Epidemias acompanham humanidade há milênios

Questão de Fato
2 abr 2020
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cavaleiros do apocalipse

A atual epidemia que varre o mundo, causando mortes aos milhares, não é a primeira nem deverá ser a última a ser enfrentada pela humanidade. A história de quando surgiram as primeiras se perde nos tempos, no entanto. É provável que elas tenham aparecido e ganhado força a partir da chamada revolução neolítica ou agrícola, ocorrida há 12.500 anos, quando os seres humanos trocaram a vida de caçadores-coletores nômades para a sedentária, de agricultores e domesticadores de animais, e começaram a se aglomerar em aldeais e, mais tarde, cidades.

Na verdade, o que o mundo enfrente hoje é uma pandemia, que nada mais é do que, a grosso modo, uma epidemia que afeta uma área maior do planeta. “O conceito contemporâneo de pandemia é a disseminação de uma doença em uma ampla área geográfica, abarcando pelo menos dois continentes”, explica o médico Expedito José de Albuquerque Luna, da área de epidemiologia e controle das doenças transmissíveis do Instituto de Medicina Tropical, da Universidade de São Paulo (USP).

Tirando as diferenças conceituais, a historiadora Anny Jackeline Torres Silveira, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), lembra que “doenças e injúrias parecem ter acometido a humanidade” desde os primeiros tempos. “Mas os episódios epidêmicos só tiveram lugar de destaque depois da chamada revolução neolítica, marcada, entre outros, pelo processo de sedentarização e da domesticação dos animais”, diz.

Uma das primeiras epidemias de que se tem registro ocorreu na Grécia, em 428 AEC. Descrita pelo historiador grego Tucídides (460 AEC.–400 AEC), em seu livro A guerra do Peloponeso, ela ficou conhecida como a Peste de Atenas. Ele descreveu em detalhes os sintomas, entre os quais os principais eram forte dor de cabeça no início, seguida de vermelhidão e inflamação nos olhos, língua e a faringe com aspecto sanguinolento, respiração irregular, hálito fétido, espirros e rouquidão, dor no peito, tosse violenta, náuseas e vômito e pústulas e feridas.

Os que contraíam a doença – a maioria da população – morriam entre sete e nove dias depois. “As pesquisas atuais apontam como sendo uma epidemia de febre tifoide”, diz a historiadora Ana Karine Martins Garcia, especialista em História da Saúde e da Doença. Seja qual for a causa exata, o surto matou o estadista Péricles (495/492 AEC.– 429 AEC), sob cujo governo a civilização grega atingiu o seu apogeu.

Seis séculos depois, a civilização eurpeia viu irromper outra grande epidemia. Ela surgiu e causou grande devastação em Roma em 166 EC, durante o reinado do imperador Marco Aurélio (121-180), da linhagem dos antoninos – daí a doença ter entrado na história com o nome de Peste Antonina.

Uma de suas vítimas foi o próprio imperador, que morreu em 17 de março de 180. – o surto durou pelo menos até 189. Um dos contemporâneos da epidemia foi o famoso médico romano de origem grega Cláudio Galeno (130-210), que descreveu os sintomas da doença, muito semelhantes ao da Peste de Atenas, o que levanta a suspeita de que tenha sido febre tifoide também.

Segundo Luna, a primeira epidemia a receber a denominação de pandemia ocorreu no século 6, no Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente), durante o reinado (527 a 565) do imperador Justiniano (482-565), daí seu nome Peste Justiniana. Ela irrompeu na capital do Império, Constantinopla (hoje Istambul), em 542, onde chegou a causar 10 mil morte por dia, e rapidamente se espalhou pela Ásia e Europa.

As poucas informações que se tem dela vêm do historiador bizantino Procópio de Cesareia (500 – 565), a principal fonte de informação sobre o reinado de Justiniano I. De acordo com ele, os principais sintomas da doença incluíam febre, bubões (gânglios) nas regiões inguinal e axilar, ou em outras partes do corpo. Alguns morriam logo, outros depois de muitos dias, vários vomitando sangue. Os corpos de alguns apresentavam bolhas negras do tamanho de uma lentilha. A descrição de Procópio sugere que epidemia foi causada pelo bacilo Yersinia pestis.

Esse foi um prenúncio do que essa bactéria, transmitida por pulgas de ratos, viria a causar no século 14, na Europa e na Ásia. Trata-se da pandemia mais devastadora que o mundo já enfrentou, a Peste Negra, também conhecida como bubônica, cujo nome vem justamente dos bubões. Seu auge ocorreu entre 1343 e 1353. “Ela causou a morte de algo entre 75 milhões a 200 milhões de pessoas e somente nos séculos posteriores é que foi descoberto que seus efeitos eram ocasionados pela bactéria Yersinia pestis, comum em roedores como o rato”, explica Ana Karine.

Segundo o engenheiro eletrônico e historiador da Ciência Gildo Magalhães dos Santos Filho, diretor do Centro de História da Ciência da USP, a peste bubônica reduziu a população de nações europeias à metade ou a um terço da original, com graves consequências econômicas, sociais e demográficas. “Sua proliferação teve a ver com condições de higiene precárias, agravadas por políticas depauperantes”, diz. “Por ignorância, por vezes os judeus foram considerados culpados pela doença, sendo então perseguidos e mortos. Havia também a superstição de que o surgimento de cometas seria um sinal anunciando a chegada da peste.”

