2.
20. Wang, M. et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res. 30, 269–271 (2020). https://www.nature.com/articles/s41422-020-0282-0
Assim como o 15, esse aqui não é exatamente um artigo científico. É uma “carta ao editor”, tipo de publicação que a Nature descreve como “comentários curtos sobre questões atuais de interesse público e político, material anedótico, ou reações de leitores a material informal publicado na Nature” [2].
Fora isso, tem as mesmas limitações dos estudos 7 e 8: foram feitos ensaios in vitro com células Vero E6, que não são ensaios diretamente extrapoláveis para “comprovar a eficácia da cloroquina contra a COVID-19 em humanos”. Também foram encontrados alguns problemas [3] com as imagens apresentadas na Figura 1 do artigo, em que as diferentes exposições das micrografias não parecem combinar entre si.
REFERÊNCIAS:
[2] https://www.nature.com/nature/for-authors/other-subs
[3] https://pubpeer.com/publications/960174C97B0604C2DCB0C1A690C252
21. Gao, J., Tian, Z. & Yang, X. Breakthrough: Chloroquine phosphate has shown apparent efficacy in treatment of COVID-19 associated pneumonia in clinical studies. Biosci. Trends 14, 72–73 (2020).
Outro que também não é estudo, é só uma carta à revista. De qualquer modo, a carta faz uma lista de estudos que supostamente conduziram ensaios clínicos mostrando a eficácia e segurança da cloroquina contra a COVID-19. Só tem um problema — todos os estudos da lista ou ainda estavam em andamento ou foram cancelados [4] até a data de publicação da carta. A carta não lista nenhum estudo concluído sobre eficácia da (H)CQ contra a COVID-19 e, portanto, não fornece nenhuma evidência concreta a favor desse tratamento.
REFERÊNCIA:
[4] https://pubpeer.com/publications/B67404823189F2AC4CA268B04B3380
35. Christian A. Devaux, Jean-Marc Rolain, Philippe Colson, Didier Raoult. New insights on the antiviral effects of chloroquine against coronavirus: what to expect for COVID-19?, International Journal of Antimicrobial Agents (2020), https://doi.org/10.1016/j.ijantimicag.2020.105938
Mais uma vez, Didier Raoult e colegas.
Novamente ignorando isto, vemos que, no final do artigo, é dito que “os ensaios em realização pelo mundo irão verificar se as esperanças levantadas quanto à cloroquina para o tratamento da COVID-19 podem ser confirmadas” — ou seja, eles basicamente dizem aqui que (ainda) não há confirmação da eficácia do medicamento contra a COVID-19.
36. Singh AK, Singh A, Shaikh A, Singh R, Misra A, Chloroquine and hydroxychloroquine in the treatment of COVID-19 with or without diabetes: A systematic search and a narrative review with a special reference to India and other developing countries, Diabetes & Metabolic Syndrome: Clinical Research & Reviews (2020), doi: https://doi.org/10.1016/j.dsx.2020.03.011
Esse aqui é, até agora, o que mais favorece a posição pró-coloroquina. Na conclusão, os autores realmente dizem que “acreditam que tal tratamento possa ser útil no contexto atual da pandemia de COVID-19”, mas dizem que isso se dá “na ausência de qualquer outra opção válida de tratamento”. Também dizem que “a evidência é limitada e baseada apenas em dois ensaios humanos pequenos”. Na conclusão apresentada no abstract, os autores também dizem que o que eles propõem é “acelerar [o desenvolvimento de] ensaios clínicos para o tratamento”. Além de tudo isso, esse paper não é um artigo científico próprio, é apenas uma revisão de artigos existentes.
39. Liu W & Li H. COVID-19: Attacks the 1-Beta Chain of Hemoglobin and Captures the Porphyrin to Inhibit Human Heme Metabolism. https://bit.ly/3bx7RxS
É um preprint que a gente não percebeu no primeiro vídeo, o próprio site diz que “não pode ser encarado como conclusivo, não pode ser usado para guiar prática clínica ou de saúde e nem relatado pela mídia como informação bem estabelecida”.
40. Cortegiani et al., A systematic review on the efficacy and safety of chloroquine for the treatment of COVID-19, Journal of Critical Care, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0883944120303907?via%3Dihub
Excerto extraído diretamente da conclusão:
“There is rationale, pre-clinical evidence of effectiveness and evidence of safety from long-time clinical use for other indications to justify clinical research on chloroquine in patients with COVID-19. However, clinical use should either adhere to the Monitored Emergency Use of Unregistered Interventions (MEURI) framework or be ethically approved as a trial as stated by the World Health Organization. Safety data and data from high-quality clinical trials are urgently needed.”
