Nos últimos quatro anos, o programador Web Piero Mori contraiu sífilis três vezes, de forma independente uma da outra. Ele considera o ocorrido apenas um “transtorno”, pois diz que sempre procurou estar bem informado e que sabe que a doença é facilmente curável, se tratada adequadamente. Para ele, o mais chato é ter ir ao hospital, tomar injeção dolorida de benzilpenicilina benzatina (mais conhecida como benzetacil) e avisar os parceiros sexuais mais recentes.
Mori pode não ser um caso típico, mas faz parte das estatísticas que mostram um grande crescimento do número de casos do mal no Brasil. De acordo com o Boletim Epidemiológico Sífilis 2019, do Ministério da Saúde, divulgado em outubro, os casos de sífilis adquirida cresceram 3.509% entre 2010 e 2018, passando de 2,1 casos por 100 mil habitantes para 75,8 casos por 100 mil habitantes.
Neste mesmo período, a taxa de incidência congênita da doença aumentou 3,8 vezes, passando de 2,4 para 9,0 casos por mil nascidos vivos, e a de detecção da doença em gestantes aumentou 6,1 vezes, passando de 3,5 para 21,4 casos por mil nascidos vivos. O Boletim mostra ainda que, em 2018, a maior parte das notificações de sífilis adquirida ocorreu em indivíduos entre 20 e 29 anos (35,1%), seguidos por aqueles na faixa entre 30 e 39 anos de idade (21,5%).
Houve, na realidade, um incremento no índice de detecção para todas as faixas etárias, ressaltando a tendência mais acentuada de aumento naquela de 20 a 29 anos, que em 2018 contabilizou 163,3 casos por 100.000 habitantes. Os dados revelam também que a população mais afetada são as mulheres, principalmente as negras e jovens, na faixa etária de 20 a 29 anos.
Somente esse grupo representou 13,8% de todos os casos de sífilis adquirida e em gestantes notificados em 2018. Na comparação por sexo, as mulheres de 20 a 29 anos alcançaram 24,4% do total de casos notificados, enquanto os homens, nessa mesma faixa etária, representaram apenas 16,1%. Em 2010, a razão de sexos (M:F) era de 0,2 (dois casos em homens para cada dez casos em mulheres); em 2018, foi de 0,7 (sete casos em homens para cada dez casos em mulheres), razão que vem se mantendo estável desde 2014.
O médico sanitarista Artur Olhovetchi Kalichman, do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, explica que a sífilis é uma doença classificada em estágios. “A primária é a que ocorre assim que há a infecção pela bactéria Treponema pallidum, causadora da doença”, aponta. “Cerca de três a quatro dias após o contágio, formam-se feridas indolores (cancros) no local da infecção, normalmente na região genital, que desaparecem em cerca de até 10 dias, mesmo sem tratamento. A bactéria torna-se dormente (inativa) no organismo, nesse estágio.”
A secundária, por sua vez, acontece cerca de duas a oito semanas após as primeiras feridas se formarem. Aproximadamente 33% daqueles que não trataram a sífilis primária desenvolvem o segundo estágio. “Nesse caso, o paciente pode apresentar vermelhidão pelo corpo (exantema), coceira, aparecimento de íngua (gânglios inchados) nas axilas e pescoço”, informa Kalichman. “Aparecem também sintomas como dores musculares, febre, dor de garganta e dificuldade para engolir. Esses sintomas geralmente somem sem tratamento após umas duas semanas e, mais uma vez, a bactéria fica inativa no organismo. Nessa fase, ela ainda é transmissível pelo contato com a região da infecção.”
Também há terciária, que é a mais difícil de ser detectada, pois têm sintomas em grandes vasos (como a aorta), cérebro, olhos, coração. “Aí ela pode causar dor de cabeça, epilepsia, e é um diagnóstico um pouco mais complicado”, explica Kalichman.
Há uma série de fatores que explicam o aumento da incidência da sífilis no Brasil e também no mundo. Segundo o infectologista Guilherme Alves de Lima Henn, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), um deles é comportamental. “Existe uma tendência mundial de diminuição do uso do preservativo”, explica. “Este fato está ligado à falsa ideia de que a infecção pelo HIV não é mais um grave problema.”
Segundo ele, os jovens de hoje (especialmente os indivíduos com menos de 30 anos) já cresceram aprendendo que a aids não matava como antigamente. “Eles não viram grandes ídolos da geração anterior sofrer e morrer da doença, como Cazuza, Betinho, Henfil, Renato Russo e Fred Mercury, por exemplo”, diz. “Esta geração tem iniciado sua vida sexual sem medo de pegar HIV, e com um desconhecimento ainda maior a respeito das outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como a sífilis, que continuam sendo disseminadas por meio do sexo desprotegido.”
Um segundo motivo é o fato de que, há alguns anos, houve um desabastecimento importante, em escala global, do antibiótico mais eficaz, a benzilpenicilina benzatina, contra a bactéria da sífilis. “Isto fez com que muitas pessoas infectadas pela bactéria não tivessem acesso precoce ao tratamento, e aumentassem a cadeia de transmissão”, explica Henn. “Por fim, existe uma tendência de diminuição dos recursos destinados às campanhas de prevenção às ISTs como um todo, e, portanto, de seu impacto sobre a população.”