Houve várias outras epidemias e pandemias ao longo dos séculos, mas nenhuma com a mesma extensão da peste negra. “Podemos citar a grande praga de Londres, em 1665-1666, as de varíola, que dizimaram populações americanas após 1500; a cólera, em três ondas epidêmicas no século 19; a pandemia de Influenza de 1918 [gripe espanhola, que causou entre 40 milhões e 50 milhões de morte em todo o planeta] e a aids, fechando o século 20”, enumera Anny Jackeline. “Neste século 21, a COVID-19 já é um verdadeiro marco na história das pandemias.”

As causas do surgimento das epidemias são muitas e variadas. Depois da sedentarização, as populações humanas aumentaram muito. “Com isso, criaram-se as condições para a disseminação de agentes infecciosos (vírus, bactérias), por transmissão direta (de pessoa a pessoa), ou por intermédio de insetos vetores”, explica Luna. “Mais tarde, o incremento das relações comerciais e do deslocamento de pessoas possibilitou a disseminação dos agentes infecciosos entre as diversas regiões geográficas.”

De acordo com Ana Karine, no passado, os fatores mais frequentes que contribuíram para o surgimento dessas pandemias foram a ausência de medidas higiênicas e sanitárias, tanto na vida pública como na privada das sociedades. “Também ajudaram os traslados comercias de mercadorias sem o armazenamento adequado, o consumo de água e alimentos insalubres, as quarentenas e isolamentos tardios dos contaminados, a presença constante de ratos e outros transmissores pelas ruas devido ao acumulo de lixo, as aglomerações humanas, a falta de hospitais e a ausência de vacinas e medicações para o tratamento dessas enfermidades”, enumera.

Segundo o médico epidemiologista Lúcio José Botelho, do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as pandemias começaram realmente após a Revolução Comercial, que se estendeu do século 12 ao 18, com o aumento das relações entre países e continentes, principalmente impelidas pela navegação.“A partir de então, em todos os séculos sempre tivemos pandemias, de gripe principalmente, mais de uma por século, com maior ou menor gravidade”, lembra.

Ana Karine acrescenta outros fatores, alguns que remetem ao passado, como causadores ou propulosores dos surtos de doenças. De acordo com ela, a precariedade das condições higiênicas e sanitárias, que ainda estão presentes na maioria dos países, da saúde pública, e o mau atendimento às populações mais pobres e as viagens que dão acesso à entrada e saída de doentes infectados nos países facilitam a proliferação das doenças infecciosas. “Sem falar na falta de hospitais públicos e leitos para atender aos doentes, as aglomerações humanas, a carência de medicações e vacinas para o tratamento, sobretudo, das doenças recorrentes”, acrescenta. “Ou seja, mesmo diante dos avanços da ciência médica, nem todos têm acesso a esses cuidados e prevenções.”

Logicamente, diz Botelho, o ritmo de espalhamento das doenças é sempre proporcional aos deslocamentos e à aglomeração de pessoas. “O que tem como consequência tornar as doenças mais rápidas e globais com o passar dos tempos, até atingirem simultaneamente os cinco continentes, nas mais recentes pandemias”, diz.

Segundo Luna, hoje é mais fácil e provável a ocorrência de pandemias por uma razão muito simples. “Mais de um bilhão de pessoas fez viagens internacionais ao ano, na última década”, diz. “Em pouco mais de 24 horas, pode-se sair de um povoado na savana africana ou de uma vila na zona rural do interior da China e chegar em outro continente.”

Em contrapartida, as ferramentas das ciências médico-biológicas e da saúde pública têm sido úteis na resposta às pandemias recentes e contribuído para reduzir os danos, evitando que o número de infectados e mortos sejam ainda maiores. “Com as atividades de vigilância epidemiológica, desenvolvidas por todos os países do mundo, atualmente é possível identificar quadros sindrômicos desconhecidos de forma relativamente rápida, assim como seus agentes etiológicos [causadores]”, explica Luna. “Quando da emergência da aids, demorou-se quase três anos para identificar o agente etiológico, o vírus HIV. Na pandemia atual, o SARS-CoV 2 foi identificado em menos de um mês.”

O desenvolvimento de fármacos e vacinas também é mais rápido, de acordo com Luna. Na última pandemia de influenza, em 2009/2010, por exemplo, quando ela chegou à Europa, no inverno 2009/2010 já havia uma disponível para ser utilizada. As medidas de isolamento dos casos e quarentena de contatos foram suficientes para deter a pandemia de SARS-CoV 1 em 2003.

Luna resume a situação. “A dificuldade atual é decorrente da velocidade de propagação, consequência do volume e da rapidez das viagens internacionais e intercontinentais”, dz. “Ao mesmo tempo, a capacidade de detecção e resposta também é maior atualmente. Após a pandemia de SARS-CoV 1 os países-membro da OMS fizeram a revisão do Regulamento Sanitário Internacional.”

A nova diretriz, em vigência desde 2007, exige que todos os países tenham a capacidade de detectar doenças inusitadas, com a criação de sistemas de vigilância epidemiológica, e de fazer diagnóstico, com o desenvolvimento da sua capacidade laboratorial e dos serviços de saúde pública. “As nações também devem indicar um ‘ponto de enlace’, ou seja, pessoa ou instituição que responde oficialmente à OMS, e sejam capazes de analisar as emergências em saúde pública à luz do algoritmo pactuado para notificação internacional”, explica Luna. “A experiência do momento, de medidas de distanciamento social em larga escala, é inédita. Não há iniciativa semelhante na história da humanidade.”

Evanildo da Silveira é jornalista

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