“Existem argumentos, evidência pré-clínica de eficácia e evidência da segurança advindos de uso clínico a longo prazo para outras indicações para justificar pesquisa clínica sobre a cloroquina em pacientes com COVID-19. Contudo, o uso clínico deverá ou aderir ao protocolo de Uso Emergencial Monitorado de Intervenções Não-Registradas (MEURI) ou ser eticamente aprovado como ensaio da maneira descrita pela Organização Mundial da Saúde. Dados de segurança e dados de ensaios clínicos de alta qualidade são urgentemente necessários.”
Ou seja, mais uma vez está sendo dito que seria interessante estudar a cloroquina contra a COVID-19, com base em informações de estudos já existentes, e não “confirmando” que ela é eficaz para tal. Os autores estão inclusive solicitando que dados clínicos sejam produzidos.
41. James M. Sanders, PhD, PharmD; Marguerite L. Monogue, PharmD; Tomasz Z. Jodlowski, PharmD; James B. Cutrell, MD. Pharmacologic Treatments for Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) A Review JAMA. doi:10.1001/jama.2020.6019 Published online April 13, 2020.
Mais um que não é artigo em si, é revisão. Mesmo assim, na terceira caixa do resumo, onde consta um resumo das conclusões, é dito que “nenhuma terapia tem se mostrado eficaz [contra a COVID-19] até a presente data”. No corpo do texto é constatado que “não existe evidência de alta qualidade para a eficácia do tratamento por cloroquina/hidroxicloroquina da SARS ou MERS”.
Logo depois disso o texto menciona estudos já desenvolvidos e lista seus problemas, incluindo um estudo feito na China que não passou por revisão por pares e o estudo do Didier Raoult e seus inúmeros problemas de metodologia.
Também é listado o problema com a dosagem que tem sido proposta de 500 mg, oralmente, uma ou duas vezes ao dia para o tratamento da COVID-19, tendo em vista que a dosagem máxima estabelecida para garantir a segurança e a eficácia do uso da hidroxicloroquina geralmente é de 400 mg/dia.
42. Riou B, Barriot P, Rimailho, A., Baud FJ. Treatment of Severe Cholroquine Poisoning. The New England Journal of Medicine, Vol. 318, Number 1, January 7, 1988. pp. 1-6.
Para começar, o título do paper está escrito errado na referência (“cholroquine”). Em segundo lugar, a referência é de 1988, trinta e um (quase trinta e dois) anos antes da COVID-19 e 14 anos antes da SARS. O texto fala sobre o tratamento do envenenamento por cloroquina, como em casos de ingestão acidental por crianças ou tentativas de suicídio. Nenhuma relação com coronavírus, SARS, ou vírus em geral.
44. Membrillo et al. Early hydroxychloroquine is associated with an increase of survival in COVID-19 patients: an observational study. https://www.preprints.org/manuscript/202005.0057/v2
Outro preprint que passou despercebido.
47. Million, et al., Early treatment of COVID-19 patients with hydroxychloroquine and azithromycin: A retrospective analysis of 1061 cases in Marseille, France. Travel Medicine and Infectious Disease, https://bit.ly/2LBqc26
Mais uma vez, um “et al.” escondendo o Didier Raoult da lista. De novo, ignorando esse detalhe, esse paper admite que:
1. “evidência ainda é necessária para aumentar o conhecimento sobre o resultado dos pacientes com COVID-19 tratados com [(H)CQ + AZT]”;
2. “nossa análise [...] não é um ensaio clínico randomizado”;
3. “na China, foram recomendados [além da HCQ] α-interferon, lopinavir, ritonavir e umifenovir” e
4. “desde o final desta análise, mais dois pacientes [...] morreram”.
Para finalizar, precisamos repetir: nenhum dos estudos está sendo diretamente “refutados” por nós. Primeiro, porque nem somos especialistas da área. Segundo, o que fizemos foi apenas um levantamento das 50 referências, para estudar, e acabamos por descobrir que a lista inteira é inflada e copiada, de maneira que ficamos com uma fortíssima impressão de que os compiladores sequer leram os resumos dos estudos, e estão utilizando a lista como um suposto “apoio” científico na narrativa de que há estudos que comprovam o a eficácia da cloroquina contra COVID-19.
Felipe Hime é YouTuber do Café e Ciência e Astrofísico em formação, no Observatório do Valongo da UFRJ.
Gustavo B.C. é químico, formado pela Unesp