Além desses fatores, o também médico infectologista Rico Vasconcelos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), cita a falta de uma política pública eficaz de enfrentamento dessas epidemias como outra causa do aumento dos casos de sífilis. “É preciso educação sexual desde a juventude, ensinando as pessoas a terem uma percepção de risco adequada, para poderem conduzir sua prevenção, com informações fundamentais como a transmissibilidade da bactéria por meio do sexo oral ou a existência de casos da doença completamente assintomáticos”, diz.
Para Vasconcelos, também é fundamental estimular testes e exames periódicos da população sexualmente ativa, mesmo que assintomática, e com tratamento dos que tiverem resultados positivos. “Em vez disso, temos apenas a repetição da mensagem ‘use camisinha’, ultrapassada e incapaz de conter os novos casos da infecção, como na última campanha de ISTs veiculada pelo Ministério da Saúde”, critica.
Quanto ao fato de o estado do Rio de Janeiro ter o maior número relativo de casos de sífilis congênita e em gestantes, Vasconcelos diz que isso certamente tem a ver com a precariedade de políticas públicas de enfrentamento desses agravos, que exige ampla cobertura de pré-natal de qualidade das gestantes, com tratamento das positivas e de seus parceiros sexuais. “Para isso ser feito, é necessário que a rede de atenção em saúde pública da localidade esteja bem estruturada, com profissionais capacitados e com os insumos disponíveis”, explica. “E o Rio de Janeiro, como sabemos, passa por uma grave crise financeira.”
A maior incidência de sífilis adquirida ocorreu em indivíduos jovens, entre 20 e 29 anos e 30 e 39 anos de idade. Estas são as faixas etárias em que as pessoas são mais ativas sexualmente. A explicação é diferente para o fato de as mulheres, principalmente, as negras, serem a mais afetadas pela doença. “A maior prevalência no sexo feminino ocorre porque a lesão da sífilis primária (uma úlcera chamada de 'cancro duro') é indolor e acomete o interior da vagina, ou seja, não é uma lesão visível e facilmente perceptível exteriormente na vulva, e, além disso, é uma evanescente (desaparece sozinha, sem tratamento)”, explica o infectologista Plínio Trabasso, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Desta forma, o diagnóstico da lesão ulcerativa ocorre apenas na eventualidade da mulher passar por um exame ginecológico exatamente durante a efêmera (cerca de 3 a 6 semanas) ocorrência da úlcera. “Uma vez não sendo diagnosticada nem tratada nesse curto período, a infecção evolui para uma forma mais disseminada, a chamada sífilis secundária”, informa Trabasso.
Nos homens, em contrapartida, normalmente a lesão ulcerativa acomete a glande ou o corpo do pênis, sendo portanto mais facilmente perceptível, o que leva a pessoa a procurar o médico com maior frequência, já na fase primária da infecção. “Para além da questão biológica, que atinge todas as mulheres, há ainda a questão social pois, como é sabido, a população negra ainda é, no nosso país, a mais desassistida pelo sistema de saúde”, completa o especialista da Unicamp.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que “a pasta vem executando diversas estratégias de abrangência nacional para o controle da sífilis no país”. Entre as quais, estão a “compra e distribuição de insumos de diagnóstico e tratamento (penicilina benzatina e cristalina e testes rápidos para diagnóstico); o desenvolvimento de instrumentos de disseminação de informação estratégica aos gestores, auxiliando a tomada de decisão; a instrumentalização de salas de situação em todos os estados e no Distrito Federal (equipamentos); a realização de campanhas nacionais de prevenção; e o desenvolvimento de estudos e pesquisas voltados para o enfrentamento da sífilis no SUS”.
Além dessas ações, o Ministério diz que está em vigência o Projeto Resposta Rápida à Sífilis, que tem por objetivo reduzir a adquirida e, em gestantes, e eliminar a congênita. “Este projeto contempla 100 municípios prioritários com os maiores índices (51,3% dos casos do Brasil) e no momento conta com apoiadores institucionais em 72 destas localidades, com a função de fomentar a realização das ações planejadas para executar o enfrentamento da sífilis nos territórios”.
Diz ainda a nota, que “recentemente, o Ministério da Saúde lançou uma campanha para prevenção contra as Infecções Sexualmente Transmissíveis, incluindo a sífilis, visando conscientizar sobre a importância do uso do preservativo (masculino ou feminino) para evitar a transmissão sexual da doença. Vale lembrar que além dessa, o Ministério da Saúde tem pensado em outras campanhas estratégicas com abordagem voltada para o diagnóstico precoce, tratamento adequado e redução dos índices da doença”.
Campanhas que parecem não fazer muito efeito em Mori. Ele diz que a cada no e meio ou dois anos, contrai sífilis. Aí se trata e fica curado. E volta a agir da mesma maneira, sem se preocupar muito com a prevenção. “Eu uso preservativo, mas nem sempre”, admite. “Nunca tive muita afinidade com eles, porque tira minha sensibilidade e afeta minha vida sexual, que é bastante ativa, acima da média, com um número grande parceiros.”
Então, para ele, é “até meio que esperado” que tenha de sífilis ou gonorreia ou outra DST (doenças sexualmente transmissíveis). “Para mim, essa doença é como se fosse a gripe das DST”, diz. “Digo isso, porque rigorosamente falando ela não é nada demais. Hoje em dia, você consegue curá-la com uma injeção de benzetacil. O que você não pode é deixar de fazer o rastreamento, ou seja, testes periódicos, com bastante frequência e não esquecer de notificar seus parceiros. Estou falando por mim, que estou sempre atento. Claro, se não monitorar, pode causar sérios problemas.”
Evanildo da Silveira é jornalista